E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 31 de dezembro de 2017

O amante sombrio

 No livro El amor en los tiempos del cólera (Gabriel García Márquez), Florentino Ariza apaixona-se por Fermina Daza. Apesar de chegarem a noivos, ela acaba por rejeitá-lo, tomando por ilusão errónea a afeição que lhe dedicara. Fermina casa com o médico Juvenal Urbino e vivem juntos até à morte deste. Florentino segue amando Fermina e, enquanto espera a morte de Urbino, deita-se com muitas centenas de mulheres ao longo dos anos. No fim da vida, consegue finalmente juntar-se à viúva Fermina.

  Quem é Florentino Ariza? Provavelmente, nada o captura tão bem como a expressão com que Fermina ganha consciência do motivo por que o rejeitou: ele não é bem uma pessoa, é mais uma sombra, a sombra de alguém que nunca ninguém conheceu (“«Es como si no fuera una persona sino una sombra». Así era: la sombra de alguien a quien nadie conoció nunca.”). E é como se ele passasse mais de 50 anos dedicando-se a provar a verdade da sentença.
  Nenhum dos participantes na conversa em que Fermina tem esta revelação consegue trazer à memória a imagem de Florentino. Ele parece transparente, ou no máximo translúcido, alguém que podemos ver, mas não podemos fixar. Mais de 600 amantes teve Florentino. Algumas – muito poucas – chegaram a gostar muito dele, mas nenhuma o conheceu. Nenhuma chegou a saber, nomeadamente, da sua paixão por Fermina Daza. Mesmo América Vicuña, a quem tenta convencer de que vai casar, não consegue acreditar no que ele diz. E não se deve tal incredulidade apenas à idade avançada de Florentino, mas precisamente ao facto de ela não conseguir associar-lhe um gesto daqueles. Tivera ele falado de outros afectos, noites de sexo com outras mulheres, e América – talvez desiludida ou enciumada – não teria tido grandes problemas em acreditar. Mas o casamento parece um projecto para outra pessoa que não Florentino, não, pelo menos, o Florentino que ela (não) conhece.
  Tarefa difícil, a de conhecer Florentino, ou mesmo a de ir ao seu encontro. Sempre encolhido, escondido em si mesmo, ele não se abre à descoberta. E, de resto, é legítimo duvidar que algo exista para ser encontrado. A dada altura, Florentino é contactado separadamente por um moço e uma moça, que lhe pedem que redija as cartas de amor que trocam entre si. Nenhum deles sabe que é Florentino quem escreve as cartas do outro. A relação progride, as cartas produzem o efeito pretendido. Os jovens vivem e desenvolvem assim o seu amor através de Florentino Ariza, mas isso não parece provar que este seja um elemento vital, que ele faça pulsar a relação dos outros; ao invés, demonstra que, para lá de transparente, ele é em certa medida imaterial: os jovens amam-se através dele e isso diz-nos que ele é, não um corpo, mas um mero lugar de passagem. Mais tarde, já casados, os correspondentes agradecem reconhecidamente ao autor das cartas que usaram para se apaixonarem. Mas é o agradecimento que dedicamos a um espírito, a uma entidade em que acreditamos, não pela experiência, mas por um acto de fé.
