No livro Cabbages and Kings, de
O. Henry, no cap. VII, Beelzebub Blythe, um mendigo alcoólico, seguro de que
Frank Goodwin é o homem que esconde o dinheiro roubado pelo antigo presidente
da terra e que as autoridades procuram, prepara-se para o chantagear. Sentam-se
num bar e Goodwin oferece-lhe um copo. Conversam um pouco e despedem-se,
acabando Blythe por não ir em frente com a chantagem. Considera que “a gentleman can't
blackmail the man that he drinks with.” Mais tarde, ao
mesmo Beelzebub não só não resta qualquer dinheiro como esgotou todas as
hipóteses de caridade de que dispunha: é devedor de todos e já não encontra
ninguém disposto a dar-lhe esmola. Precisando urgentemente de beber, renova o
propósito de chantagear Goodwin. Embora lhe imponha certas condições (como a de
abandonar o país), Goodwin aceita pagar-lhe. Não lhe dá, todavia, o dinheiro no
imediato. Notando a forte privação de Beelzebub, oferece-lhe uma bebida, mas
Blythe, não obstante o desespero da sede, recusa o copo, considerando que “a
gentleman can't drink with the man that he blackmails.”
O que move Beelzebub Blythe? A bebida
destruiu-lhe tudo: a vida, as ligações (de amizade, amorosas, profissionais…),
os meios de subsistência, a casa, a dignidade e o respeito por si mesmo. O
álcool fá-lo descer ao ponto de chantagear Goodwin, uma atitude que ele
nitidamente despreza e não praticaria em condições normais.
Pela bebida, Blythe separa-se de si mesmo, i.
e., distancia-se da representação que faz de si, da pessoa a que o álcool o
arrancou. Quando mendiga, quando se arrasta, pede ou chantageia, Blythe não é
já a pessoa que construiu antes de beber, não exibe o carácter que lhe
permitiria reconhecer-se se se visse ao espelho. O homem que actua deste modo
não é verdadeiramente julgado pelo homem que o condena, porque eles estão
separados. Se ele continua a condenar todos esses gestos que sem o alcoolismo
seria incapaz de adoptar, fá-lo somente em homenagem ao conhecimento e
proximidade que em tempos estes dois homens, que ainda coabitam, tiveram um do
outro. Quando faz todas aquelas coisas, Blythe está já muito longe de si mesmo.
No livro A Morte e a Morte de Quincas
Berro d'Água, de Jorge Amado, Joaquim Soares da Cunha, até então um funcionário
público pacato e caseiro, deixa um dia a família e as formalidades respeitáveis
para viver antes um quotidiano feito de mundanidades, vadiagem e diversão
desbragada. Trocando a "cachaça caseira", a família séria e a roupa
limpa por bebedeiras de botequins, companhia de prostitutas e trapos sebentos,
torna-se Quincas, um malandro cujas tropelias, quando chegam aos ouvidos dos
familiares que se recusam a identificá-lo com o sério Joaquim que haviam
conhecido e que passaram a tratar como falecido, levam-nos a pensar que
"era como se um morto se levantasse do túmulo para macular a própria
memória".
Beelzebub e Quincas são os bêbados que se
libertaram de uma vida de educação comedida para abraçarem o vício do álcool de
rua. Os cavalheiros amarrados com paletós e passos medidos são história
passada, irreconhecíveis nos boémios sem vergonha cuja sede com água se ofende.
Os dois recuos de Blythe perante Frank Goodwin, porém, mostram-nos como nesses
dois encontros, em que ele sente afastar-se o mais possível do cavalheiro que
foi para um novo fundo de si mesmo, Blythe acaba por se distinguir afinal de
Quincas, ao revelar que nele ainda resta algo do cavalheiro que ele julgava já
viver longe, lá em cima, a desprezar-lhe a chantagem a que agora se propõe.
Temos assim que Quincas e Beelzebub,
exteriormente tão semelhantes, revelam-se nuclearmente diferentes. Mesmo
depois de morto, Quincas ri de tudo: zomba tanto dos outros (leia-se: da
família a horrorizar-se com as suas tropelias) como do cavalheiro que ele
próprio foi e que aparece ainda representado na fronte dessa família intolerante
– o sério Joaquim só existiu, na verdade, como resposta às exigências dos
parentes snobes. Quincas Berro d'Água despreza esse cavalheiro em que o
quiseram transformar e troça da família incapaz de se despedir dele. Blythe, ao
invés, não ri, sendo antes ele o desprezado pelo cavalheiro que foi noutra vida.
Tal circunstância trai uma verdade só aparentemente contraditória com estas
atitudes: Quincas foi sempre um vadio temporariamente disfarçado de cavalheiro,
enquanto Blythe se revela um cavalheiro agora travestido de vadio. É
precisamente por continuar a trazer dentro de si esse cavalheiro – enterrado,
mas não falecido – que Beelzebub sente o desprezo dos mais severos olhos que
pode carregar: os que usamos para nos examinarmos a nós mesmos. Talvez isto o
impeça de sorrir e gozar a bebida irresponsável como o folgazão Quincas; mas é
também o que o impede de se tornar um canalha.
Aparentemente, a bebida esgota agora o
sentido da vida de Blythe. É para isto que ele se endivida, mendiga,
chantageia; é para isto que abdica de qualquer ilusão de respeito por si mesmo,
de qualquer princípio: para poder beber. Mas não bebe neste momento em que
finalmente chantageia Goodwin, porque aí algo a permanecer mais forte que a
bebida o segura: o seu sentido de cavalheirismo. Ele sabe que quando um homem
esquece que a paridade do companheirismo é um pressuposto da partilha de um
copo, é porque já se afogou na bebida. Neste momento ele desce à deslealdade e
é rasteiro com o seu companheiro de mesa. Mas recusa-se a perder a face: quando
chantageia, um verdadeiro cavalheiro não bebe. Ele sabe que se tornou um
desgraçado, um miserável, e já perdeu a vergonha. Mas sabe também que, despido
de dignidade, vai poder, ainda assim, continuar a andar de pé, como fazem os
senhores.