E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Demasiado familiares


 No filme Invasion of the Body Snatchers (Don Siegel), uma invasão alienígena tem lugar numa cidade fictícia: os aliens conseguem fabricar (literalmente: plantar) duplos dos humanos que vivem na cidade e as pessoas vão sendo substituídas por esses duplos.
  Os duplos são praticamente perfeitos, assemelhando-se em tudo aos originais. Ainda assim, as pessoas mais próximas estranham-nos e não se deixam enganar, suspeitando que são, na verdade, impostores. 

  Como conseguem as pessoas perceber que o outro não é quem aparenta? Que se trata de um impostor? Uma das personagens, que desconfia que o seu tio Ira não é aquele homem que vive em sua casa, diz: "there is no difference you can actually see...he looks, sounds, acts and remembers like uncle Ira...but he isn't, there's something missing".
  A questão então coloca-se nestes termos: que é isso que está em falta quando tudo está onde devia estar? A explicação de que os duplos não sentem emoções não é totalmente esclarecedora neste ponto, já que, como diz a mesma personagem, o falso tio Ira demonstra as mesmas emoções que o verdadeiro, só que fingindo-as. Ora, isto apenas desloca a questão: que elemento é esse que está ausente e cuja ausência permite perceber o fingimento?
  Lembremos o que diz Zizek ("Discipline between Two Freedoms – Madness and Habit in German Idealism") quando contrapõe aliens a zombies"while aliens look and act like humans, but are really foreign to human race, zombies are humans who no longer look and act like humans; while, in the case of an alien, we suddenly become aware that the one closest to us – wife, son, father – is an alien, was colonized by an alien, in the case of a zombie, the shock is that this foreign creep is someone close to us".
  Parece então que o elemento que procuramos nos impostores é um qualquer elemento de estranheza, algo que os afasta, que os torna distantes. E, ainda assim, não o conseguimos identificar.

  A resposta para a nossa procura é-nos sugerida, porém, no pequeno conto Awake in the Night (Lydia Davis):

  “I can’t go to sleep, in this hotel room in this strange city. It is very late, two in the morning, then three, then four. I am lying in the dark. What is the problem? Oh, maybe I am missing him, the person I sleep next to. Then I hear a door shut somewhere nearby. Another guest has come in, very late. Now I have the answer. I will go to his room and get in bed next to him, and then I will be able to sleep.

  A narradora não consegue dormir, por sentir a falta da pessoa que costuma dormir ao seu lado. Resolve o seu problema indo deitar-se com um estranho: assim já será capaz de dormir.
  Há uma sugestão simples, mas reveladora, na solução da narradora. A uma primeira leitura, estranhamos a sua atitude: parece-nos difícil de conceber que a companhia de um desconhecido lhe possa oferecer a tranquilidade que o seu companheiro habitual transmite. A questão que nos assalta de imediato é: como pode um estranho ocupar o lugar do familiar? Uma pequena inversão do nosso ponto de vista sugere, contudo, que a pergunta pode já estar viciada: talvez aquilo que a narradora sente que falta seja, precisamente, a estranheza do companheiro, não a familiaridade deste. Ou, dito de outra forma: o que torna o companheiro uma presença familiar é a estranheza que ele transporta consigo.
  A lição simples, mas fundamental, que este conto nos transmite resume-se então ao seguinte: é precisamente a estranheza daquele que nos é próximo que o torna mais familiar. A narradora tem de ir procurar a sensação de familiaridade naquele que, não lhe sendo ainda próximo, é um verdadeiro estranho e, deste modo, pode tornar-se seu companheiro.
  Temos assim a resposta que procurávamos. Não encontrávamos o elemento ausente que explicava a desconfiança das pessoas em relação aos impostores porque procurávamos no sentido errado. De facto, não há um elemento estranho nos impostores a provocar essa desconfiança: é, pelo contrário, a ausência desse elemento que a origina. Os impostores são impostores porque não são, no fundo, suficientemente diferentes. São demasiado normais, demasiado próximos. Por paradoxal que pareça, falta-lhes, em suma, serem mais estranhos para parecerem mais familiares.

domingo, 25 de outubro de 2015

A imagem que nos há-de salvar - "A Menina dos Fósforos" (Hans Christian Andersen)


  Numa aula sobre a cegueira, Gonçalo M. Tavares pediu à assistência para olhar uma garrafa de água que estava em cima da mesa e ao mesmo tempo tentar visualizar a estátua do Marquês de Pombal. A partir daí, dissertou um pouco sobre a curiosa capacidade humana de conseguir ver uma coisa dentro da cabeça ao mesmo tempo que olhamos uma coisa fora de nós.