  Podemos fixar Florentino nalgum ponto? Sem dúvida, o único que se oferece é a sua paixão por Fermina Daza. Ele mesmo marca como momento decisivo da sua vida aquele em que a viu pela primeira vez e se apaixonou. Esse amor que brotou não chega, porém, a fazer florescer nele uma pessoa por inteiro, pois está décadas aguardando a oportunidade de se completar: Fermina rejeita-o e não o aceita senão mais de 50 anos depois. E é como se, não podendo o amador transformar-se na coisa amada – devido à rejeição –, ele se deixasse ficar à espera dela para poder transformar-se, para poder chegar a ser uma pessoa por completo, a pessoa que está destinado a ser. De cada vez que se deita com uma mulher pela primeira vez, ele não consegue, por impotência, consumar o acto sexual, porque em cada uma dessas vezes ele repete o projecto adiado de se deitar pela primeira vez com Fermina (“Le ocurrió siempre la primera vez, con todas, desde siempre, de modo que había aprendido a convivir con aquel fantasma: cada vez había tenido que aprender otra vez, como si fuera la primera.”). Veja-se, de resto, o contraste nas suas atitudes perante a morte: na fase em que ainda é correspondido no seu afecto por Fermina, o pai desta ameaça disparar sobre ele se ele persistir em perseguir a filha. Florentino não se perturba e oferece literalmente o peito às balas, assegurando que “no hay mayor gloria que morir por amor”. Anos mais tarde, ao invés, enquanto espera pela morte de Juvenal Urbino, assusta-se com a ideia de que Fermina, ou ele mesmo, poderiam morrer antes do médico. Pecaríamos por incompreensão se julgássemos que uma diferença simples de coragem e medo explica a mudança de postura: no primeiro momento, Florentino, correspondido, tem tudo (mesmo que ainda só em perspectiva) para se tornar um homem, uma pessoa em integralidade. No segundo momento, pelo contrário, privado do que o completa, é só um projecto adiado de pessoa e teme desvanecer-se sem ter oportunidade de se realizar.
  Enquanto isso não acontece, quem ou o que é Florentino? A melhor imagem daquilo em que ele se transforma é oferecida pela mulher que lhe leva a virgindade – e talvez não seja isto um acidente, se pensarmos que o amador, sem poder transformar-se na mulher amada, acabou por se tornar na mulher que primeiro lhe ofereceu um simulacro de amor. É essa figura fugidia – que o arrastou para uns lençóis fugazes e desapareceu de seguida sem mostrar o rosto – que lhe oferece a imagem que ele mostra às suas parceiras daí em diante: a de uma sombra, alguém que se lhes intromete na cama e desaparece sem elas nunca chegarem bem a saber quem é.
  Mas ser tal coisa é ser já alguma coisa. Florentino existe, tem uma presença e oferece histórias e casos a essas mulheres que se vão deitando com ele. Só que ele não é muito mais do que isso – não é muito mais que um amante da cabeça aos pés. Assume o papel de amante a tal ponto que não consegue sequer escrever cartas comerciais, transformando-as todas em cartas de amor (“... escribía cualquier cosa con tanta pasión, que hasta los documentos oficiales parecían de amor. Los manifiestos de embarque le salían rimados por mucho que se esforzara en evitarlo, y las cartas comerciales de rutina tenían un aliento lírico que les restaba autoridad.”). Amando mulheres sem rosto, mas nunca deixando de adorar o de Fermina, ele é um amante romântico na alma e ordinário no corpo, dramático no sofrimento e ridículo no prazer. Ou, nas palavras de uma das suas concubinas (Sara Noriega), “amor del alma de la cintura para arriba y amor del cuerpo de la cintura para abajo”.
  Resumido a um papel de amante, Florentino torna-se aquilo de que, no nosso desejo, gostamos (ou que gostamos de encontrar) na pessoa que amamos: precisamente o desejo dessa pessoa por nós, a dedicação que ela nos dirige; nas manifestações mais infantis ou patológicas, chegamos a ressentir a existência independente dessa pessoa, os caminhos de vida que ela se mostra capaz de percorrer sem nós. São esses caminhos que Florentino não tem: ele é um amante e nada mais, não é nada senão dedicação imediata às suas companheiras de leito e adoração fiel da sua amada distante. Quando sofremos com a independência do objecto amado, todavia, custando-nos o facto de não esgotarmos a subjectividade dessa pessoa, falhamos em perceber que é justamente essa subjectividade que nos transcende – essa pessoa que gosta de outras coisas, tem outras relações, vive para lá dos encontros connosco – a causa do nosso amor. Sem isso, não existiria verdadeiramente uma pessoa de quem gostar, pelo que é uma sombra o que desejamos quando desejamos alguém apaixonado por nós e nada mais. Daí a sugestão de que aquelas que mais desejam Florentino não desejam afinal mais do que a sombra de alguém que falta nas suas vidas. Assim acontece, por exemplo, com Olimpia Zuleta, a mulher que desejava um amante na sua vida que lhe permitisse escapar ao marido possessivo que acaba dando-lhe a morte: Florentino não foi mais que uma sombra para ela, a sombra onde ela deixou nascer escondida a liberdade que o marido lhe negava.
