E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Com quem bebe um cavalheiro?

  No livro Cabbages and Kings, de O. Henry, no cap. VII, Beelzebub Blythe, um mendigo alcoólico, seguro de que Frank Goodwin é o homem que esconde o dinheiro roubado pelo antigo presidente da terra e que as autoridades procuram, prepara-se para o chantagear. Sentam-se num bar e Goodwin oferece-lhe um copo. Conversam um pouco e despedem-se, acabando Blythe por não ir em frente com a chantagem. Considera que “a gentleman can't blackmail the man that he drinks with.” Mais tarde, ao mesmo Beelzebub não só não resta qualquer dinheiro como esgotou todas as hipóteses de caridade de que dispunha: é devedor de todos e já não encontra ninguém disposto a dar-lhe esmola. Precisando urgentemente de beber, renova o propósito de chantagear Goodwin. Embora lhe imponha certas condições (como a de abandonar o país), Goodwin aceita pagar-lhe. Não lhe dá, todavia, o dinheiro no imediato. Notando a forte privação de Beelzebub, oferece-lhe uma bebida, mas Blythe, não obstante o desespero da sede, recusa o copo, considerando que “a gentleman can't drink with the man that he blackmails.

  O que move Beelzebub Blythe? A bebida destruiu-lhe tudo: a vida, as ligações (de amizade, amorosas, profissionais…), os meios de subsistência, a casa, a dignidade e o respeito por si mesmo. O álcool fá-lo descer ao ponto de chantagear Goodwin, uma atitude que ele nitidamente despreza e não praticaria em condições normais.
  Pela bebida, Blythe separa-se de si mesmo, i. e., distancia-se da representação que faz de si, da pessoa a que o álcool o arrancou. Quando mendiga, quando se arrasta, pede ou chantageia, Blythe não é já a pessoa que construiu antes de beber, não exibe o carácter que lhe permitiria reconhecer-se se se visse ao espelho. O homem que actua deste modo não é verdadeiramente julgado pelo homem que o condena, porque eles estão separados. Se ele continua a condenar todos esses gestos que sem o alcoolismo seria incapaz de adoptar, fá-lo somente em homenagem ao conhecimento e proximidade que em tempos estes dois homens, que ainda coabitam, tiveram um do outro. Quando faz todas aquelas coisas, Blythe está já muito longe de si mesmo.
  No livro A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água, de Jorge Amado, Joaquim Soares da Cunha, até então um funcionário público pacato e caseiro, deixa um dia a família e as formalidades respeitáveis para viver antes um quotidiano feito de mundanidades, vadiagem e diversão desbragada. Trocando a "cachaça caseira", a família séria e a roupa limpa por bebedeiras de botequins, companhia de prostitutas e trapos sebentos, torna-se Quincas, um malandro cujas tropelias, quando chegam aos ouvidos dos familiares que se recusam a identificá-lo com o sério Joaquim que haviam conhecido e que passaram a tratar como falecido, levam-nos a pensar que "era como se um morto se levantasse do túmulo para macular a própria memória".
  Beelzebub e Quincas são os bêbados que se libertaram de uma vida de educação comedida para abraçarem o vício do álcool de rua. Os cavalheiros amarrados com paletós e passos medidos são história passada, irreconhecíveis nos boémios sem vergonha cuja sede com água se ofende. Os dois recuos de Blythe perante Frank Goodwin, porém, mostram-nos como nesses dois encontros, em que ele sente afastar-se o mais possível do cavalheiro que foi para um novo fundo de si mesmo, Blythe acaba por se distinguir afinal de Quincas, ao revelar que nele ainda resta algo do cavalheiro que ele julgava já viver longe, lá em cima, a desprezar-lhe a chantagem a que agora se propõe.
  Temos assim que Quincas e Beelzebub, exteriormente tão semelhantes, revelam-se nuclearmente diferentes. Mesmo depois de morto, Quincas ri de tudo: zomba tanto dos outros (leia-se: da família a horrorizar-se com as suas tropelias) como do cavalheiro que ele próprio foi e que aparece ainda representado na fronte dessa família intolerante – o sério Joaquim só existiu, na verdade, como resposta às exigências dos parentes snobes. Quincas Berro d'Água despreza esse cavalheiro em que o quiseram transformar e troça da família incapaz de se despedir dele. Blythe, ao invés, não ri, sendo antes ele o desprezado pelo cavalheiro que foi noutra vida. Tal circunstância trai uma verdade só aparentemente contraditória com estas atitudes: Quincas foi sempre um vadio temporariamente disfarçado de cavalheiro, enquanto Blythe se revela um cavalheiro agora travestido de vadio. É precisamente por continuar a trazer dentro de si esse cavalheiro – enterrado, mas não falecido – que Beelzebub sente o desprezo dos mais severos olhos que pode carregar: os que usamos para nos examinarmos a nós mesmos. Talvez isto o impeça de sorrir e gozar a bebida irresponsável como o folgazão Quincas; mas é também o que o impede de se tornar  um canalha.
  Aparentemente, a bebida esgota agora o sentido da vida de Blythe. É para isto que ele se endivida, mendiga, chantageia; é para isto que abdica de qualquer ilusão de respeito por si mesmo, de qualquer princípio: para poder beber. Mas não bebe neste momento em que finalmente chantageia Goodwin, porque aí algo a permanecer mais forte que a bebida o segura: o seu sentido de cavalheirismo. Ele sabe que quando um homem esquece que a paridade do companheirismo é um pressuposto da partilha de um copo, é porque já se afogou na bebida. Neste momento ele desce à deslealdade e é rasteiro com o seu companheiro de mesa. Mas recusa-se a perder a face: quando chantageia, um verdadeiro cavalheiro não bebe. Ele sabe que se tornou um desgraçado, um miserável, e já perdeu a vergonha. Mas sabe também que, despido de dignidade, vai poder, ainda assim, continuar a andar de pé, como fazem os senhores. 

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