E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 25 de outubro de 2015

A imagem que nos há-de salvar - "A Menina dos Fósforos" (Hans Christian Andersen)


  Numa aula sobre a cegueira, Gonçalo M. Tavares pediu à assistência para olhar uma garrafa de água que estava em cima da mesa e ao mesmo tempo tentar visualizar a estátua do Marquês de Pombal. A partir daí, dissertou um pouco sobre a curiosa capacidade humana de conseguir ver uma coisa dentro da cabeça ao mesmo tempo que olhamos uma coisa fora de nós.

  É, com efeito, extraordinário conseguir tapar uma coisa que está à frente dos nossos olhos com uma coisa que está atrás dos nosso olhos. Na história "A menina dos fósforos" (Hans Christian Andersen), a criança faz algo como isso: de cada vez que acende um fósforo, uma imagem aparece para a confortar. Primeiro uma confortável cena de Natal e, mais tarde, a sua avó já falecida. Estas imagens cobrem a realidade miserável que ela tem diante dos olhos: o frio, a rua, o medo, a fome, a solidão.
  A menina acaba por morrer enregelada, e quando é encontrada as pessoas lamentam a sua sorte e sentem comiseração. Mas todos são cegos à imagem em que ela adormeceu dentro de si mesma: morreu na companhia da sua avó, graças ao exercício fantástico de transportar para fora de si o mundo que acendia por dentro. Graças a isso, pôde cegar-se (ao que vinha de fora) e morrer com a realidade que usou para substituir a outra.
  As pessoas que agora passam por ela e sentem pena eram cegas ao seu sofrimento quando ela estava viva — ninguém lhe comprou um fósforo ou parou para a ajudar de algum modo —, e mostram-se igualmente cegas à sua felicidade agora que está morta.
  A menina tornou-se, com efeito, tão cega à realidade como aqueles que passavam e não a viam. Ela é, note-se, tão invisual como o seu público, ainda que no sentido oposto: ela tapa a realidade com o que tem dentro. Ao invés, é precisamente não vendo o que existe dentro que aquele público sente pena dela agora que já nada adianta e quando a pena já não tem sentido. Assim, o que nos há-de salvar da cegueira que nos obstrui não é propriamente podermos ver tudo (por dentro e por fora em simultâneo). Para nos salvarmos, precisamos de aprender a inverter a nossa cegueira. Tornarmo-nos cegos de outro modo.

  Na mesma aula, Gonçalo M. Tavares, falando agora sobre a voragem com que engolimos imagens umas a seguir às outras, sem nos determos para verdadeiramente ver uma que seja, comentou algo como: "é como se estivéssemos à procura da imagem que nos há-de salvar".

  A esta luz, a menina dos fósforos é a heroína dos tempos modernos. Também ela vai acendendo os fósforos com a voracidade de quem não quer aceitar que uma imagem só pode durar um instante. De quem acredita que pode agarrar uma imagem e guardá-la para a fazer durar para sempre.
  Diferentemente de nós, porém, a menina dos fósforos sabe que imagem é essa que procura. Ela já tem dentro de si, na verdade, a imagem que busca lá fora. E é à força de a procurar fora de si que ela a encontra por dentro. Nós continuamos à procura da imagem que nos há-de salvar. A menina já a encontrou.

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