  Ainda nesta linha, é como se Juvenal fosse a outra parte, como se ele trouxesse afinal o conteúdo da pessoa que Fermina não pôde encontrar em Florentino. Quando se sugere que Juvenal é "el hombre contrario" em relação a Florentino, a ideia a reter é precisamente a de que aquele, sendo o inverso deste, tem tudo o que lhe falta. Ele não oferece a Fermina um amor apaixonado como o do seu primeiro pretendente – nem ela, aliás, tem a ilusão de amar o médico. Mas este é um homem cheio de feitos (e defeitos), cheio de realizações e de histórias, com uma carreira e um nome. Conhecido de todos e cheio de contactos e relações, Juvenal é a pessoa independente que actua como causa para o amor dedicado à pessoa amada. Só que não há amor apaixonado nele, e a mesma luz que nos mostra todos os seus predicados de homem grande permite-nos ao mesmo tempo perceber que ele não projecta a sombra de um amante.
  É essa sombra que encontramos na figura de Florentino. Não nos deve admirar que a única pessoa, para lá da mãe, a quem Florentino se propõe falar de Fermina seja Leona Cassiani. Pois esta é precisamente a única mulher de quem se tornou próximo sem sexo a juntá-los, e esta circunstância faz com que com ela ele esteja mais próximo de aparecer como pessoa independente, um homem para lá do papel de amante a que resume a sua vida em geral. Por isto ele quase se mostra a conhecer no que de mais essencial o constitui – a sua paixão por Fermina –, embora acabe por não conseguir fazê-lo, calando-se sobre o assunto. A sua mãe permanece, assim, a única mulher com quem falou sobre os sentimentos amorosos que o definem. Mas veja-se também o que sucede com ela: perde a razão e deixa de o reconhecer, indo ao ponto de deixar de se conhecer a si mesma. A crise de identidade é afinal um bom espelho da diluição da pessoa do filho no projecto adiado de pessoa em que ele se tornou.
  A dada altura, Florentino garante a Fermina que falou a sério toda a sua vida (“– Desde que nací -dijo Florentino Ariza -, no he dicho una sola cosa que no sea en serio.”). Se associarmos a seriedade e a gravidade ao peso, e este à presença – deixando o riso e a alegria para a descontracção, a leveza e o etéreo –, então fica sugerido o inverso do que vínhamos apontando. Pois vimos dizendo que Florentino peca por ausência e indefinição, mas ele de facto é grave, fúnebre até, com “su índole enigmática y su carácter sombrío”: é como se passasse o livro de luto pelo seu amor perdido, morto sem ter tido hipótese de nascer (e, de facto, no final vive-o como uma espécie de amor ressuscitado). Mas essa gravidade, esse peso, não se traduzem numa presença mais efectiva no reino da existência, e a razão é muito simples. É verdade que falta a Florentino o humor, a brincadeira, a leveza. Mas é erróneo pensar que estas vivem alimentando-se de si mesmas. O verdadeiro humor vive das coisas sérias: é com estas que se brinca. Só podemos tornar leve o que é pesado, porque só pode levantar voo o que tem os pés assentes na terra. Ora, é precisamente porque à seriedade de Florentino falta peso e presença que ele não pode chegar a ser leve e brincalhão: a sua leveza não é a da graça, mas sim a dos fantasmas. A única brincadeira de Florentino – ou, pelo menos, a única ocasião em que faz rir alguém – surge no momento em que se prepara para se deitar com Fermina e vai atirando para cima desta a roupa que vai despindo. Ora, isto é uma óptima confirmação do que acabamos de concluir: precisamente agora que ele ganha presença, que começa a completar-se ao encontrar Fermina, ganha peso verdadeiramente e pode, enfim, tornar-se leve: já pode brincar.
