E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 14 de outubro de 2018

A honra dos loucos


  Nos capítulos VIII ("The Admiral") e IX ("The Flag Paramount"), do livro Cabbages and Kings, de O. Henry, conta-se a história de Felipe Carrera, um homem que, por acaso de caprichos e graçolas, é nomeado almirante da minúscula armada (com um único barco) da República de Anchúria. Tido como nascido só com metade da inteligência que lhe era devida, Carrera é conhecido como "el pobrecito loco" entre as gentes locais. Mas apesar de se deixar quase sempre mudo em terra, ciente das suas limitações intelectuais, ele é um marinheiro exímio e corajoso ("He was a perfect sailor, if an imperfect man"). Após meses sem salário nem tarefas, o almirante recebe finalmente uma missão: é encarregue de ir buscar mantimentos. Quando chega ao local indicado, encontra em vez disso três homens que lhe pedem alimentos e transporte. O almirante começa por aceder, mas reconhece num deles Don Sabas Placido, figura importante entre os revolucionários procurados pelo Governo. Placido, cheio de jactância e boa disposição, tenta convencer Carrera a ajudá-lo a fugir, oferecendo-lhe mesmo subornos de grande monta, mas o obstinado almirante recusa sempre, dizendo: "They will stand you (...) with your face to a wall and shoot you dead. That is the way they kill traitors. (...) I am the admiral, and I will take you to them." Na escaramuça que se segue, Placido acaba por matar Carrera com um disparo. Tudo isto incomoda pouco Don Sabas, que não tem mais que um interesse corriqueiro pela ridícula Anchúria: é um homem do mundo, de horizontes mais vastos e ambições mais longínquas. As revoluções daquela república são para ele meras distracções, e aquele almirante e a sua armada não mais que uma piada. Mas ele exulta quando vê a bandeira da força naval de Anchúria. Don Sabas é um coleccionador de bandeiras militares, recentemente ultrapassado por um rival. A morte do almirante pôs fim à irrisória armada, que não tem outro barco a não ser aquele, e, por isso, a bandeira da patética força naval é única no mundo. Graças a ela, Placido terá de novo a maior colecção. Este triunfo dá-lhe uma alegria que o faz esquecer a revolução, o perigo, a derrota, as mortes e tudo o resto. Mas no último momento antes de abandonar o barco e fugir, ele detém-se, olha o cadáver do almirante, murmura "pobrecito loco", embrulha-o na preciosa bandeira e parte.

  O que leva o almirante a rejeitar o suborno e a manter-se fiel ao seu governo? Não, certamente, razões monetárias ou relacionadas com quaisquer benefícios materiais: sem receber pagamentos e vivendo quase na miséria, o seu posto não lhe oferece perspectivas encorajadoras; também não se adivinha qualquer recompensa pela sua seriedade. O montante oferecido por Don Sabas, aliás e como este nota, cobre mais que o que ele receberá do governo em 20 anos. Por outro lado, também não o movem ideologias ou laços afectivos.
  Carrera afirma em diversas ocasiões: "I am the admiral". A formação da armada e a nomeação de um almirante aparecem como uma piada para os outros, incluindo Placido. Mas não para o próprio: o cargo em que ele se descobre investido atribui-lhe um papel diferente do homem de inteligência limitada que representara até então. Já não é só o "pobrecito loco", ainda que continuem a designá-lo assim. O cargo de almirante dá-lhe uma posição em que ele descobre dignidade e respeito, e sente-o de tal modo que mesmo meses após a nomeação, ele afirma, cheio de segurança, a cada vez que lhe respondem não ter ainda chegado qualquer ordem ou pagamento: ‹‹"They will come," would be his unshaken reply; "I am the admiral."››
  Porque rejeita ele o suborno? Não é tanto uma questão de ética, por muito admirável que nos pareça a sua inamovibilidade. De um certo prisma, o almirante lembra, aliás, o Eichmann de Hannah Arendt (Eichmann in Jerusalem - A report on the banality of evil) – alguém que se recusava a pensar criticamente as instruções que recebia, executando-as com a superficialidade de uma tarefa burocrática, sem chegar a interiorizar o significado horrendo das suas acções. Também Felipe Carrera estaria porventura pronto a executar qualquer função que lhe coubesse enquanto oficial. Mas ele é mais que um burocrata: precisa de corresponder a um papel. O cumprimento do dever dá-lhe uma solidez para a qual ele nunca teve oportunidade, conferindo substância à sua obediência e sentido à sua conformidade. Ele não é, note-se, meramente um funcionário ao serviço de quaisquer directrizes. É um almirante, tem um cargo a desempenhar e missões a cumprir. Aceitar a oferta de Don Sabas significaria negar a sua função e esvaziar o conteúdo mais sólido que a sua existência teve até então. A primeira tarefa de que o encarregam traz finalmente realidade ao papel que até aí existia apenas em proclamações e num barco de brincar: sem salário nem missões, nada senão a sua própria convicção atestava as suas funções. Mas agora ele tem uma missão; por mais simples que ela seja, é a prova da realidade do seu cargo. Tudo o que ele tem de fazer para a confirmar é cumprir o encargo. Não pode aceitar este ou qualquer outro suborno, não porque tal seria errado, mas sim porque se o fizesse deixaria de ser almirante.