  É, com efeito, extraordinário conseguir tapar uma coisa que está à frente dos nossos olhos com uma coisa que está atrás dos nosso olhos. Na história "A menina dos fósforos" (Hans Christian Andersen), a criança faz algo como isso: de cada vez que acende um fósforo, uma imagem aparece para a confortar. Primeiro uma confortável cena de Natal e, mais tarde, a sua avó já falecida. Estas imagens cobrem a realidade miserável que ela tem diante dos olhos: o frio, a rua, o medo, a fome, a solidão.
  A menina acaba por morrer enregelada, e quando é encontrada as pessoas lamentam a sua sorte e sentem comiseração. Mas todos são cegos à imagem em que ela adormeceu dentro de si mesma: morreu na companhia da sua avó, graças ao exercício fantástico de transportar para fora de si o mundo que acendia por dentro. Graças a isso, pôde cegar-se (ao que vinha de fora) e morrer com a realidade que usou para substituir a outra.
  As pessoas que agora passam por ela e sentem pena eram cegas ao seu sofrimento quando ela estava viva — ninguém lhe comprou um fósforo ou parou para a ajudar de algum modo —, e mostram-se igualmente cegas à sua felicidade agora que está morta.
  A menina tornou-se, com efeito, tão cega à realidade como aqueles que passavam e não a viam. Ela é, note-se, tão invisual como o seu público, ainda que no sentido oposto: ela tapa a realidade com o que tem dentro. Ao invés, é precisamente não vendo o que existe dentro que aquele público sente pena dela agora que já nada adianta e quando a pena já não tem sentido. Assim, o que nos há-de salvar da cegueira que nos obstrui não é propriamente podermos ver tudo (por dentro e por fora em simultâneo). Para nos salvarmos, precisamos de aprender a inverter a nossa cegueira. Tornarmo-nos cegos de outro modo.

  Na mesma aula, Gonçalo M. Tavares, falando agora sobre a voragem com que engolimos imagens umas a seguir às outras, sem nos determos para verdadeiramente ver uma que seja, comentou algo como: "é como se estivéssemos à procura da imagem que nos há-de salvar".

  A esta luz, a menina dos fósforos é a heroína dos tempos modernos. Também ela vai acendendo os fósforos com a voracidade de quem não quer aceitar que uma imagem só pode durar um instante. De quem acredita que pode agarrar uma imagem e guardá-la para a fazer durar para sempre.
  Diferentemente de nós, porém, a menina dos fósforos sabe que imagem é essa que procura. Ela já tem dentro de si, na verdade, a imagem que busca lá fora. E é à força de a procurar fora de si que ela a encontra por dentro. Nós continuamos à procura da imagem que nos há-de salvar. A menina já a encontrou.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

O esconderijo do espelho - "The Masks" (Ida Lupino)


  No episódio "The Masks" (Ida Lupino), da série The Twilight Zone, Jason Foster, um moribundo, é visitado pela filha, o genro e os dois netos. Os quatro são pessoas desprezíveis e estão ali apenas na esperança de que o velho morra, de modo a poderem receber a herança. Foster insulta-os e confonta-os sem se conter. Ameaçando-os de os deserdar, convence-os a usarem umas máscaras hediondas até à meia-noite desse dia. Diz-lhes que as máscaras, horrorosas como são, adequam-se inversamente à personalidade do seu utilizador: representam o contrário do que a pessoa é. A descrição que Foster faz da personalidade indicada para cada máscara, todavia, torna claro que o que se passa é precisamente o oposto: as qualidades negativas que ele atribui a cada máscara são, de facto, aquelas que reconhecemos nos membros da família. Ele próprio entra no jogo, pondo a máscara da morte – o inverso do que ele supostamente mais teria neste momento: vida. Depois da meia-noite, todos descobrem que os seus rostos se modificaram e assumiram a forma da máscara que haviam posto. Foster, por sua vez, está morto.