  Porque resolve agora Fermina aceitar Florentino? Que traz ele à sua vida? Lembremos o terrível medo da culpa que caracteriza Fermina desde criança: atormentada pelo “fantasma de la culpa”, sempre que este paira ameaçando-a (o que sucedia em situações em que algo mau acontecia e era preciso responsabilizar alguém), era de tal modo incapaz de suportar o sentimento que só se aliviava quando encontrava alguém a quem responsabilizar. Quando Florentino se apresenta diante dela depois da morte de Juvenal, ela explode numa censura furiosa contra ele. Talvez possamos explicar esta fúria sem razões precisamente através desse processo de descarga da culpa que ela não suporta sentir, de responsabilização pelos pensamentos que ela traz consigo e sente que não deveria. Quando finalmente se junta a ele, que faz ela, afinal, senão juntar-se a esse homem que pode culpar de tudo, que pode responsabilizar sem medos – o homem que, enfim, lhe há-de levar embora o fantasma da culpa? Ninguém melhor, com efeito, para carregar um fantasma do que alguém que foi um fantasma toda a vida. Fantasma para os outros, que dele pouco retinham, e fantasma até para si mesmo: lembre-se como teve de aprender a viver com “aquel fantasma” (o da impotência) que aparecia de cada vez que se deitava pela primeira vez com uma mulher.
  Feito um fantasma a maior parte da sua vida, Florentino tornou-se no fim o homem de que Fermina precisava. Esta não precisou de se tornar coisa nenhuma: foi sempre aquilo que lhe faltava para ele se completar. Nenhum deles evolui verdadeiramente até se encontrarem, mas o tempo que durou até esse momento foi afinal essencial para que a distância, tão grande, tornasse mais verdadeiro esse encontro tão adiado.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

O fantasma de capote


Krukiniksi

  No conto "O capote", de Nikolai Gógol, Akáki Akákievitch é um conselheiro titular de "um certo ministério" em Petersburgo. É um copista de processos, desprezado e gozado pelos colegas. O seu casaco velho e roto está já demasiado gasto para ser remendado, de modo que se vê obrigado a um grande esforço de poupança e privação para conseguir comprar um capote novo, o que consegue finalmente. O capote é-lhe, porém, roubado. O frio e as emoções nas tentativas de reavê-lo fazem com que Akáki adoeça gravemente e acabe por morrer. Volta, no entanto, como fantasma à procura do capote pelas ruas, não se satisfazendo até levar o da "personalidade influente" que recusara ajudá-lo e até o humilhara quando ele em vida lhe pedira auxílio.

  Quem é Akáki Akákievitch? A primeira resposta tem de ser a de que ele não é ninguém. Ignorado por todos os que não têm de conviver ou interagir com ele, passa facilmente despercebido em público. Apaga-se no seu trabalho a ponto de prosseguir com ele sem reagir às histórias inventadas sobre si que contam na sua presença, às perguntas trocistas que lhe dirigem ou às brincadeiras que o tomam por objecto. Só desperta quando as intervenções dos outros perturbam o seu labor – quando, por exemplo, lhe empurram a mão, impedindo-o de escrever. O que confirma o seu apagamento no trabalho mecânico que o satisfaz: sem conteúdo pessoal, identifica-se com a sua tarefa burocrática de tal modo que só se perturba quando é impedido de a prosseguir. Incapaz de aparecer à superfície da vida social, não consegue sequer entabular um discurso com frases propriamente ditas, limitando-o, na maioria dos casos, a preposições, advérbios e interjeições sem sentido. A criação não pode ter lugar no seu universo e mesmo o seu profissionalismo é limitado à cópia subserviente – sofre quando lhe atribuem alguma tarefa que vai para lá disso.
  Tão inexistente é Akáki que não nos deve admirar a sua habilidade para andar levemente na rua com o propósito de poupar a sola dos sapatos. Já em vida, com efeito, Akáki é um verdadeiro fantasma e, assim, é natural a sua capacidade de flutuar. Como também não surpreende a deambulação sem rumo que toma quando caminha no sentido oposto ao pretendido, distraído com o preço do capote que quer comprar, qual espírito inquieto sem rumo ou lugar de pouso para as suas preocupações.
  Mas Akáki não é um fantasma vivo apenas na ausência: também o é já nas assombrações. Quando finalmente reage a um colega que lhe perturba o trabalho, dirige-lhe uma censura ("Deixem-me, porque me fazem isso?") que persegue esse colega e lhe atormenta a consciência até ao fim da vida. Do mesmo modo, depois de o "homem influente" o despachar e humilhar, aquele sente remorsos e pesar pelo que fez, a ponto de buscar desligar-se das preocupações em distracções sociais que lhe esgotem a mente.
