E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 3 de março de 2019

Estupidamente feliz

  Alexa é um serviço de assistência pessoal desenvolvido pela Amazon. Através de interacção de voz, realiza uma série de serviços consoante as indicações do dono da casa: reprodução áudio (de audiolivros, música, podcasts, alarmes, despertadores, informações noticiosas, meteorológicas, de trânsito...), comando de smart devices (desde frigoríficos a fechaduras ou termóstatos), encomenda de refeições ou transporte, etc.
  Os assistentes virtuais são mais um passo significativo na suposta facilitação da vida do cliente. Ela será tanto maior quanto mais ele se encontre dispensado de realizar por si mesmo as diversas tarefas do dia-a-dia. Liberto de variadas actividades antes executadas pelas suas mãos, o utilizador deixa cada vez mais para trás o mundo hostil e estranho que o obrigava a agir para encontrar e produzir o que queria, e instala-se num outro que trabalha sozinho para lhe cumprir os propósitos. Aproxima-se da posição de imobilidade que parece procurar há milénios: no utilizador espreita ainda aquele humano primitivo que não queria abandonar a sua caverna; não só, sabemo-lo agora, por medo, mas também por (des)conforto. No seu futuro ideal, ele não precisará sequer de assistir ao universo a satisfazer as suas vontades; poderá fechar os olhos e saber que é assim. Só uma hesitação então lhe atrasará o sorriso: a de esperar que esse mundo sorria por ele.
  Depois de fechar os olhos, detido a ouvir o universo a satisfazê-lo, o cliente parece encontrar-se no trono do imóvel rei à escuta de Calvino ("Un re in ascolto"). Tal como este nos momentos em que se convencia de que tudo, incluindo o voo das moscas, funcionava segundo a sua vontade, apesar de nunca deixar o seu lugar, também aquele se limita a deixar a orquestra tocar sem precisar de se mexer ou sequer de agitar a batuta. Curiosamente, todavia, as coisas aqui funcionam, não porque o rei escute, mas porque é escutado: a Alexa ouve-o por toda a casa e assim está sempre presente. O rei à escuta não precisa de sair do trono porque ouvindo tudo está em toda a parte. Mas é afinal ouvindo tudo que o seu serviço mostra ocupar o espaço por inteiro e faz tudo funcionar. E se o ouvido omnipresente for prova de soberania, fica a dúvida sobre quem reina aqui verdadeiramente. Dúvida que se acentua quando nos lembramos de que o rei de Calvino, no fim de contas, não governava o que quer que fosse: ele próprio suspeitava da normalidade dos procedimentos quotidianos, adivinhando aí um sinal de que já fora deposto, de que ele era um monarca meramente simbólico, de que tudo já funcionava sem ele, de tal modo que nem era necessário avisá-lo de que já estava destronado. A verificação de que tudo trabalha regularmente sem que ele mova as mãos deve obrigar o cliente à mesma suspeita: ele está a um pequeno passo de se tornar igualmente dispensável no seu reinado. Tudo funciona sem ele.
  As histórias estranhas em que a Alexa realiza procedimentos surpreendentes para os seus proprietários (como gravar-lhes conversas e enviá-las para pessoas desconhecidas) não são, vendo bem, o indício mais sério de que a sua vontade é a verdadeira soberana. É, ao invés, na conformidade dos acontecimentos que ela reina onde se instala. Dispensado de trabalhar, procurar ou cansar-se, o utilizador acaba demitido de viver. Pede-se-lhe que não se mova, que não se desgaste, e ele termina despido do mais básico sinal de vontade: para obter o que quer, ele não faz, manda. Fechando os olhos às mãos inúteis a descansarem de nada no seu regaço, ele já praticamente desapareceu do universo onde resta somente a sua vontade como pretexto para que a Alexa possa viver por ele. Culmina assim o triunfo subtil do criado sobre o patrão: encarregue de cumprir a sua vontade em toda a extensão, a ponto de o dispensar de se deslocar aonde queira ir e de capturar o que quer obter, deixando-o imóvel num trono onde, como o monarca do asteróide 325 (Saint-Exupéry, Le Petit Prince), ele tem a ilusão de governar as estrelas, o criado instalou-se em todo o lado, excepto no trono, onde concede ao rei a graça mais cruel com que se pode vingar: dá-lhe a certeza de mandar, sem poder nunca ter a prova disso.
  O rei pode continuar a apontar simbolicamente o dedo (até esse gesto parece a mais) e ver as coisas acontecerem em consequência disso. Julgando assim ordenar os eventos que, na verdade, decorrem num lugar onde ele já não existe, o rei pode continuar de olhos fechados à escuta, adormecido no escuro da caverna antiga para onde conseguiu voltar e onde é estupidamente feliz.

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