Segundo Ricoeur (Soi-Même Comme un Autre), a identidade de um personagem de uma história é construída - como identidade narrativa - através da construção que o relato faz da própria história narrada. É a identidade da história que faz a identidade do personagem ("C'est l'identité de l'histoire qui fait l'identité du personnage"). Deste modo, a construção da identidade narrativa vale-se da dialéctica entre a exigência de concordância e a admissão de discordâncias que caracteriza a identidade da própria história contada. A história progride por meio da mediação entre concordância e discordância - i. e., para dizer de um modo simplificado, entre a unidade temporal do conjunto do encadeamento da história e a sucessão de eventos diversos e separados da acção. O acontecimento ou evento na história é, assim, um elemento de discordância - desde logo ao surgir -, mas também de concordância, ao fazer avançar a história. O evento não aparece aqui, portanto, como pura contingência - algo que poderia não ter ocorrido -, pois a exigência de concordância confere-lhe um carácter de necessidade ou probabilidade. A mise en intrigue é, precisamente, este processo configurante que inscreve os acontecimentos narrados na unidade de um discurso.
Defende então Ricoeur que encontramos a identidade do personagem ao transferirmos para ele a operação da mise en intrigue. Encontramos assim uma dialéctica no personagem que lhe é interna - uma dialéctica que é o corolário daquela entre concordância e discordância operada na mise en intrigue. Pela linha da concordância, a singularidade do personagem retira-se da totalidade temporal da unidade da sua vida; pela da discordância, essa totalidade é ameaçada de ruptura por pontuais acontecimentos imprevisíveis (encontros, acidentes, etc.). A síntese operada nesta dialéctica resulta em que o acontecimento que surge primeiramente como inesperado é a posteriori integrado no conjunto numa lógica de necessidade ou probabilidade - assim se transforma o acaso em destino.
É com este pano de fundo que se há-de compreender a ironia da seguinte passagem de Um Homem: Klaus Klump (Gonçalo M. Tavares):
"Klaus é um homem alto. Conheceu Johana porque ela olhou por cima de uma sebe verdíssima e olhou por cima de uma Primavera ainda mais verde que a sebe. Eles costumavam brincar:
Se tu não fosses tão alto, não te teria visto por cima da sebe.
E Klaus dizia a Johana:
Se eu não fosse tão alto a sebe seria mais baixa."
É o próprio personagem, como se vê, que transforma o acaso em destino, inconsciente do processo pelo qual isso já é feito na própria construção da narrativa.
É esta dialéctica concordância-discordância (que opera no interior do personagem) que Ricoeur vai inscrever na dialéctica entre mesmidade e ipseidade da identidade pessoal, defendendo que a identidade narrativa desempenha uma função mediadora entre estes dois pólos. A mesmidade corresponde ao sentido idem do termo identidade - focando-se aqui a ideia de permanência no tempo por oposição a variável, modificável - enquanto a ipseidade corresponde ao sentido ipse - aqui já não vai implicada qualquer asserção respeitante a um núcleo não variável da personalidade.
Estes dois significados da permanência no tempo tendem a confundir-se na nossa experiência quotidiana, mas na ficção (literária) aprofunda-se o espaço de variações na relação entre ambas. Assim, num extremo, o personagem é um carácter identificável e reidentificável como o mesmo: é o que acontece com os personagens do conto de fadas. No romance clássico, diferentemente, encontramos uma exploração do espaço entre os dois extremos, com a transformação progressiva dos personagens ao longo da história. Aproximamo-nos, por fim, do extremo oposto com o romance de aprendizagem (onde passa a estar a intriga ao serviço do personagem). Encontramos nesse pólo extremo o personagem que deixou de ser um carácter.
Este enquadramento oferece-nos uma hipótese de leitura do episódio "The Case of Mr. Pelham" (que resumimos aqui) da série Alfred Hitchcock Presents. Com efeito, parece que Pelham afunda-se no primeiro extremo: cultivou o seu carácter de tal modo que o petrificou. Ele é como um personagem de um conto de fadas - pelos seus hábitos, pela sua aversão à mudança, ele é identificável e reidentificável como o mesmo.
Não se trata assim de uma confusão entre os dois significados da permanência no tempo: Pelham passa, a dada altura, a resumir-se a apenas um desses significados. Reduz-se à sua mesmidade e, assim, a sua vida é feita apenas de concordância. O problema é que essa concordância passa por uma repetição dos mesmos eventos - a discordância é efectivamente eliminada, pois não há novidade na sucessão dos dias de Pelham. Assim, Pelham torna-se uma pessoa sem história, sem narrativa. Ele não é uma pessoa, mas sim um modo de ser.
A discordância introduz a novidade e através dela constrói-se a sucessão de acontecimentos que faz a história. A ligação interna que dá sentido a essa história é conseguida com a síntese dialéctica que referi acima. A ligação só se solidifica por completo com a conclusão da história. Ora, no caso de Pelham, não há limites de tempo para a sua história, não há nenhum ponto a partir do qual possamos impor retroactivamente uma perspectiva de necessidade ou probabilidade dos acontecimentos que o antecederam. Mas isto, afinal, deve-se a que Pelham está fora da história, em resultado de se ter reduzido à sua mesmidade.
Quando Pelham depara com a sua mesmidade, é inevitável a descoberta de que está fora da sua própria história. E isto no sentido de que ele próprio, no fundo, tornou impossível essa história. A sua decisão de mudar de gravata tem de o condenar porque a discordância só poderia surgir no caminho da narrativa. E ele já eliminou qualquer possibilidade de narrativa para si.
O caso de Pelham é, assim, uma confirmação de que, mais do que as pessoas e os seus actos fazerem as histórias, são as histórias que dão vida às pessoas e aos seus feitos.
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