  Mesmo depois de ter o seu capote, Akáki não muda no essencial. Graças ao capote, aparece aos olhos dos outros, passa a ser visto. Mas continua a ser um fantasma dentro dele. A alegria por ter finalmente o que queria não é partilhada com ninguém nem tem qualquer exterioridade. Akáki solta apenas "risinhos de prazer íntimo". O seu júblio é puramente interior e mesmo quando os seus colegas o cercam para partilhar o seu contentamento pedindo-lhe uma festa, ele, envergonhado e atrapalhado, não é capaz de corresponder. É o chefe que finalmente se predispõe a organizar a celebração, mas Akáki começa até por recusar comparecer na festa em sua honra. Vê-se obrigado a ir, mas no meio da celebração não sabe o que dizer, onde pôr as mãos ou os pés: no seio das pessoas que conversam, riem e se divertem, ele não sabe o que deve fazer, porque não tem lugar no meio da gente.
  A arte de Gógol neste conto, tão simples e tão difícil de atingir, é a de revelar na comédia a tragédia. Akáki é patético na sua inépcia, miserável na sua humildade, inexistente nas suas limitações. Mas em tudo isso é digno, e é a nobreza que nunca o abandona que nos obriga a reconhecer-lhe o direito a ser levado a sério. Pensamos primeiro que Gógol nos propõe rir do ridículo Akákievitch, mas a aridez dos seus motivos, angústias e gestos leva-nos antes a sofrer a sua tragédia. Como lembra Nabokov (Lectures on Russian Literature), a diferença entre o cómico e o cósmico é de uma sílaba. Esta é a perspectiva com que Chesterton ("On running after one's hat") nos propõe olhar um homem a correr atrás do chapéu: à primeira vista, podemos achá-lo ridículo, mas tal correria não é mais humilhante do que perseguir a mulher amada. Muitas actividades humanas são cómicas e ridículas, mas tantas vezes são essas as mais valiosas ("...man is a very comic creature, and most of the things he does are comic—eating, for instance. And the most comic things of all are exactly the things that are most worth doing—such as making love. A man running after a hat is not half so ridiculous as a man running after a wife."). Dispomo-nos a rir do desgraçado Akáki a perseguir o seu capote – pela mesma razão por que achamos cómico um homem correr atrás do chapéu –, mas rir dele é troçar da dignidade frágil de quem combate o frio. Nada é tão frágil como uma criatura com frio e, por isso, um capote que nos aquece não nos torna mais humanos, apesar de nos fazer mais vistosos. Ao contrário, é precisamente quando perde o seu manto que Akákievitch mostra a sua dignidade – acordado pelo frio que o faz desesperar e pela injustiça do roubo que lhe leva o pouco que tinha. Akáki não se tornou uma pessoa por perder o capote; na verdade, é nos nossos olhos que a sua tragédia acorda a humanidade adormecida. Nabokov aventa que é como fantasma que Akáki aparece mais tangível, mais real ("his ghost seems to be the most tangible, the most real part of his being"). Mas é da fragilidade deste desgraçado que provém a força desse fantasma ("But Akaki Akakievich's ghost existed solely on the strength of his lacking a coat").
