E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

A gaiola vazia

  No livro Breakfast at Tiffany's, de Truman Capote, Holly Golightly, na primeira conversa com o narrador, seu vizinho, sobre o gato que vive em sua casa, explica-lhe que o animal não lhe pertence, tal como ela não lhe pertence a ele; apenas vivem juntos: “[w]e just sort of took up by the river one day, we don't belong to each other: he's an independent, and so am I”. O gato não tem sequer nome. Por isso, prestes a partir no final da história, Holly manda parar a limousine que a leva ao aeroporto e larga o gato num beco. O gato parece não querer separar-se dela, mas Holly escorraça-o e vai embora. Explica depois ao narrador que é assim mesmo que deve ser: ela e o gato continuam independentes, nunca se prometeram nada. De imediato, porém, toma consciência de si mesma e volta atrás, mas o gato já desapareceu. Arrependida, confessa-se ao narrador: “[o]h, Jesus God. We did belong to each other. He was mine.

  Que vínculo é esse que Holly percebe, tarde demais, ter estabelecido com o seu gato sem nome, que só lhe parece evidente depois de o animal ter desaparecido?
  Os dois são livres. Não há compromisso ou dever que os obriguem ao que quer que seja, e assim parece que não têm verdadeiramente ligação, como Holly sugeriu. Talvez perceba depois que, afinal, pode ser precisamente esse desprendimento o que os une.
  Juras e compromissos serviriam apenas para construir uma ligação artificial, para erigir uma prisão cujas grades seriam postas pelos próprios prisioneiros. Teriam então uma relação feita de obrigações, e ficariam unidos por um vínculo superficial, amarrados à promessa com que se condenaram. Em vez de tudo isso, Holly acaba por descobrir que o descomprometimento com que ambos se abordam, o acaso do seu encontro e a liberdade que os une acabaram por gerar entre eles uma ligação mais profunda: menos perceptível, mas, no seu modo, mais verdadeira.
  Não quer isto dizer que Holly se enganou quando garantia que eles não se pertenciam. Em certo sentido, estava certa: nenhum deles estava preso ao outro, na medida em que nenhum estava obrigado a ficar com o outro. Mas é precisamente porque o gato, apesar de não lhe pertencer, ter querido ficar com ela e segui-la que sabemos que aquele era o gato dela. E é precisamente porque ela, sem o adoptar ou torná-lo sua posse, tomou conta dele e sentiu a sua falta, que ela também já pertencia ao gato. E assim eles já eram um do outro.
  Que lição afinal aprende Holly? Ela já sabia que nem todas as prisões nos são impostas de fora. Às vezes, as prisões mais resistentes são precisamente as que nós mesmos erguemos. É isso uma promessa para Holly: uma gaiola que oferecemos aos outros, para que nos fechem lá dentro. O que ela desconhece, porém, é que é possível outro modo de pertença, outro vínculo, em que permanecemos livres. O gato sabe disso, mas ela ainda não: precisa de o perder para aprendê-lo.
  Conhecendo o apreço que o narrador tinha por uma bonita e valiosa gaiola para pássaros que vira à venda, Holly oferece-lha, com o pedido de que ele nunca lá prenda um ser vivo (Promise me, though. Promise you'll never put a living thing in it.). Uma prisão é, com efeito, a morte para ela. Não admira que evite o jardim zoológico (Holly said she couldn't bear to see anything in a cage). Como não surpreende que tenha abandonado o marido e restante família. Pássaro frágil que era, sentiu-se naturalmente confortável com um homem que sabia tratar tais criaturas (“...you don't know the sweetness of him, the confidence he can give to birds and brats and fragile things like that”). Mas continua a ser uma criatura selvagem. Uma ligação baseada em deveres de agradecimento (“Anyone who ever gave you confidence, you owe them a lot) só podia tornar-se uma prisão para ela. E por isso tinha de partir.
  A história de Holly e do marido lembra, neste ponto, a de Buck e Thornton, no livro The Call of the Wild, de Jack London. Thornton salva e cuida de Buck, um cão que passa a adorá-lo e protegê-lo. Mas Buck é uma criatura da floresta, e, sentindo o chamamento da vida selvagem, vai-se progressivamente afastando, tal como Holly, que todos os dias chegava um pouco mais longe nas suas digressões. É esse chamamento que, segundo parece, fatalmente levará Holly, Buck e outras criaturas selvagens para longe. Indomesticáveis, eles levarão consigo os corações daqueles que, como o marido de Holly, nunca poderão seguir o conselho que esta dá a Joe Bell: you can't give your heart to a wild thing”.
  Holly aprende, afinal, que também as criaturas selvagens entregam por vezes o seu coração. Essa é a prisão livre em que podem viver: obrigadas por dever nenhum, presas por nenhuma corrente, elas entregam-se por sua vontade, vinculadas apenas pelo desejo. Holly oferece ao narrador uma gaiola vazia, pedindo-lhe que a mantenha assim e mostrando às avessas a única prisão que ela pode habitar: uma gaiola sem grades. Oferece-lhe uma gaiola sem nada dentro e deste modo explica-lhe que ela traz dentro de si mesma a única gaiola que a poderá prender.
  No fim de contas, há uma bonita lição de amor na história de Holly. A sua dor quando percebe que o gato, o mais selvagem dos animais domésticos, desapareceu, mostra, com efeito, que sente amor por ele. Que amor é esse? O único de que a nómada e desprendida Holly será capaz. O verdadeiro. Aquele que não se prometeu e, por isso, não tinha de existir.

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