Nos capítulos VIII ("The Admiral") e IX
("The Flag Paramount"), do livro Cabbages and Kings, de
O. Henry, conta-se a história de Felipe Carrera, um homem que, por acaso de
caprichos e graçolas, é nomeado almirante da minúscula armada (com um único
barco) da República de Anchúria. Tido como nascido só com metade da
inteligência que lhe era devida, Carrera é conhecido como "el pobrecito
loco" entre as gentes locais. Mas apesar de se deixar quase sempre
mudo em terra, ciente das suas limitações intelectuais, ele é um marinheiro
exímio e corajoso ("He was a perfect sailor, if an imperfect man").
Após meses sem salário nem tarefas, o almirante recebe finalmente uma missão: é
encarregue de ir buscar mantimentos. Quando chega ao local indicado, encontra
em vez disso três homens que lhe pedem alimentos e transporte. O almirante
começa por aceder, mas reconhece num deles Don Sabas Placido, figura importante
entre os revolucionários procurados pelo Governo. Placido, cheio de jactância e
boa disposição, tenta convencer Carrera a ajudá-lo a fugir, oferecendo-lhe
mesmo subornos de grande monta, mas o obstinado almirante recusa sempre,
dizendo: "They will stand you (...) with your face to
a wall and shoot you dead. That
is the way they kill traitors. (...) I
am the admiral, and I will take you to them." Na escaramuça
que se segue, Placido acaba por matar Carrera com um disparo. Tudo isto
incomoda pouco Don Sabas, que não tem mais que um interesse corriqueiro pela
ridícula Anchúria: é um homem do mundo, de horizontes mais vastos e ambições
mais longínquas. As revoluções daquela república são para ele meras
distracções, e aquele almirante e a sua armada não mais que uma piada. Mas ele
exulta quando vê a bandeira da força naval de Anchúria. Don Sabas é um
coleccionador de bandeiras militares, recentemente ultrapassado por um rival. A
morte do almirante pôs fim à irrisória armada, que não tem outro barco a não
ser aquele, e, por isso, a bandeira da patética força naval é única no mundo.
Graças a ela, Placido terá de novo a maior colecção. Este triunfo dá-lhe uma
alegria que o faz esquecer a revolução, o perigo, a derrota, as mortes e tudo o
resto. Mas no último momento antes de abandonar o barco e fugir, ele detém-se,
olha o cadáver do almirante, murmura "pobrecito loco",
embrulha-o na preciosa bandeira e parte.
O que leva o almirante a rejeitar o suborno e a
manter-se fiel ao seu governo? Não, certamente, razões monetárias ou
relacionadas com quaisquer benefícios materiais: sem receber pagamentos e
vivendo quase na miséria, o seu posto não lhe oferece perspectivas
encorajadoras; também não se adivinha qualquer recompensa pela sua seriedade. O
montante oferecido por Don Sabas, aliás e como este nota, cobre mais que o que
ele receberá do governo em 20 anos. Por outro lado, também não o movem
ideologias ou laços afectivos.
Carrera afirma em diversas ocasiões: "I am
the admiral". A formação da armada e a nomeação de um almirante
aparecem como uma piada para os outros, incluindo Placido. Mas não para o
próprio: o cargo em que ele se descobre investido atribui-lhe um papel
diferente do homem de inteligência limitada que representara até então. Já não
é só o "pobrecito loco", ainda que continuem a designá-lo
assim. O cargo de almirante dá-lhe uma posição em que ele descobre dignidade e
respeito, e sente-o de tal modo que mesmo meses após a nomeação, ele afirma,
cheio de segurança, a cada vez que lhe respondem não ter ainda chegado qualquer
ordem ou pagamento: ‹‹"They will come," would be his unshaken
reply; "I am the admiral."››
Porque rejeita ele o suborno? Não é tanto uma
questão de ética, por muito admirável que nos pareça a sua inamovibilidade. De
um certo prisma, o almirante lembra, aliás, o Eichmann de Hannah Arendt (Eichmann
in Jerusalem - A report on the banality of evil) – alguém que se recusava a
pensar criticamente as instruções que recebia, executando-as com a superficialidade
de uma tarefa burocrática, sem chegar a interiorizar o significado
horrendo das suas acções. Também Felipe Carrera estaria porventura pronto a
executar qualquer função que lhe coubesse enquanto oficial. Mas ele é mais que
um burocrata: precisa de corresponder a um papel. O cumprimento do dever
dá-lhe uma solidez para a qual ele nunca teve oportunidade, conferindo
substância à sua obediência e sentido à sua conformidade. Ele não é, note-se,
meramente um funcionário ao serviço de quaisquer directrizes. É um almirante,
tem um cargo a desempenhar e missões a cumprir. Aceitar a oferta de Don Sabas
significaria negar a sua função e esvaziar o conteúdo mais sólido que a sua
existência teve até então. A primeira tarefa de que o encarregam traz
finalmente realidade ao papel que até aí existia apenas em proclamações e num
barco de brincar: sem salário nem missões, nada senão a sua própria convicção
atestava as suas funções. Mas agora ele tem uma missão; por mais simples que
ela seja, é a prova da realidade do seu cargo. Tudo o que ele tem de fazer para
a confirmar é cumprir o encargo. Não pode aceitar este ou qualquer outro
suborno, não porque tal seria errado, mas sim porque se o fizesse deixaria de
ser almirante.