  O fantasma de Akáki volta porque a (in)justiça não morre e só os fantasmas podem castigar. Mas é na sua vida despojada e abandonada que encontramos aquilo que nos faz pulsar apesar do frio. Talvez Akákievitch tenha sido sempre um fantasma, mas é afinal por isso que ele pode cumprir tão bem o seu papel, o papel que cabe a todos os fantasmas: o de nos manterem acordados.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

O amor possível


  No livro The Age of Innocence, de Edith Wharton, Newland Archer está noivo de May Welland quando conhece a prima desta, a condessa Ellen Olenska. Ellen está de regresso a Nova Iorque, depois de uma escandalosa separação do seu marido, um conde polaco. A sua intenção de obter o divórcio ameaça cobrir de opóbrio toda a família e Newland é designado para a convencer a desistir do propósito, o que consegue. Newland acaba por dar por si apaixonado por Ellen e pretende deixar May, mas Ellen rejeita-o, por consideração pela prima, e aceita permanecer em Nova Iorque apenas na condição de os dois nunca consumarem sexualmente a atracção mútua. Newland acaba por casar com May, mas, preso no vazio de um casamento socialmente indicado e que vive apenas de convencionalismos, continua, mesmo anos depois, a desejar Ellen. Esta concorda finalmente com a consumação da relação, mas Newland vem a saber dias depois que a condessa pretende regressar à Europa. Decidido a deixar May para a seguir, Newland descobre que a mulher está grávida (motivo que levou Ellen a partir) e recua no seu propósito, ficando com May e o bebé. Dezenas de anos mais tarde, já depois de May morrer, Newland e o filho estão em Paris, e o filho, sabendo que a condessa Olenska vive ali e que é uma velha conhecida do pai, promove um encontro entre eles, sem suspeitar do significado que isso tem para Newland. Chegados ao local, Newland envia o filho à sua frente e senta-se a olhar a janela da condessa. Acaba por decidir ir embora sem a ver.

  Porque se foi Newland sem rever a condessa? À partida, tudo parece apontar a decisão de a visitar como óbvia. Num plano superficial, é uma velha conhecida, com quem não se zangou e que já não vê há muito tempo. Seria educado e simpático vê-la. Mesmo atendendo ao tipo de relacionamento que tiveram, a visita parece impor-se: os compromissos perante May e o filho impediram-nos de consumarem a relação amorosa que desejavam. Mas agora, com May morta e o filho independente, Newland está livre para ir ao encontro do amor da sua vida. Porque vai ele embora?
  É fácil ver a história de Newland como uma de privação. Preso a um casamento convencional e desprovido de paixão, viveu longe da mulher que o fazia sentir-se vivo e diferente daquilo que foi condenado a ser. A dada altura, conta-se como erigiu dentro de si mesmo uma espécie de santuário onde Ellen reinava ("he had built up within himself a kind of sanctuary in which she throned among his secret thoughts and longings. Little by little it became the scene of his real life"). É uma boa imagem da paixão; ele oferece-lhe um reino, o único que tem para poder dar: o seu mundo interior. Esse mundo que, por definição, lhe pertence, é na verdade dela, porque é ela que nele reina. Não obstante, é para lá que ele se muda. Porque uma vida de súbdito dentro de si mesmo é mais verdadeira que uma vida de senhor fora de si – desde que seja Ellen a rainha. E somos deixados a pensar que Newland está encurralado pela realidade de tal modo que só pode ser livre dentro de si mesmo: só em pensamentos, ideias e imaginação. Eis a prisão de Newland: sem qualquer espaço para viver segundo a sua vontade, vê-se obrigado a retirar-se para dentro de si próprio.
  Também Ellen se privou: convencida por Newland a desistir de se divorciar, manteve-se ligada a um marido que nenhum significado agradável tinha para ela. Também por convenções sociais, para não ferir os sentimentos de May nem prejudicar a posição social desta, e, finalmente, para não arruinar a possibilidade de uma educação convencional do filho de Newland, abdica de uma relação com este. Condenada a um permanente distanciamento que, nos seus momentos mais agradáveis, se traduziu num estranhamento, e, nos mais difíceis, num verdadeiro ostracismo, a condessa nunca foi verdadeiramente aceite pela sociedade – com a qual, de resto, verdadeiramente não se identificava – e nunca teve facilitado o caminho para realizar os seus desejos ou corresponder às suas paixões. Newland ofereceu-se, mas nunca pôde ser seu.
  É neste quadro que Newland e Ellen se apaixonam. Inconveniente e inoportuno amor, este, que nasce e insiste em crescer apesar das proibições e inconveniências. Nada o aconselha e tudo conspira contra ele, mas ele está lá e acomoda-se, apesar de sofrer com a impossibilidade de se realizar. Mas quando a possibilidade surge, Newland vai embora, e isto parece contradizer tudo o que foi dito.
