No livro The Age of Innocence,
de Edith Wharton, Newland Archer está noivo de May Welland quando
conhece a prima desta, a condessa Ellen Olenska. Ellen está de
regresso a Nova Iorque, depois de uma escandalosa separação do seu marido, um conde polaco. A sua intenção de obter o divórcio ameaça cobrir de opóbrio toda a família e Newland é designado para a convencer a desistir do propósito, o que consegue. Newland acaba por dar por si apaixonado por Ellen e pretende deixar May, mas Ellen rejeita-o, por consideração pela prima, e aceita permanecer em Nova Iorque apenas na condição de os dois nunca consumarem sexualmente a atracção mútua. Newland acaba por casar com May, mas, preso no vazio de um casamento socialmente indicado e que vive apenas de convencionalismos, continua, mesmo anos depois, a desejar Ellen. Esta concorda finalmente com a consumação da relação, mas Newland vem a saber dias depois que a condessa pretende regressar à Europa. Decidido a deixar May para a seguir, Newland descobre que a mulher está grávida (motivo que levou Ellen a partir) e recua no seu propósito, ficando com May e o bebé. Dezenas de anos mais tarde, já depois de May morrer, Newland e o filho estão em Paris, e o filho, sabendo que a condessa Olenska vive ali e que é uma velha conhecida do pai, promove um encontro entre eles, sem suspeitar do significado que isso tem para Newland. Chegados ao local, Newland envia o filho à sua frente e senta-se a olhar a janela da condessa. Acaba por decidir ir embora sem a ver.
Porque se foi Newland sem rever a condessa? À partida, tudo parece apontar a decisão de a visitar como óbvia. Num plano superficial, é uma velha conhecida, com quem não se zangou e que já não vê há muito tempo. Seria educado e simpático vê-la. Mesmo atendendo ao tipo de relacionamento que tiveram, a visita parece impor-se: os compromissos perante May e o filho impediram-nos de consumarem a relação amorosa que desejavam. Mas agora, com May morta e o filho independente, Newland está livre para ir ao encontro do amor da sua vida. Porque vai ele embora?
É fácil ver a história de Newland como uma de privação. Preso a um casamento convencional e desprovido de paixão, viveu longe da mulher que o fazia sentir-se vivo e diferente daquilo que foi condenado a ser. A dada altura, conta-se como erigiu dentro de si mesmo uma espécie de santuário onde Ellen reinava ("he had built up within himself a kind of sanctuary in which she throned among his secret thoughts and longings. Little by little it became the scene of his real life"). É uma boa imagem da paixão; ele oferece-lhe um reino, o único que tem para poder dar: o seu mundo interior. Esse mundo que, por definição, lhe pertence, é na verdade dela, porque é ela que nele reina. Não obstante, é para lá que ele se muda. Porque uma vida de súbdito dentro de si mesmo é mais verdadeira que uma vida de senhor fora de si – desde que seja Ellen a rainha. E somos deixados a pensar que Newland está encurralado pela realidade de tal modo que só pode ser livre dentro de si mesmo: só em pensamentos, ideias e imaginação. Eis a prisão de Newland: sem qualquer espaço para viver segundo a sua vontade, vê-se obrigado a retirar-se para dentro de si próprio.
Também Ellen se privou: convencida por Newland a desistir de se divorciar, manteve-se ligada a um marido que nenhum significado agradável tinha para ela. Também por convenções sociais, para não ferir os sentimentos de May nem prejudicar a posição social desta, e, finalmente, para não arruinar a possibilidade de uma educação convencional do filho de Newland, abdica de uma relação com este. Condenada a um permanente distanciamento que, nos seus momentos mais agradáveis, se traduziu num estranhamento, e, nos mais difíceis, num verdadeiro ostracismo, a condessa nunca foi verdadeiramente aceite pela sociedade – com a qual, de resto, verdadeiramente não se identificava – e nunca teve facilitado o caminho para realizar os seus desejos ou corresponder às suas paixões. Newland ofereceu-se, mas nunca pôde ser seu.
É neste quadro que Newland e Ellen se apaixonam. Inconveniente e inoportuno amor, este, que nasce e insiste em crescer apesar das proibições e inconveniências. Nada o aconselha e tudo conspira contra ele, mas ele está lá e acomoda-se, apesar de sofrer com a impossibilidade de se realizar. Mas quando a possibilidade surge, Newland vai embora, e isto parece contradizer tudo o que foi dito.
