E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 29 de novembro de 2020

Caminhos esconsos


  Com os seus comportamentos chocantes frequentes, Donald Trump escandaliza o público habituado ao respeito pelas formalidades do discurso, regras do trato e convenções da educação. Mas não se trata somente de desrespeitar o meio, é o próprio conteúdo que se mostra não propriamente inaudito, senão deslocado: faz e diz o que esperaríamos descobrir feito e dito às ocultas, longe dos olhares. Trazendo o normalmente envolto em segredo para a praça onde todos vêem, exibindo o que se pensaria material esconso, traz o conteúdo para plano tão deslocado e inusitado que se torna difícil ao público acreditar no que vê e perceber como há-de reagir. Como explica Adam Gopnik, "[h]e has learned that, if you just do things, ordinary people with normal expectations about human behavior will have a hard time believing that you’re doing them. / Any one of a dozen things that Trump has done overtly would have resulted, if done clandestinely by another President, in near-universal cries for impeachment, if not for immediate resignation."
  A postura de Trump dá-lhe a liberdade do descaramento e a tranquilidade da impunidade. Na bolha do seu espectáculo de episódios caricatos e insólitos, governa a prazer, soberano munido de livre arbítrio a que só falta mesmo o arbítrio. Fora dela, os seus opositores encarniçam-se em frente de combate cerrada, intransponível. Perde ele algo por acabarmos fechados em muros tão apartados?
  
  Segundo conta Homero na Ilíada, devastado por transcendente fúria pela morte de Pátroclo, Aquiles vinga-se matando Heitor, assassino do companheiro. Leva depois consigo o cadáver do rival, negando-lhe as honras fúnebres. Não suportando o tratamento dado ao corpo do filho, Príamo vai junto de Aquiles pedir-lhe que lhe restitua o corpo.
  Como consegue Príamo chegar junto do pelida? Rei de Tróia, símbolo máximo da hierarquia inimiga e sumo governante da cidade resistente, é impensável aceitar que Príamo deixe simplesmente o seu reduto e visite o campo inimigo com pedido tão inútil para esforços de batalha. Mas assim o faz, e com sucesso. Consegue-o porque se esconde: não vai acompanhado de séquito ou escolta durante o dia, como fora próprio de monarca, antes chega sozinho (só com um velho) de noite, como viajante sem pátria, com pretensões de intruso clandestino. E vai guiado por Hermes, divindade das secretas passagens e dos caminhos esconsos. Tivera Príamo levado os seus guardas ou soldados, não teria podido entrar. Tivera exibido a coroa à entrada, os guardas não o deixariam passar. Foi despindo o manto real que pôde ser aceite. Sem coroa para dar comandos, usou pedido humilde de entrada para que lhe abrissem as portas.
  Para conseguir demover Aquiles e obter o corpo do filho, Príamo precisa de se aproximar do inimigo: diferenciam-se em tudo o que possamos imaginar, e Príamo, em rigor, não busca fazer-se parecido a ele. Começa antes por se aparentar a Peleu, pai do guerreiro: também ele há-de sofrer a agrura da velhice, com o consolo, porém, de ter o filho saudável e forte. Não assim o rei de Tróia, desprovido de quase toda a prole e deixado para chorar a perda dos filhos que corre o risco de nem enterrar. Depois, com todos os motivos para condenar Aquiles, beija a mão que deu a morte ao seu filho, e o pelida, condoído e emocionado, acede às súplicas do monarca prostrado.
  Para entrar nos acampamentos aqueus, Príamo precisou de se encolher e esconder no segredo das passagens esconsas. Para chegar ao coração de Aquiles, teve de baixar a cabeça para lhe beijar a mão. Não escondeu os sentimentos, mas o manto. Despiu a coroa para abdicar do espectáculo, e, mais humilde e despercebido, teve sucesso junto de quem tinha poder absoluto sobre ele. Nunca teria conseguido, se não se tivesse aventurado na noite. Não chegaria longe, se tivesse anunciado a chegada. Violou todas as formalidades e protocolos, ignorou todos os rogos e avisos, e assim chegou ao inimigo e conseguiu tréguas e empatia – mas só porque procedeu às ocultas.

  A coragem de Príamo qunado se esconde, arrojando-se contra todos os perigos e conselhos, é a que falta a Trump, sempre protegido pela abertura com que dispara as suas exigências. Por ignorar os protocolos durante o dia, Trump nunca poderá chegar onde os viajantes clandestinos ousam aventurar-se durante a noite, guiados por Hermes. Julga-se forte por se ver protegido pelos muros de que se orgulha, mas é a cegueira perante as conveniências que lhe fecha os caminhos que nos levam até aos verdadeiramente poderosos. Trump nunca chegará ao coração de Aquiles.  

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