Don Sabas é um epicentro de contrastes. O dramatismo
e a seriedade das situações com que se depara não encontram eco na sua esfera
de descontracção e ufania. O fracasso da revolução que poderia ter mudado o
destino daquele país não significa para ele mais que um lance perdido num jogo.
Não se prende àquele local nem àquelas gentes, é um viajante que experimenta,
seduz e que ganha sempre, mesmo quando falha, porque nunca se deixa afundar.
Nem sequer a morte do almirante intransigente às suas mãos parece causar-lhe
impacto.
Placido não é, porém, indiferente a tudo. A
descoberta da bandeira rara consegue finalmente empolgá-lo e descobrimos enfim
nele laivos de arrebatamento. Zombador de revoluções, honras e governos,
deixa-se levar por artefactos exóticos e brinquedos de colecção. Ele
apresenta-se primeiro maior que as coisas grandes com que depara, mas faz
depois questão de ser muito pequeno perante os minúsculos símbolos que sabe
serem merecedores de troça: diminui perante eles o suficiente para os
apresentar como se fossem grandes. A ridícula bandeira da República de Anchúria
é para ele o mais valioso dos tesouros, perante o qual tudo empalidece: o
dinheiro que ele queria oferecer a Carrera como se fossem amendoins, o país que
ele não hesita em abandonar ou a vida perdida que ele não demorará a esquecer
sem remorso.
No último instante antes de partir, contudo, Don
Sabas abandona a sua preciosa bandeira envolvendo com ela o corpo sem vida do
almirante, e prescindindo deste modo de enriquecer a sua colecção. Que
significado tem esta homenagem? Ela terá pelo menos a dimensão da importância
que ele dava à sua descoberta. Placido não entende talvez a seriedade do
compromisso, a força do dever ou o valor da vida. Mas compreende a envolvência
emocional que podemos encontrar nos jogos e nas competições sem motivo. Ele não
honra, por isso, a profundidade do drama dramatizando, mas sim abdicando de
brincar.
Também Don Sabas chama "pobrecito loco"
a Carrera, mas este é um termo que ele poderia aplicar a todos os que naquela
terra julgam viver uma vida a sério, quando ele, olhando aquela realidade a
partir da distância da zombaria, toma tudo por uma brincadeira de passagem.
Assim, ninguém é mais incapaz do que ele para compreender o sentido de
cumprimento do dever do almirante, quando este recusa o suborno. Ele que só
conhece as leis do jogo e da competição, do truque, da sedução e da arte, não
pode ver senão loucura na teimosia de alguém que rejeita dinheiro ou quaisquer
outras regalias para se manter fiel à sua missão. Mas Placido compreende ao
menos algo fundamental: que há algo ali que ele não pode compreender, mas que
certamente merece respeito; que há um compromisso que ele não seria capaz de
assumir se estivesse naquela posição, mas cujos contornos é pelo menos capaz de
reconhecer. Por isto é tão significativa a sua despedida e o abandono da
bandeira. Através deste, ele comunica ao almirante que embora seja um homem de
gozo e caprichos, que nunca se prenderá por qualquer ideal ou princípio, desta
vez vai aceitar perder o seu jogo particular (o que mantém com o coleccionador
rival) – não porque compreenda o sacrifício de Carrera, mas para lhe mostrar
que, ao menos hoje, a sua brincadeira não é mais importante do que a morte do
homem sério. Ele sabe melhor que ninguém que a obstinação com que o almirante
insiste em cumprir o seu dever é insana. Mas é também por isso que a mensagem
que ele deixa na bandeira vem cheia de simplicidade e respeito: a honra dos
loucos continua a valer mais que os delírios dos sãos.
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