  Há uma evidente lição de moral aplicada aos familiares de Foster, mas um olhar mais atento pode mostrar-nos que este não será porventura o ser humano ideal cujo exemplo os outros deveriam ter seguido. Podemos concordar que ele não tem uma personalidade detestável, como os seus visitantes, mas isso, vendo bem, é porque ele não tem personalidade nenhuma. A sua máscara era a da morte e, quando é retirada, podemos dizer que ele sofreu o mesmo destino que os outros, visto que morreu (tendo também sido forçado a adequar-se à sua máscara). Só que o seu rosto está igual, não houve mudança: ele, de facto, nunca viveu, e, por isso, nenhuma mudança faria sentido. O seu rosto já trazia o vazio da morte quando ele estava vivo. Nunca viveu como vive uma pessoa, foi sempre uma pessoa sem persona. Tudo o que dele conhecemos construiu-se na crítica aos outros, à sua família. Viveu apenas devolvendo-lhes o que eles eram, confrontando-os sem subterfúgios com o que eles lhe mostravam ser. Ele foi apenas, portanto, um espelho para os outros, apareceu sempre como mero reflexo do que os outros eram. E cumpriu o seu papel na perfeição, pois o encontro dos outros consigo obrigou-os a verem o que eram verdadeiramente. O que surpreende, em suma, é que ele teve de ser menos que pessoa – não pôde chegar a ser pessoa, não pôde ter uma persona própria – para poder ser juiz de pessoas.
  O pecado da família de Foster foi o da cegueira deliberada: não queriam ver-se a si mesmos, encarar a sua fealdade, experiência que os teria forçado a mudar. Por isso, por não quererem ver um espelho que, abertamente, lhes mostraria a verdade de si próprios, essa confrontação teve de ocorrer disfarçadamente: o espelho onde se confrontaram apareceu escondido nos olhos de um outro. E foi através do espelho dos olhos de um outro que puderam finalmente ver-se a si mesmos.
  O caso da neta – Paula –, podendo parecer que contraria o que aqui se diz, é na verdade um perfeito exemplo disto mesmo. Paula era extremamente vaidosa, estava permanentemente a ver-se ao espelho. Poderia pensar-se então que o que dissemos sobre a família de Foster não se lhe aplica: ela não temia o seu reflexo; pelo contrário, procurava-o em todos os momentos. Esta não é, no entanto, a leitura mais correcta do caso. Porque o olhar que Paula procurava no seu espelho era o seu próprio olhar. Paula não tinha consciência de que o espelho verdadeiro é aquele que nos devolve o olhar de um outro, aquele que nos mostra como somos vistos por um terceiro. Paula escondeu sempre esse olhar de um outro atrás do seu próprio olhar e, por isso, nunca se viu ao espelho verdadeiramente até ao momento em que o olhar de um outro forçou nela esse confronto consigo mesma.
  É precisamente este jogo de espelhos e reflexos, de resto, que é traduzido no discurso de Foster sobre as máscaras. Com efeito, quando ele descreve as máscaras como adequando-se perfeitamente ao utilizador cuja personalidade seja o inverso da descrição que lhe cabe, há uma verdade profunda neste sarcasmo, que agora podemos compreender: isto é afinal tão correcto como dizer que o nosso reflexo no espelho, precisamente na medida em que é o inverso simétrico do que lhe apresentamos, é aquele que para nós é mais adequado. Porque, no fim de contas, se a Rainha Má, madrasta da Branca-de-Neve, tem razão em desconfiar do outro que o espelho lhe apresenta no seu reflexo, os personagens de "The Masks" aprenderam a lição inversa: no outro que o espelho nos devolve, somos nós mesmos que nos escondemos.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

"A person who feels bad is a bad person" - "Crimes and Misdemeanors" (Woody Allen)