  Don Sabas é um epicentro de contrastes. O dramatismo e a seriedade das situações com que se depara não encontram eco na sua esfera de descontracção e ufania. O fracasso da revolução que poderia ter mudado o destino daquele país não significa para ele mais que um lance perdido num jogo. Não se prende àquele local nem àquelas gentes, é um viajante que experimenta, seduz e que ganha sempre, mesmo quando falha, porque nunca se deixa afundar. Nem sequer a morte do almirante intransigente às suas mãos parece causar-lhe impacto.
  Placido não é, porém, indiferente a tudo. A descoberta da bandeira rara consegue finalmente empolgá-lo e descobrimos enfim nele laivos de arrebatamento. Zombador de revoluções, honras e governos, deixa-se levar por artefactos exóticos e brinquedos de colecção. Ele apresenta-se primeiro maior que as coisas grandes com que depara, mas faz depois questão de ser muito pequeno perante os minúsculos símbolos que sabe serem merecedores de troça: diminui perante eles o suficiente para os apresentar como se fossem grandes. A ridícula bandeira da República de Anchúria é para ele o mais valioso dos tesouros, perante o qual tudo empalidece: o dinheiro que ele queria oferecer a Carrera como se fossem amendoins, o país que ele não hesita em abandonar ou a vida perdida que ele não demorará a esquecer sem remorso.
  No último instante antes de partir, contudo, Don Sabas abandona a sua preciosa bandeira envolvendo com ela o corpo sem vida do almirante, e prescindindo deste modo de enriquecer a sua colecção. Que significado tem esta homenagem? Ela terá pelo menos a dimensão da importância que ele dava à sua descoberta. Placido não entende talvez a seriedade do compromisso, a força do dever ou o valor da vida. Mas compreende a envolvência emocional que podemos encontrar nos jogos e nas competições sem motivo. Ele não honra, por isso, a profundidade do drama dramatizando, mas sim abdicando de brincar.
  Também Don Sabas chama "pobrecito loco" a Carrera, mas este é um termo que ele poderia aplicar a todos os que naquela terra julgam viver uma vida a sério, quando ele, olhando aquela realidade a partir da distância da zombaria, toma tudo por uma brincadeira de passagem. Assim, ninguém é mais incapaz do que ele para compreender o sentido de cumprimento do dever do almirante, quando este recusa o suborno. Ele que só conhece as leis do jogo e da competição, do truque, da sedução e da arte, não pode ver senão loucura na teimosia de alguém que rejeita dinheiro ou quaisquer outras regalias para se manter fiel à sua missão. Mas Placido compreende ao menos algo fundamental: que há algo ali que ele não pode compreender, mas que certamente merece respeito; que há um compromisso que ele não seria capaz de assumir se estivesse naquela posição, mas cujos contornos é pelo menos capaz de reconhecer. Por isto é tão significativa a sua despedida e o abandono da bandeira. Através deste, ele comunica ao almirante que embora seja um homem de gozo e caprichos, que nunca se prenderá por qualquer ideal ou princípio, desta vez vai aceitar perder o seu jogo particular (o que mantém com o coleccionador rival) – não porque compreenda o sacrifício de Carrera, mas para lhe mostrar que, ao menos hoje, a sua brincadeira não é mais importante do que a morte do homem sério. Ele sabe melhor que ninguém que a obstinação com que o almirante insiste em cumprir o seu dever é insana. Mas é também por isso que a mensagem que ele deixa na bandeira vem cheia de simplicidade e respeito: a honra dos loucos continua a valer mais que os delírios dos sãos.

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