E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 1 de agosto de 2021

O espelho da ordem

  No livro O bom soldado Svejk, de Jaroslav Hasek, Svejk é um soldado que, embora esforçando-se por obedecer aos comandos que vai recebendo, vê-se constantemente envolvido em trapalhadas e encrencas causadoras de embaraço, podendo duvidar-se se as provoca de propósito, ou sequer conscientemente.

   Não pode dizer-se que Svejk seja desobediente: não apenas se prontifica de imediato a cumprir todas as instruções e ordens que recebe como não hesita em executá-las. Se o exército soçobra por ele, é pela disciplina, não por falta dela. Svejk cumpre tudo o que lhe pedem, mas a literalidade do seu entendimento e a mecanicidade dos seus gestos não lhe trazem sucesso, ou não o esperado pelos superiores. Se, então, a execução fiel dos ditames não produz no mundo os efeitos pretendidos – seja por sua incompetência, por falta de antecipação dos comandantes, por circunstâncias alheias imprevistas… –, salta de imediato a sugestão de que a ordem de que se quer fazer Svejk instrumento de implementação não é adequada para o mundo onde se pretende implementá-la. Passamos o livro a notar a inaptidão de Svejk para servir de intermediário entre a ordem militar a executar, a ordenação com que se pretende domar a selva, e a realidade prática que resiste uma e outra vez às disposições dos humanos arbítrios; mas quedamos sempre a com a suspeita de que, no fim de contas, pode bem ser que afinal ou essa ordem é simplesmente demasiado artificial, demasiado alheia para poder chegar a ser posta em prática com sucesso, ou qualquer organização do mundo é ilusória, pois este, despido das nossas projecções, é demasiado caótico e arbitrário para aceitar arrumações: toda a ordem que precise de ordens para chegar está destinada ao fracasso, porque a realidade da vida não é sensível à autoridade. Executando tudo o que lhe encomendam e assentindo a tudo o que lhe ditam, Svejk, todo ouvidos para aceitar e todo boca para devolver concordâncias e votos de obediência, cumpre exemplarmente o papel de exibir os chefes a falarem sozinhos: a vida não os ouve.
  Munido apenas de assentimentos, Svejk nunca diz não, mas não por querer dizer sim (podemos duvidar se ele quer verdadeiramente alguma coisa), e sim por não existir não nos jogos de linguagem do exército. Usando, todavia, os sins ali permitidos e cumprindo os gestos admitidos – somente os demandados –, não cumpre nada verdadeiramente, frustrando tudo o que se esperava dele. Como se pondo em prática as regras e regulamentos de funcionamento e procedimentos instituídas para garantir disciplina e sucesso, Svejk aparecesse para fazer ruir tudo, indo não de encontro, mas sim ao encontro do que lhe dizem. Nunca se rebela, mas obedecendo, perturba mais do que qualquer rebelião. Não questiona a organização, mas executando o que lhe ditam, leva-nos a duvidar mais da organização do que perante qualquer fracasso. Não derruba o sistema numa prova de força, antes ameaça deitá-lo abaixo demonstrando como a força do sistema o faz tão débil.
  Os episódios protagonizados por Svejk exibem a nudez da ordem. Pela ineficácia absurda dos comandos e correspondentes execuções, prova que a ordem pela ordem não merece ser prezada, que nada manifesta mais exuberantemente o absurdo das ambições humanas nem mostra tão claramente a artificialidade estéril das nossas construções como o cultivo da hierarquia e da subordinação sem direcção nem valores, sem conteúdo moral perceptível. Com a sua disponibilidade permanente e ineficaz, Svejk serve de espelho onde a disciplina militar, séria e austera, se pode ver e descobrir ridícula e absurda.

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