No
livro The 500 hats of Bartholomew Cubbins, do Dr. Seuss (Theodor Geisel),
Bartholomew é um rapaz que assiste, no meio da multidão, à passagem da
carruagem de Derwin, o monarca do reino de Didd. O rei ordena subitamente que a
carruagem se detenha e repreende a criança por não ter tirado o chapéu. Só
então Bartholomew percebe que tem um chapéu na cabeça e que não consegue
evitá-lo, já que sempre que o tira, cresce um novo no lugar do que ele retirou.
Furioso com a situação, o rei procura resolvê-la por vários modos, incluindo o
de condenar à morte o rapaz.
O que leva
o rei a deter-se para interpelar Bartholomew? Aquilo que parecia ser um monarca
altivo, a passar por entre os súbditos com a indiferença de uma nuvem a pairar
sobre os destinos terrenos, surge de repente estranhamente próximo – o
suficiente para falar e zangar-se com quem assistia de baixo.
No
princípio da história, Derwin, no palácio situado no cimo do monte, olha o
reino que governa: do alto da sua varanda, parece-lhe suficientemente pequeno
para ele o abraçar. Os habitantes dos seus domínios são provavelmente como
formigas para o gigante que ele se crê. No ponto oposto está Bartholomew, a
admirar o reino da porta de sua casa; a ele tudo parece demasiado grande para a
sua pequenez.
É um
estranho encontro entre o gigante e a formiga aquele que se produz entre o
soberano e a criança. Esta criatura tão pequena tem pelos vistos força
suficiente para fazer parar o homem mais poderoso daquele mundo.
Basta para tal efeito a ousadia de manter o chapéu na cabeça diante dele. Que
nos diz isto da majestade desse sujeito, que entra em crise com um sinal mínimo
de desrespeito? Não devemos apressar-nos a estranhar a desproporção entre a
autoridade absoluta e o atrevimento minúsculo que a questiona; porque se é
possível descortinar uma colossal desfaçatez no gesto, ela resulta justamente
da sua pequenez. Se não proviesse de uma criatura tão ínfima, a
desobediência não resultaria tão ousada. É a audácia das moscas, e não a dos
elefantes, a que mais perturba a majestade, porque é aquela que representa o
mais frontal desafio. O rei Derwin tem de parar para reprimir a petulância, ou
esmagar o insecto descarado. Não pode dar-se ao luxo de ignorar ou deixar de
ver, porque o soberano que passasse demasiado longe para notar a afronta
mostrar-se-ia demasiado etéreo para se poder impor: não governaria
afinal o que quer que fosse.
Uma outra verdade clara resulta traída pelo
incidente: a soberania do rei não emana verdadeiramente da sua pessoa, mas dos
vassalos. Se uma irreverência miserável basta para a fazer colapsar, não há
demonstração maior da facilidade com que o monarca a pode perder por simples
vontade de quem é suposto obedecer. Um chapéu na cabeça do súbdito e
subitamente a coroa do rei perde a majestade: é como se manter o
chapéu posto diante do rei equivalesse a roubar-lhe a coroa. Parece magia e, de
certo modo, é – porque a magia faz-se sempre com gestos simples.
A esta luz, surge ainda mais natural a fúria do rei
perante os chapéus teimosos que insistem em nascer a cada tentativa de despir a
cabeça do rapaz. Não se trata somente de desaprovar a insolência descomedida.
Mais do que isso, é a inveja que move Derwin. Porque Bartholomew não vem apenas
trazer à luz a facilidade com que ele pode perder a coroa (ao menos a um nível
simbólico); vem igualmente exibir uma coroa diferente: uma que nunca deixa a
cabeça, que nenhum gesto pode arrancar em definitivo. O que o monarca
desesperado almeja na sua zanga é, no fundo, conseguir o que não encontrou no
trono, mas que a criança passeia tranquilamente: uma majestade que não se pode
perder.
O que Derwin parece não compreender, todavia é que a
sublimidade da posição da criança mora na sua humildade. É por não ter nada a
perder que nada lhe pode ser roubado. O rei que o Principezinho (Le Petit
Prince, de Saint-Exupéry) encontra no asteróide 325 pretende governar tudo – o
que acaba por ser a maior comprovação de que ele não governa absolutamente
nada. O pequeno Bartholomew ocupa, de certo modo, o trono inverso: não pretende
possuir o que quer que seja e isso termina fazendo com que o mundo lhe caiba no
bolso, já que é o seu trono o que pretende conseguir o todo-poderoso soberano
que o deveria governar.
O rei Derwin só termina despindo o último chapéu do
rapaz quando o clama para si. Engana-se, contudo, ao julgar ter usurpado a
coroa que almejava. Não foi a subtracção do chapéu novo o gesto que deixou a
cabeça insolente descoberta, mas sim um outro: o de abdicar da sua própria
coroa inútil. Iludido por símbolos e tronos, ele está condenado a perseguir
coroas e chapéus até que perceba a lição simples que lhe deveria ter ensinado a
humildade da criança: é quando abdicamos de tudo que nada nos falta.
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