E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 31 de dezembro de 2017

O amante sombrio

 No livro El amor en los tiempos del cólera (Gabriel García Márquez), Florentino Ariza apaixona-se por Fermina Daza. Apesar de chegarem a noivos, ela acaba por rejeitá-lo, tomando por ilusão errónea a afeição que lhe dedicara. Fermina casa com o médico Juvenal Urbino e vivem juntos até à morte deste. Florentino segue amando Fermina e, enquanto espera a morte de Urbino, deita-se com muitas centenas de mulheres ao longo dos anos. No fim da vida, consegue finalmente juntar-se à viúva Fermina.

  Quem é Florentino Ariza? Provavelmente, nada o captura tão bem como a expressão com que Fermina ganha consciência do motivo por que o rejeitou: ele não é bem uma pessoa, é mais uma sombra, a sombra de alguém que nunca ninguém conheceu (“«Es como si no fuera una persona sino una sombra». Así era: la sombra de alguien a quien nadie conoció nunca.”). E é como se ele passasse mais de 50 anos dedicando-se a provar a verdade da sentença.
  Nenhum dos participantes na conversa em que Fermina tem esta revelação consegue trazer à memória a imagem de Florentino. Ele parece transparente, ou no máximo translúcido, alguém que podemos ver, mas não podemos fixar. Mais de 600 amantes teve Florentino. Algumas – muito poucas – chegaram a gostar muito dele, mas nenhuma o conheceu. Nenhuma chegou a saber, nomeadamente, da sua paixão por Fermina Daza. Mesmo América Vicuña, a quem tenta convencer de que vai casar, não consegue acreditar no que ele diz. E não se deve tal incredulidade apenas à idade avançada de Florentino, mas precisamente ao facto de ela não conseguir associar-lhe um gesto daqueles. Tivera ele falado de outros afectos, noites de sexo com outras mulheres, e América – talvez desiludida ou enciumada – não teria tido grandes problemas em acreditar. Mas o casamento parece um projecto para outra pessoa que não Florentino, não, pelo menos, o Florentino que ela (não) conhece.
  Tarefa difícil, a de conhecer Florentino, ou mesmo a de ir ao seu encontro. Sempre encolhido, escondido em si mesmo, ele não se abre à descoberta. E, de resto, é legítimo duvidar que algo exista para ser encontrado. A dada altura, Florentino é contactado separadamente por um moço e uma moça, que lhe pedem que redija as cartas de amor que trocam entre si. Nenhum deles sabe que é Florentino quem escreve as cartas do outro. A relação progride, as cartas produzem o efeito pretendido. Os jovens vivem e desenvolvem assim o seu amor através de Florentino Ariza, mas isso não parece provar que este seja um elemento vital, que ele faça pulsar a relação dos outros; ao invés, demonstra que, para lá de transparente, ele é em certa medida imaterial: os jovens amam-se através dele e isso diz-nos que ele é, não um corpo, mas um mero lugar de passagem. Mais tarde, já casados, os correspondentes agradecem reconhecidamente ao autor das cartas que usaram para se apaixonarem. Mas é o agradecimento que dedicamos a um espírito, a uma entidade em que acreditamos, não pela experiência, mas por um acto de fé.
  Podemos fixar Florentino nalgum ponto? Sem dúvida, o único que se oferece é a sua paixão por Fermina Daza. Ele mesmo marca como momento decisivo da sua vida aquele em que a viu pela primeira vez e se apaixonou. Esse amor que brotou não chega, porém, a fazer florescer nele uma pessoa por inteiro, pois está décadas aguardando a oportunidade de se completar: Fermina rejeita-o e não o aceita senão mais de 50 anos depois. E é como se, não podendo o amador transformar-se na coisa amada – devido à rejeição –, ele se deixasse ficar à espera dela para poder transformar-se, para poder chegar a ser uma pessoa por completo, a pessoa que está destinado a ser. De cada vez que se deita com uma mulher pela primeira vez, ele não consegue, por impotência, consumar o acto sexual, porque em cada uma dessas vezes ele repete o projecto adiado de se deitar pela primeira vez com Fermina (“Le ocurrió siempre la primera vez, con todas, desde siempre, de modo que había aprendido a convivir con aquel fantasma: cada vez había tenido que aprender otra vez, como si fuera la primera.”). Veja-se, de resto, o contraste nas suas atitudes perante a morte: na fase em que ainda é correspondido no seu afecto por Fermina, o pai desta ameaça disparar sobre ele se ele persistir em perseguir a filha. Florentino não se perturba e oferece literalmente o peito às balas, assegurando que “no hay mayor gloria que morir por amor”. Anos mais tarde, ao invés, enquanto espera pela morte de Juvenal Urbino, assusta-se com a ideia de que Fermina, ou ele mesmo, poderiam morrer antes do médico. Pecaríamos por incompreensão se julgássemos que uma diferença simples de coragem e medo explica a mudança de postura: no primeiro momento, Florentino, correspondido, tem tudo (mesmo que ainda só em perspectiva) para se tornar um homem, uma pessoa em integralidade. No segundo momento, pelo contrário, privado do que o completa, é só um projecto adiado de pessoa e teme desvanecer-se sem ter oportunidade de se realizar.