A explicação pode ser muito simples: talvez o amor entre os dois não tenha sido impedido de prosperar durante aqueles anos para agora ter a oportunidade de florescer; pode bem ser que, pelo contrário, esse amor já tenha prosperado nas condições adversas em que nasceu e viveu ao longo do tempo, condições que, afinal, o possibilitaram. O mundo em que eles viveram era puramente convencional, feito de acontecimentos que só o eram por referência a regras de etiqueta e comportamento socialmente definidas: grandes ocorrências como uma mulher levantar-se numa festa para ir falar a um homem em vez de esperar que este se deslocasse a ela, ou passear sozinha na sua carruagem, são exemplos de eventos sem qualquer significado que não o atribuído por aquelas regras. E essas regras convencionais definiam de tal modo o sentido dos actos de cada um dos membros da sociedade que mesmo a vontade de se rebelar contra elas estava logo à partida condenada a corresponder-lhes. Assim, por exemplo, quando Newland pede a May que apressem o casamento, insistindo em que o próprio facto de não ser habitual, de ser diferente, poderia servir como razão para o fazerem (“"As if the mere ‘differently’ didn’t account for it!" The wooer insisted.”), ela recusa, bem disposta, realçando a sua "originalidade": “"Newland! You’re so original!" she exulted.” E perante esta resposta ele afunda-se desolado na consciência de que esta suposta originalidade é na verdade a confirmação da sua vulgaridade, visto ser o que é esperado de qualquer jovem na sua condição: “His heart sank, for he saw that he was saying all the things that young men in the same situation were expected to say, and that she was making the answers that instinct and tradition taught her to make—even to the point of calling him original.” Quando tenta desesperadamente fazer algo efectivamente diferente, como fugirem para casar imediatamente, ela começa, pelo contrário, a aborrecer-se, sugerindo o carácter vulgar de tal empreendimento: “"We can’t behave like people in novels, though, can we?" / "Why not—why not—why not?" / She looked a little bored by his insistence. (...) [T]hat kind of thing is rather—vulgar, isn’t it?" she suggested”. Ou seja, enquanto pretende o mesmo que qualquer outro na sua posição, sendo, portanto, "vulgar", May nota-lhe a originalidade; quando, pelo contrário, Newland tenta algo verdadeiramente diferente, ela acha-o vulgar. A ironia é óbvia, e a sugestão essencial aqui é a de que a própria rebelião aparente contra as normas só é possível, afinal, ainda no quadro dessas mesmas normas, o seu significado só nasce a partir delas, são elas que a possibilitam.
Assim é também, de certo modo, com a paixão entre Newland e Ellen. As normas sociais que a condicionam e sufocam são afinal o que constitui o seu quadro de possibilidade. Não se escolhe o lugar onde nascemos, os pais que nos educam ou o dinheiro que nos colocam à disposição. Crescemos nas condicionantes que nos moldam, nas "circunstâncias", como Ortega y Gasset lhes chamaria, que constituem as nossas hipóteses existenciais de actuação. Os nossos limites serão sempre também os das nossas circunstâncias. O amor entre Newland e Ellen teria existido se eles se tivessem encontrado num contexto social diverso? Talvez. Mas seria outro amor, não este que eles tiveram. As circunstâncias opressivas e conspiradoras que tanto o dificultaram e impediram deram-lhe a única possibilidade que ele teve de existir durante anos. Por isso ele foi só aquilo que foi e não outra coisa.
Que aconteceu quando Newland se viu confrontado com a hipótese de ver a condessa de novo, agora livre de quaisquer freios sociais, de quaisquer compromissos maritais ou obrigações filiais? Achou-se perante um palco estranho, chamado a representar um papel que nunca foi o seu, que nunca poderia ser, porque desse papel ele não conhece fala alguma. O amor entre Newland e Ellen existiu nos limites apertados que tanto o constrangeram. Mas ele já não podia existir fora desses limites. Esta paixão que, sem saber, o filho lhe propunha, era outra coisa e não aquela que eles tiveram, uma história para outros personagens, para personagens sem a história destes dois. Newland e Ellen tiveram um amor que não pôde existir devido ao convencionalismo. Mas à janela da condessa ele percebe que é afinal fora desse convencionalismo que ele perde todo o sentido. Que enquanto esperou proibido de nascer viveu tudo o que poderia viver, sem nada mais para acontecer agora que poderia nascer finalmente.
Assim é também, de certo modo, com a paixão entre Newland e Ellen. As normas sociais que a condicionam e sufocam são afinal o que constitui o seu quadro de possibilidade. Não se escolhe o lugar onde nascemos, os pais que nos educam ou o dinheiro que nos colocam à disposição. Crescemos nas condicionantes que nos moldam, nas "circunstâncias", como Ortega y Gasset lhes chamaria, que constituem as nossas hipóteses existenciais de actuação. Os nossos limites serão sempre também os das nossas circunstâncias. O amor entre Newland e Ellen teria existido se eles se tivessem encontrado num contexto social diverso? Talvez. Mas seria outro amor, não este que eles tiveram. As circunstâncias opressivas e conspiradoras que tanto o dificultaram e impediram deram-lhe a única possibilidade que ele teve de existir durante anos. Por isso ele foi só aquilo que foi e não outra coisa.
Que aconteceu quando Newland se viu confrontado com a hipótese de ver a condessa de novo, agora livre de quaisquer freios sociais, de quaisquer compromissos maritais ou obrigações filiais? Achou-se perante um palco estranho, chamado a representar um papel que nunca foi o seu, que nunca poderia ser, porque desse papel ele não conhece fala alguma. O amor entre Newland e Ellen existiu nos limites apertados que tanto o constrangeram. Mas ele já não podia existir fora desses limites. Esta paixão que, sem saber, o filho lhe propunha, era outra coisa e não aquela que eles tiveram, uma história para outros personagens, para personagens sem a história destes dois. Newland e Ellen tiveram um amor que não pôde existir devido ao convencionalismo. Mas à janela da condessa ele percebe que é afinal fora desse convencionalismo que ele perde todo o sentido. Que enquanto esperou proibido de nascer viveu tudo o que poderia viver, sem nada mais para acontecer agora que poderia nascer finalmente.
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