Na peça The Tempest, de William Shakespeare, uma tempestade violenta leva uma embarcação a uma ilha onde moram Prospero, um feiticeiro, a sua filha Miranda e os seus servos Ariel e Caliban. Prospero fora Duque de Milão antes de ser traído por alguns dos passageiros chegados agora à ilha, e usa magia tanto para os atrair como para lhes orientar os caminhos.
Prospero tem ares divinos. A sua magia faria dele mero feiticeiro, não fora raramente a exercer directamente: quanto intervém nos destinos dos homens e mulheres, fá-lo comandando os elementos (como quando provoca a tormenta) ou os espíritos (no caso de Ariel). Qual deus oculto, mas sempre presente, actua e decide, mas dificilmente estende a mão para empurrar as criaturas que o preocupam: tem anjos, monstros e calamidades ao seu dispor.
O distanciamento é condição para crescer: só de longe pode aumentar até um tamanho que lhe permita superintender os destinos alheios, porque só à distância pode descobrir pequenas as pessoas que tomará por peças. Por isso, quase não contacta com nenhum dos recém-chegados durante a maior parte da peça, não obstante agir sobre eles por meio dos seus subalternos, e quando, finalmente, se aproxima para lhes falar, revela-se e quer juntar-se a eles, mas para isso, tem de abdicar do seu livro e dos seus poderes, o que é dizer da sua sapiência e comando divinos – porque, tal como os seres mitológicos da Antiguidade, também este não pode aproximar-se sem assumir vestes de humano comum.
Arroga-se Prospero a posição moral divina que lhe permite perdoar ou condenar os demais. Não compreende nem desculpa como igual que sofre e supera, como ferido que procura cicatrizar, senão como pai que compreende tudo por saber mais e melhor, e que perdoa pela condescendência de sentir comiseração perante a fraqueza. Orienta os outros como se fossem filhos transviados carentes de redireccionamento, e chega a julgar sobre os melhores caminhos amorosos que lhes cabem. Sabe mais que um juiz, porque não precisa de ouvir as partes, e sente mais que os poetas, porque não ausculta corações. Talvez nem decida verdadeiramente, porque de tão certa e omnisciente a sua consciência, soam inevitáveis os seus ditames.
Aponta Harold Bloom (Shakespeare: The invention of the human) a desmesura dos poderes e actuações de Prospero perante o elenco sobre que actua: as suas artes são desproporcionais para os seus inimigos. E aí talvez ele seja mais divindade que nunca – não tanto na imensidade do seu tamanho perante a pequenez dos joguetes humanos como no interesse que, ainda assim, eles lhe despertam: pois nada é porventura tão divino como a curiosidade absurda em relação a criaturas pequenas.
Perde Prospero a autoridade quando abdica do seu poder? Durante a tempestade, o contramestre discute com os seus nobres passageiros, e mostra-se indiferente à categoria social de quem transporta: a não ser que a natureza lhes obedeça e eles sejam capazes de pôr fim ao temporal, não lhe interessa os títulos que possuam. A autoridade de Prospero, domador de tempestades, não é essa que desaparece assim que a natureza se zanga: está para lá das convenções humanas, pois é ele quem comanda a tormenta. Não admira, assim, que não o vejam até se revelar e abdicar da magia, pois ninguém é mais invisível que o autor dos relâmpagos e trovões. Para ser visto e imiscuir-se entre os demais, para embarcar no navio, para se tornar de novo Duque e vestir a majestade que se vale de normas sociais, Prospero precisa, então, de deixar o trono e caminhar entre os súbditos da tempestade, também ele sujeito às ordens de um contramestre logo que o vento torture o navio. Sem embargo, os demais respeitam-no e não o questionam, mesmo quando é desagradável, nem, muito menos, dão mostras de se rebelarem. Talvez porque, também como os deuses da Antiguidade, era ao descerem e caminharem disfarçados de pessoas entre as pessoas que eles se mostravam mais divinos.
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