Com os seus comportamentos chocantes frequentes, Donald Trump escandaliza o público habituado ao respeito pelas formalidades do discurso, regras do trato e convenções da educação. Mas não se trata somente de desrespeitar o meio, é o próprio conteúdo que se mostra não propriamente inaudito, senão deslocado: faz e diz o que esperaríamos descobrir feito e dito às ocultas, longe dos olhares. Trazendo o normalmente envolto em segredo para a praça onde todos vêem, exibindo o que se pensaria material esconso, traz o conteúdo para plano tão deslocado e inusitado que se torna difícil ao público acreditar no que vê e perceber como há-de reagir. Como explica Adam Gopnik, "[h]e has learned that, if you just do things, ordinary people with normal expectations about human behavior will have a hard time believing that you’re doing them. / Any one of a dozen things that Trump has done overtly would have resulted, if done clandestinely by another President, in near-universal cries for impeachment, if not for immediate resignation."
A postura de Trump dá-lhe a liberdade do descaramento e a tranquilidade da impunidade. Na bolha do seu espectáculo de episódios caricatos e insólitos, governa a prazer, soberano munido de livre arbítrio a que só falta mesmo o arbítrio. Fora dela, os seus opositores encarniçam-se em frente de combate cerrada, intransponível. Perde ele algo por acabarmos fechados em muros tão apartados?
Segundo conta Homero na Ilíada, devastado por transcendente fúria pela morte de Pátroclo, Aquiles vinga-se matando Heitor, assassino do companheiro. Leva depois consigo o cadáver do rival, negando-lhe as honras fúnebres. Não suportando o tratamento dado ao corpo do filho, Príamo vai junto de Aquiles pedir-lhe que lhe restitua o corpo.
Como consegue Príamo chegar junto do pelida? Rei de Tróia, símbolo máximo da hierarquia inimiga e sumo governante da cidade resistente, é impensável aceitar que Príamo deixe simplesmente o seu reduto e visite o campo inimigo com pedido tão inútil para esforços de batalha. Mas assim o faz, e com sucesso. Consegue-o porque se esconde: não vai acompanhado de séquito ou escolta durante o dia, como fora próprio de monarca, antes chega sozinho (só com um velho) de noite, como viajante sem pátria, com pretensões de intruso clandestino. E vai guiado por Hermes, divindade das secretas passagens e dos caminhos esconsos. Tivera Príamo levado os seus guardas ou soldados, não teria podido entrar. Tivera exibido a coroa à entrada, os guardas não o deixariam passar. Foi despindo o manto real que pôde ser aceite. Sem coroa para dar comandos, usou pedido humilde de entrada para que lhe abrissem as portas.
Para conseguir demover Aquiles e obter o corpo do filho, Príamo precisa de se aproximar do inimigo: diferenciam-se em tudo o que possamos imaginar, e Príamo, em rigor, não busca fazer-se parecido a ele. Começa antes por se aparentar a Peleu, pai do guerreiro: também ele há-de sofrer a agrura da velhice, com o consolo, porém, de ter o filho saudável e forte. Não assim o rei de Tróia, desprovido de quase toda a prole e deixado para chorar a perda dos filhos que corre o risco de nem enterrar. Depois, com todos os motivos para condenar Aquiles, beija a mão que deu a morte ao seu filho, e o pelida, condoído e emocionado, acede às súplicas do monarca prostrado.
Para entrar nos acampamentos aqueus, Príamo precisou de se encolher e esconder no segredo das passagens esconsas. Para chegar ao coração de Aquiles, teve de baixar a cabeça para lhe beijar a mão. Não escondeu os sentimentos, mas o manto. Despiu a coroa para abdicar do espectáculo, e, mais humilde e despercebido, teve sucesso junto de quem tinha poder absoluto sobre ele. Nunca teria conseguido, se não se tivesse aventurado na noite. Não chegaria longe, se tivesse anunciado a chegada. Violou todas as formalidades e protocolos, ignorou todos os rogos e avisos, e assim chegou ao inimigo e conseguiu tréguas e empatia – mas só porque procedeu às ocultas.
A coragem de Príamo qunado se esconde, arrojando-se contra todos os perigos e conselhos, é a que falta a Trump, sempre protegido pela abertura com que dispara as suas exigências. Por ignorar os protocolos durante o dia, Trump nunca poderá chegar onde os viajantes clandestinos ousam aventurar-se durante a noite, guiados por Hermes. Julga-se forte por se ver protegido pelos muros de que se orgulha, mas é a cegueira perante as conveniências que lhe fecha os caminhos que nos levam até aos verdadeiramente poderosos. Trump nunca chegará ao coração de Aquiles.
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