  Enquanto isso não acontece, quem ou o que é Florentino? A melhor imagem daquilo em que ele se transforma é oferecida pela mulher que lhe leva a virgindade – e talvez não seja isto um acidente, se pensarmos que o amador, sem poder transformar-se na mulher amada, acabou por se tornar na mulher que primeiro lhe ofereceu um simulacro de amor. É essa figura fugidia – que o arrastou para uns lençóis fugazes e desapareceu de seguida sem mostrar o rosto – que lhe oferece a imagem que ele mostra às suas parceiras daí em diante: a de uma sombra, alguém que se lhes intromete na cama e desaparece sem elas nunca chegarem bem a saber quem é.
  Mas ser tal coisa é ser já alguma coisa. Florentino existe, tem uma presença e oferece histórias e casos a essas mulheres que se vão deitando com ele. Só que ele não é muito mais do que isso – não é muito mais que um amante da cabeça aos pés. Assume o papel de amante a tal ponto que não consegue sequer escrever cartas comerciais, transformando-as todas em cartas de amor (“... escribía cualquier cosa con tanta pasión, que hasta los documentos oficiales parecían de amor. Los manifiestos de embarque le salían rimados por mucho que se esforzara en evitarlo, y las cartas comerciales de rutina tenían un aliento lírico que les restaba autoridad.”). Amando mulheres sem rosto, mas nunca deixando de adorar o de Fermina, ele é um amante romântico na alma e ordinário no corpo, dramático no sofrimento e ridículo no prazer. Ou, nas palavras de uma das suas concubinas (Sara Noriega), “amor del alma de la cintura para arriba y amor del cuerpo de la cintura para abajo”.
  Resumido a um papel de amante, Florentino torna-se aquilo de que, no nosso desejo, gostamos (ou que gostamos de encontrar) na pessoa que amamos: precisamente o desejo dessa pessoa por nós, a dedicação que ela nos dirige; nas manifestações mais infantis ou patológicas, chegamos a ressentir a existência independente dessa pessoa, os caminhos de vida que ela se mostra capaz de percorrer sem nós. São esses caminhos que Florentino não tem: ele é um amante e nada mais, não é nada senão dedicação imediata às suas companheiras de leito e adoração fiel da sua amada distante. Quando sofremos com a independência do objecto amado, todavia, custando-nos o facto de não esgotarmos a subjectividade dessa pessoa, falhamos em perceber que é justamente essa subjectividade que nos transcende – essa pessoa que gosta de outras coisas, tem outras relações, vive para lá dos encontros connosco – a causa do nosso amor. Sem isso, não existiria verdadeiramente uma pessoa de quem gostar, pelo que é uma sombra o que desejamos quando desejamos alguém apaixonado por nós e nada mais. Daí a sugestão de que aquelas que mais desejam Florentino não desejam afinal mais do que a sombra de alguém que falta nas suas vidas. Assim acontece, por exemplo, com Olimpia Zuleta, a mulher que desejava um amante na sua vida que lhe permitisse escapar ao marido possessivo que acaba dando-lhe a morte: Florentino não foi mais que uma sombra para ela, a sombra onde ela deixou nascer escondida a liberdade que o marido lhe negava.
  Ainda nesta linha, é como se Juvenal fosse a outra parte, como se ele trouxesse afinal o conteúdo da pessoa que Fermina não pôde encontrar em Florentino. Quando se sugere que Juvenal é "el hombre contrario" em relação a Florentino, a ideia a reter é precisamente a de que aquele, sendo o inverso deste, tem tudo o que lhe falta. Ele não oferece a Fermina um amor apaixonado como o do seu primeiro pretendente – nem ela, aliás, tem a ilusão de amar o médico. Mas este é um homem cheio de feitos (e defeitos), cheio de realizações e de histórias, com uma carreira e um nome. Conhecido de todos e cheio de contactos e relações, Juvenal é a pessoa independente que actua como causa para o amor dedicado à pessoa amada. Só que não há amor apaixonado nele, e a mesma luz que nos mostra todos os seus predicados de homem grande permite-nos ao mesmo tempo perceber que ele não projecta a sombra de um amante.
