E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

O fantasma de capote


Krukiniksi

  No conto "O capote", de Nikolai Gógol, Akáki Akákievitch é um conselheiro titular de "um certo ministério" em Petersburgo. É um copista de processos, desprezado e gozado pelos colegas. O seu casaco velho e roto está já demasiado gasto para ser remendado, de modo que se vê obrigado a um grande esforço de poupança e privação para conseguir comprar um capote novo, o que consegue finalmente. O capote é-lhe, porém, roubado. O frio e as emoções nas tentativas de reavê-lo fazem com que Akáki adoeça gravemente e acabe por morrer. Volta, no entanto, como fantasma à procura do capote pelas ruas, não se satisfazendo até levar o da "personalidade influente" que recusara ajudá-lo e até o humilhara quando ele em vida lhe pedira auxílio.

  Quem é Akáki Akákievitch? A primeira resposta tem de ser a de que ele não é ninguém. Ignorado por todos os que não têm de conviver ou interagir com ele, passa facilmente despercebido em público. Apaga-se no seu trabalho a ponto de prosseguir com ele sem reagir às histórias inventadas sobre si que contam na sua presença, às perguntas trocistas que lhe dirigem ou às brincadeiras que o tomam por objecto. Só desperta quando as intervenções dos outros perturbam o seu labor – quando, por exemplo, lhe empurram a mão, impedindo-o de escrever. O que confirma o seu apagamento no trabalho mecânico que o satisfaz: sem conteúdo pessoal, identifica-se com a sua tarefa burocrática de tal modo que só se perturba quando é impedido de a prosseguir. Incapaz de aparecer à superfície da vida social, não consegue sequer entabular um discurso com frases propriamente ditas, limitando-o, na maioria dos casos, a preposições, advérbios e interjeições sem sentido. A criação não pode ter lugar no seu universo e mesmo o seu profissionalismo é limitado à cópia subserviente – sofre quando lhe atribuem alguma tarefa que vai para lá disso.
  Tão inexistente é Akáki que não nos deve admirar a sua habilidade para andar levemente na rua com o propósito de poupar a sola dos sapatos. Já em vida, com efeito, Akáki é um verdadeiro fantasma e, assim, é natural a sua capacidade de flutuar. Como também não surpreende a deambulação sem rumo que toma quando caminha no sentido oposto ao pretendido, distraído com o preço do capote que quer comprar, qual espírito inquieto sem rumo ou lugar de pouso para as suas preocupações.
  Mas Akáki não é um fantasma vivo apenas na ausência: também o é já nas assombrações. Quando finalmente reage a um colega que lhe perturba o trabalho, dirige-lhe uma censura ("Deixem-me, porque me fazem isso?") que persegue esse colega e lhe atormenta a consciência até ao fim da vida. Do mesmo modo, depois de o "homem influente" o despachar e humilhar, aquele sente remorsos e pesar pelo que fez, a ponto de buscar desligar-se das preocupações em distracções sociais que lhe esgotem a mente.
  Mesmo depois de ter o seu capote, Akáki não muda no essencial. Graças ao capote, aparece aos olhos dos outros, passa a ser visto. Mas continua a ser um fantasma dentro dele. A alegria por ter finalmente o que queria não é partilhada com ninguém nem tem qualquer exterioridade. Akáki solta apenas "risinhos de prazer íntimo". O seu júblio é puramente interior e mesmo quando os seus colegas o cercam para partilhar o seu contentamento pedindo-lhe uma festa, ele, envergonhado e atrapalhado, não é capaz de corresponder. É o chefe que finalmente se predispõe a organizar a celebração, mas Akáki começa até por recusar comparecer na festa em sua honra. Vê-se obrigado a ir, mas no meio da celebração não sabe o que dizer, onde pôr as mãos ou os pés: no seio das pessoas que conversam, riem e se divertem, ele não sabe o que deve fazer, porque não tem lugar no meio da gente.
  A arte de Gógol neste conto, tão simples e tão difícil de atingir, é a de revelar na comédia a tragédia. Akáki é patético na sua inépcia, miserável na sua humildade, inexistente nas suas limitações. Mas em tudo isso é digno, e é a nobreza que nunca o abandona que nos obriga a reconhecer-lhe o direito a ser levado a sério. Pensamos primeiro que Gógol nos propõe rir do ridículo Akákievitch, mas a aridez dos seus motivos, angústias e gestos leva-nos antes a sofrer a sua tragédia. Como lembra Nabokov (Lectures on Russian Literature), a diferença entre o cómico e o cósmico é de uma sílaba. Esta é a perspectiva com que Chesterton ("On running after one's hat") nos propõe olhar um homem a correr atrás do chapéu: à primeira vista, podemos achá-lo ridículo, mas tal correria não é mais humilhante do que perseguir a mulher amada. Muitas actividades humanas são cómicas e ridículas, mas tantas vezes são essas as mais valiosas ("...man is a very comic creature, and most of the things he does are comic—eating, for instance. And the most comic things of all are exactly the things that are most worth doing—such as making love. A man running after a hat is not half so ridiculous as a man running after a wife."). Dispomo-nos a rir do desgraçado Akáki a perseguir o seu capote – pela mesma razão por que achamos cómico um homem correr atrás do chapéu –, mas rir dele é troçar da dignidade frágil de quem combate o frio. Nada é tão frágil como uma criatura com frio e, por isso, um capote que nos aquece não nos torna mais humanos, apesar de nos fazer mais vistosos. Ao contrário, é precisamente quando perde o seu manto que Akákievitch mostra a sua dignidade – acordado pelo frio que o faz desesperar e pela injustiça do roubo que lhe leva o pouco que tinha. Akáki não se tornou uma pessoa por perder o capote; na verdade, é nos nossos olhos que a sua tragédia acorda a humanidade adormecida. Nabokov aventa que é como fantasma que Akáki aparece mais tangível, mais real ("his ghost seems to be the most tangible, the most real part of his being"). Mas é da fragilidade deste desgraçado que provém a força desse fantasma ("But Akaki Akakievich's ghost existed solely on the strength of his lacking a coat").
  O fantasma de Akáki volta porque a (in)justiça não morre e só os fantasmas podem castigar. Mas é na sua vida despojada e abandonada que encontramos aquilo que nos faz pulsar apesar do frio. Talvez Akákievitch tenha sido sempre um fantasma, mas é afinal por isso que ele pode cumprir tão bem o seu papel, o papel que cabe a todos os fantasmas: o de nos manterem acordados.

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