  A explicação pode ser muito simples: talvez o amor entre os dois não tenha sido impedido de prosperar durante aqueles anos para agora ter a oportunidade de florescer; pode bem ser que, pelo contrário, esse amor já tenha prosperado nas condições adversas em que nasceu e viveu ao longo do tempo, condições que, afinal, o possibilitaram. O mundo em que eles viveram era puramente convencional, feito de acontecimentos que só o eram por referência a regras de etiqueta e comportamento socialmente definidas: grandes ocorrências como uma mulher levantar-se numa festa para ir falar a um homem em vez de esperar que este se deslocasse a ela, ou passear sozinha na sua carruagem, são exemplos de eventos sem qualquer significado que não o atribuído por aquelas regras. E essas regras convencionais definiam de tal modo o sentido dos actos de cada um dos membros da sociedade que mesmo a vontade de se rebelar contra elas estava logo à partida condenada a corresponder-lhes. Assim, por exemplo, quando Newland pede a May que apressem o casamento, insistindo em que o próprio facto de não ser habitual, de ser diferente, poderia servir como razão para o fazerem (“"As if the mere ‘differently’ didn’t account for it!" The wooer insisted.), ela recusa, bem disposta, realçando a sua "originalidade": "Newland! You’re so original!" she exulted. E perante esta resposta ele afunda-se desolado na consciência de que esta suposta originalidade é na verdade a confirmação da sua vulgaridade, visto ser o que é esperado de qualquer jovem na sua condição: His heart sank, for he saw that he was saying all the things that young men in the same situation were expected to say, and that she was making the answers that instinct and tradition taught her to make—even to the point of calling him original.” Quando tenta desesperadamente fazer algo efectivamente diferente, como fugirem para casar imediatamente, ela começa, pelo contrário, a aborrecer-se, sugerindo o carácter vulgar de tal empreendimento: “"We can’t behave like people in novels, though, can we?" / "Why not—why not—why not?" / She looked a little bored by his insistence. (...) [T]hat kind of thing is rather—vulgar, isn’t it?" she suggested”. Ou seja, enquanto pretende o mesmo que qualquer outro na sua posição, sendo, portanto, "vulgar", May nota-lhe a originalidade; quando, pelo contrário, Newland tenta algo verdadeiramente diferente, ela acha-o vulgar. A ironia é óbvia, e a sugestão essencial aqui é a de que a própria rebelião aparente contra as normas só é possível, afinal, ainda no quadro dessas mesmas normas, o seu significado só nasce a partir delas, são elas que a possibilitam.
  Assim é também, de certo modo, com a paixão entre Newland e Ellen. As normas sociais que a condicionam e sufocam são afinal o que constitui o seu quadro de possibilidade. Não se escolhe o lugar onde nascemos, os pais que nos educam ou o dinheiro que nos colocam à disposição. Crescemos nas condicionantes que nos moldam, nas "circunstâncias", como Ortega y Gasset lhes chamaria, que constituem as nossas hipóteses existenciais de actuação. Os nossos limites serão sempre também os das nossas circunstâncias. O amor entre Newland e Ellen teria existido se eles se tivessem encontrado num contexto social diverso? Talvez. Mas seria outro amor, não este que eles tiveram. As circunstâncias opressivas e conspiradoras que tanto o dificultaram e impediram deram-lhe a única possibilidade que ele teve de existir durante anos. Por isso ele foi só aquilo que foi e não outra coisa.
  Que aconteceu quando Newland se viu confrontado com a hipótese de ver a condessa de novo, agora livre de quaisquer freios sociais, de quaisquer compromissos maritais ou obrigações filiais? Achou-se perante um palco estranho, chamado a representar um papel que nunca foi o seu, que nunca poderia ser, porque desse papel ele não conhece fala alguma. O amor entre Newland e Ellen existiu nos limites apertados que tanto o constrangeram. Mas ele já não podia existir fora desses limites. Esta paixão que, sem saber, o filho lhe propunha, era outra coisa e não aquela que eles tiveram, uma história para outros personagens, para personagens sem a história destes dois. Newland e Ellen tiveram um amor que não pôde existir devido ao convencionalismo. Mas à janela da condessa ele percebe que é afinal fora desse convencionalismo que ele perde todo o sentido. Que enquanto esperou proibido de nascer viveu tudo o que poderia viver, sem nada mais para acontecer agora que poderia nascer finalmente.