  É essa sombra que encontramos na figura de Florentino. Não nos deve admirar que a única pessoa, para lá da mãe, a quem Florentino se propõe falar de Fermina seja Leona Cassiani. Pois esta é precisamente a única mulher de quem se tornou próximo sem sexo a juntá-los, e esta circunstância faz com que com ela ele esteja mais próximo de aparecer como pessoa independente, um homem para lá do papel de amante a que resume a sua vida em geral. Por isto ele quase se mostra a conhecer no que de mais essencial o constitui – a sua paixão por Fermina –, embora acabe por não conseguir fazê-lo, calando-se sobre o assunto. A sua mãe permanece, assim, a única mulher com quem falou sobre os sentimentos amorosos que o definem. Mas veja-se também o que sucede com ela: perde a razão e deixa de o reconhecer, indo ao ponto de deixar de se conhecer a si mesma. A crise de identidade é afinal um bom espelho da diluição da pessoa do filho no projecto adiado de pessoa em que ele se tornou.
  A dada altura, Florentino garante a Fermina que falou a sério toda a sua vida (“– Desde que nací -dijo Florentino Ariza -, no he dicho una sola cosa que no sea en serio.”). Se associarmos a seriedade e a gravidade ao peso, e este à presença – deixando o riso e a alegria para a descontracção, a leveza e o etéreo –, então fica sugerido o inverso do que vínhamos apontando. Pois vimos dizendo que Florentino peca por ausência e indefinição, mas ele de facto é grave, fúnebre até, com “su índole enigmática y su carácter sombrío”: é como se passasse o livro de luto pelo seu amor perdido, morto sem ter tido hipótese de nascer (e, de facto, no final vive-o como uma espécie de amor ressuscitado). Mas essa gravidade, esse peso, não se traduzem numa presença mais efectiva no reino da existência, e a razão é muito simples. É verdade que falta a Florentino o humor, a brincadeira, a leveza. Mas é erróneo pensar que estas vivem alimentando-se de si mesmas. O verdadeiro humor vive das coisas sérias: é com estas que se brinca. Só podemos tornar leve o que é pesado, porque só pode levantar voo o que tem os pés assentes na terra. Ora, é precisamente porque à seriedade de Florentino falta peso e presença que ele não pode chegar a ser leve e brincalhão: a sua leveza não é a da graça, mas sim a dos fantasmas. A única brincadeira de Florentino – ou, pelo menos, a única ocasião em que faz rir alguém – surge no momento em que se prepara para se deitar com Fermina e vai atirando para cima desta a roupa que vai despindo. Ora, isto é uma óptima confirmação do que acabamos de concluir: precisamente agora que ele ganha presença, que começa a completar-se ao encontrar Fermina, ganha peso verdadeiramente e pode, enfim, tornar-se leve: já pode brincar.
  Porque resolve agora Fermina aceitar Florentino? Que traz ele à sua vida? Lembremos o terrível medo da culpa que caracteriza Fermina desde criança: atormentada pelo “fantasma de la culpa”, sempre que este paira ameaçando-a (o que sucedia em situações em que algo mau acontecia e era preciso responsabilizar alguém), era de tal modo incapaz de suportar o sentimento que só se aliviava quando encontrava alguém a quem responsabilizar. Quando Florentino se apresenta diante dela depois da morte de Juvenal, ela explode numa censura furiosa contra ele. Talvez possamos explicar esta fúria sem razões precisamente através desse processo de descarga da culpa que ela não suporta sentir, de responsabilização pelos pensamentos que ela traz consigo e sente que não deveria. Quando finalmente se junta a ele, que faz ela, afinal, senão juntar-se a esse homem que pode culpar de tudo, que pode responsabilizar sem medos – o homem que, enfim, lhe há-de levar embora o fantasma da culpa? Ninguém melhor, com efeito, para carregar um fantasma do que alguém que foi um fantasma toda a vida. Fantasma para os outros, que dele pouco retinham, e fantasma até para si mesmo: lembre-se como teve de aprender a viver com “aquel fantasma” (o da impotência) que aparecia de cada vez que se deitava pela primeira vez com uma mulher.
  Feito um fantasma a maior parte da sua vida, Florentino tornou-se no fim o homem de que Fermina precisava. Esta não precisou de se tornar coisa nenhuma: foi sempre aquilo que lhe faltava para ele se completar. Nenhum deles evolui verdadeiramente até se encontrarem, mas o tempo que durou até esse momento foi afinal essencial para que a distância, tão grande, tornasse mais verdadeiro esse encontro tão adiado.

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