  Segundo Alenka Zupančič (The Odd One In: On Comedy), tornou-se imperativo, no ambiente ideológico hodierno, ver tudo o que nos acontece como algo positivo, como experiências que nos ajudam a crescer e a tornarmo-nos melhores. Insatisfação, infelicidade, pessimismo, são tidos por falhas morais, formas de corrupção instaladas no próprio ser da pessoa. Esta "bio-moralidade", uma "moralidade de sentimentos e emoções", pode traduzir-se no axioma: "a person who feels good (and is happy) is a good person; a person who feels bad is a bad person".
  Esta "retórica da felicidade", de acordo com a autora, contrapõe-se a uma lógica mais clássica sobre a nossa responsabilidade pelos nossos falhanços e sucessos; nesta lógica vai implicado um intervalo entre o que somos e o valor simbólico do nosso sucesso: somos responsáveis porque poderíamos ter actuado de outro modo. Na perspectiva da bio-moralidade, ao invés, o descontentamento e a frustração revelam que a pessoa é corrupta no seu próprio ser, aparecendo assim os seus fracassos como inevitáveis, como decorrendo necessariamente da sua genética.
  Um bom exemplo desta contraposição pode ser encontrado no filme Crimes and Misdemeanors (Woody Allen). Ambas as lógicas, com efeito, aparecem sobrepostas em Lester, um bem-sucedido produtor televisivo, e, mais concretamente, no modo como este se relaciona com o cunhado Cliff, um realizador de cinema relativamente insignificante e em permanente descontentamento com a vida.
  Lester vai tentando ajudar Cliff arranjando-lhe trabalho, embora não se identifique com o seu estilo e o ache demasiado idealista, suspeitando igualmente (e correctamente) que Cliff o despreza. Ele exterioriza a lógica de responsabilização mais clássica: acredita que Cliff é o único responsável pelos próprios fracassos, por não conseguir aproveitar oportunidades como as que ele lhe oferece. Esta visão implica um intervalo entre a pessoa e os seus insucessos. Transparece claramente, porém, que, por debaixo destas atitudes politicamente correctas, a verdadeira perspectiva de Lester, memo que contida, é a da "bio-moralidade": Lester não acredita verdadeiramente que Cliff alguma vez possa vir a ter sucesso, ele vê-o, no fundo, como um falhado, condenado geneticamente, por assim dizer, a fracassar.
  Cliff aceita os projectos que Lester lhe atribui apenas para ter sustento enquanto desenvolve o projecto que verdadeiramente lhe interessa: um documentário sobre um filósofo e as suas dissertações sobre o amor e a celebração da vida. Quando o filósofo se suicida, Cliff fica desolado, pois este gesto esvazia a mensagem que ele documentara tão dedicadamente. É este derradeiro insucesso, no entanto, que traz a Cliff uma inesperada vitória sobre Lester. Porque o acto do filósofo é afinal um de rebeldia contra o seu próprio ser e, portanto, um desmentido da bio-moralidade. Assim, o fracasso último de Cliff representa para ele, contra Lester, um derradeiro sinal de esperança.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O personagem sem história - "The Case of Mr. Pelham" (Alfred Hitchcock)



  Segundo Ricoeur (Soi-Même Comme un Autre), a identidade de um personagem de uma história é construída - como identidade narrativa - através da construção que o relato faz da própria história narrada. É a identidade da história que faz a identidade do personagem ("C'est l'identité de l'histoire qui fait l'identité du personnage"). Deste modo, a construção da identidade narrativa vale-se da dialéctica entre a exigência de concordância e a admissão de discordâncias que caracteriza a identidade da própria história contada. A história progride por meio da mediação entre concordância e discordância - i. e., para dizer de um modo simplificado, entre a unidade temporal do conjunto do encadeamento da história e a sucessão de eventos diversos e separados da acção. O acontecimento ou evento na história é, assim, um elemento de discordância - desde logo ao surgir -, mas também de concordância, ao fazer avançar a história. O evento não aparece aqui, portanto, como pura contingência - algo que poderia não ter ocorrido -, pois a exigência de concordância confere-lhe um carácter de necessidade ou probabilidade. A mise en intrigue é, precisamente, este processo configurante que inscreve os acontecimentos narrados na unidade de um discurso.
  Defende então Ricoeur que encontramos a identidade do personagem ao transferirmos para ele a operação da mise en intrigue. Encontramos assim uma dialéctica no personagem que lhe é interna - uma dialéctica que é o corolário daquela entre concordância e discordância operada na mise en intrigue. Pela linha da concordância, a singularidade do personagem retira-se da totalidade temporal da unidade da sua vida; pela da discordância, essa totalidade é ameaçada de ruptura por pontuais acontecimentos imprevisíveis (encontros, acidentes, etc.). A síntese operada nesta dialéctica resulta em que o acontecimento que surge primeiramente como inesperado é a posteriori integrado no conjunto numa lógica de necessidade ou probabilidade - assim se transforma o acaso em destino.
  É com este pano de fundo que se há-de compreender a ironia da seguinte passagem de Um Homem: Klaus Klump (Gonçalo M. Tavares):

