No conto "La fin de Robinson Crusoé", de Michel Tournier, encontramos Robinson Crusoe embriagado, garantindo aos companheiros de mesa a existência de uma ilha por ele visitada, apesar de o mapa o desmentir. Os demais riem dele e não lhe dão grande importância, tomam-no como figura pitoresca do folclore local. Robinson fora encontrado depois de anos desaparecido, e retomara a vida junto dos compatriotas, mas agora, segundo a mulher, aborrece-se e sente a falta da sua ilha. Após a morte dela, Robinson parte de novo em viagem, mas volta anos depois, ainda mais mudado que no primeiro regresso, desesperado por não ter conseguido encontrar a ilha que continua certo de existir.
A história é curta, mas, no seu drama de tons poéticos e no seu embalo delicodoce, oferece uma ilustração melancólica e contemplativa sobre o que perdemos e não podemos recuperar.
Como se perde isso que nunca se recupera? Nas palavras do narrador, a ilha de Crusoe foi a sua juventude, a sua bela aventura, o seu jardim esplêndido e solitário ("sa jeunesse, sa belle aventure, son splendide et solitaire jardin"). Não pode lá voltar, segundo está convencido, porque a geografia não funciona como devia: o mapa desmente-lhe os olhos de outrora e as lembranças. Não há, contudo, uma desarrumação nos lugares, e sim no tempo, porque na verdade, a ilha que Crusoe procura não existia quando ele naufragou, foi criada somente depois de a abandonar. Fantasiou-a pelas recordações e deu-lhe força pelo desejo de regresso. Podemos aceitar como verdadeiro o seu relato, admitir que passou anos perdido num pedaço de terra sem história. Mas se não o reencontra quando embarca de novo, é porque não é verdadeiramente aí que pretende voltar, e sim à moradia onde, uma vez tornado à vida cidadã quotidiana, depositou o sonho do regresso impossível. Se tivesse visto o alegado esplendor do jardim quando lá morava, Robinson não teria querido sair de lá. Mas se é preciso afastarmo-nos do que brilha para, de longe, o vermos finalmente brilhar, é porque o brilho só existe na distância: só afastando-nos o suficiente para darmos conta da escuridão envolvente podemos perceber a luz brilhando. Crusoe passou os anos de regresso não a viver aonde tornou, mas a criar o jardim de onde partiu. Como se perde o que não se recupera? No caso de Robinson, ele não perdeu a sua ilha, antes a criou já perdida. Não pode voltar, porque nunca lá esteve, embora ela não existisse se nunca estivesse estado na ilha que lhe permitiu criá-la.
São assim os lugares mágicos da infância, os jardins solitários a que ansiamos regressar: não nasceriam se não houvéssemos explorado lugares reais e vivido verdadeiras aventuras, mas só podem nascer depois de as abandonarmos. Por isso mesmo estarão sempre longe, exibidas em mapas que não podemos estender sobre mesas de madeira.
A condenação de Crusoe pode ser cruel ao ponto de não o deixar habitar o sítio onde mora. O seu lugar de estacionamento existencial pode ser simplesmente "outro lugar" (que não aquele onde se encontra). Náufrago na ilha, terá ansiado por tornar à civilização, por rever rostos de pessoas, conversar, imergir na civilização. Prisioneiro na ilha deserta, teve de esperar pelo resgate longos dias, sem perceber que neles foi criando, pela erosão do tempo e pela inevitabilidade da perda, o seu perdido paraíso. Tornado à civilização, ei-lo incómodo, pouco à vontade, saudoso por fim. Liberto para viver de novo, acha-se, mais que nunca, prisioneiro: precisa voltar à ilha para ser livre. Livre de outras pessoas, de convenções e obrigações, de explicações e rituais urbanos? Livre, sobretudo, das saudades.
Crusoe talvez nunca possa ser livre, por nunca poder voltar à ilha que criou. Quando encontrar aquela onde naufragou, como lhe explica um timoneiro, não a reconhecerá, por ela estar diferente. Mas estivera ela igual, ele não a reconheceria, pois é outra que procura. A sua única hipótese de regresso é, no entanto, ouvir as palavras do timoneiro e procurar a ilha mudada, o lugar físico que o acolheu, esse lugar onde esperou tantos anos que o encontrassem. Porque talvez aí regressando, possa libertar-se sentindo as saudades de um prisioneiro, imaginando como seria tornar à civilização. A única liberdade de que Robinson quiçá seja capaz pode ser essa a que se agarra o enjaulado: a da suposição da vida fora da jaula. Por isso, resta a Crusoe procurar a terra que o teve prisioneiro tantos anos para, no sonho de uma vida que, quando realizada, não o satisfaz, poder finalmente ser livre.
Ele mesmo se condenou a esta distância da felicidade, porque ele mesmo remeteu para aquelas paragens os seus sonhos. Robinson só poderá ser feliz, porventura, voltando à ilha para ali poder sonhar uma vida quotidiana que não foi feita para ele, e sim para a sua imaginação. Agora com a consciência disso mesmo, poderá ser feliz. Mas para tornar a esse paraíso possível, precisa de abandonar primeiro o impossível que criou. Porque, como tantos outros, talvez todos, o seu mal é o de desesperar por um paraíso que optou por situar longe. Corre o risco de ser para sempre prisioneiro, porque, ao voltar da ilha deserta, esqueceu-se dela, i. e., não a trouxe consigo. Se tivesse carregado no interior o paraíso a que quer voltar, nem precisaria de viajar nunca mais, porque em todo o lado continuaria em casa. Nunca encontrará, no entanto, a ilha por que agora tanto anseia, não porque se tenha afastado dela, e sim porque a criou para estar longe e inatingível. Como se recupera o que nunca se perdeu? Descobrindo o que nunca se encontrou.
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