  "Klaus é um homem alto. Conheceu Johana porque ela olhou por cima de uma sebe verdíssima e olhou por cima de uma Primavera ainda mais verde que a sebe. Eles costumavam brincar:
  Se tu não fosses tão alto, não te teria visto por cima da sebe.
  E Klaus dizia a Johana:
  Se eu não fosse tão alto a sebe seria mais baixa."

  É o próprio personagem, como se vê, que transforma o acaso em destino, inconsciente do processo pelo qual isso já é feito na própria construção da narrativa.

  É esta dialéctica concordância-discordância (que opera no interior do personagem) que Ricoeur vai inscrever na dialéctica entre mesmidade e ipseidade da identidade pessoal, defendendo que a identidade narrativa desempenha uma função mediadora entre estes dois pólos. A mesmidade corresponde ao sentido idem do termo identidade - focando-se aqui a ideia de permanência no tempo por oposição a variável, modificável - enquanto a ipseidade corresponde ao sentido ipse - aqui já não vai implicada qualquer asserção respeitante a um núcleo não variável da personalidade.
  Estes dois significados da permanência no tempo tendem a confundir-se na nossa experiência quotidiana, mas na ficção (literária) aprofunda-se o espaço de variações na relação entre ambas. Assim, num extremo, o personagem é um carácter identificável e reidentificável como o mesmo: é o que acontece com os personagens do conto de fadas. No romance clássico, diferentemente, encontramos uma exploração do espaço entre os dois extremos, com a transformação progressiva dos personagens ao longo da história. Aproximamo-nos, por fim, do extremo oposto com o romance de aprendizagem (onde passa a estar a intriga ao serviço do personagem). Encontramos nesse pólo extremo o personagem que deixou de ser um carácter.

  Este enquadramento oferece-nos uma hipótese de leitura do episódio "The Case of Mr. Pelham" (que resumimos aqui) da série Alfred Hitchcock Presents. Com efeito, parece que Pelham afunda-se no primeiro extremo: cultivou o seu carácter de tal modo que o petrificou. Ele é como um personagem de um conto de fadas - pelos seus hábitos, pela sua aversão à mudança, ele é identificável e reidentificável como o mesmo.
  Não se trata assim de uma confusão entre os dois significados da permanência no tempo: Pelham passa, a dada altura, a resumir-se a apenas um desses significados. Reduz-se à sua mesmidade e, assim, a sua vida é feita apenas de concordância. O problema é que essa concordância passa por uma repetição dos mesmos eventos - a discordância é efectivamente eliminada, pois não há novidade na sucessão dos dias de Pelham. Assim, Pelham torna-se uma pessoa sem história, sem narrativa. Ele não é uma pessoa, mas sim um modo de ser.
  A discordância introduz a novidade e através dela constrói-se a sucessão de acontecimentos que faz a história. A ligação interna que dá sentido a essa história é conseguida com a síntese dialéctica que referi acima. A ligação só se solidifica por completo com a conclusão da história. Ora, no caso de Pelham, não há limites de tempo para a sua história, não há nenhum ponto a partir do qual possamos impor retroactivamente uma perspectiva de necessidade ou probabilidade dos acontecimentos que o antecederam. Mas isto, afinal, deve-se a que Pelham está fora da história, em resultado de se ter reduzido à sua mesmidade.
  Quando Pelham depara com a sua mesmidade, é inevitável a descoberta de que está fora da sua própria história. E isto no sentido de que ele próprio, no fundo, tornou impossível essa história. A sua decisão de mudar de gravata tem de o condenar porque a discordância só poderia surgir no caminho da narrativa. E ele já eliminou qualquer possibilidade de narrativa para si.
  O caso de Pelham é, assim, uma confirmação de que, mais do que as pessoas e os seus actos fazerem as histórias, são as histórias que dão vida às pessoas e aos seus feitos.