Segundo Alenka Zupančič (The Odd One In: On Comedy), tornou-se imperativo, no ambiente ideológico hodierno, ver tudo o que nos acontece como algo positivo, como experiências que nos ajudam a crescer e a tornarmo-nos melhores. Insatisfação, infelicidade, pessimismo, são tidos por falhas morais, formas de corrupção instaladas no próprio ser da pessoa. Esta "bio-moralidade", uma "moralidade de sentimentos e emoções", pode traduzir-se no axioma: "a person who feels good (and is happy) is a good person; a person who feels bad is a bad person".
Esta "retórica da felicidade", de acordo com a autora, contrapõe-se a uma lógica mais clássica sobre a nossa responsabilidade pelos nossos falhanços e sucessos; nesta lógica vai implicado um intervalo entre o que somos e o valor simbólico do nosso sucesso: somos responsáveis porque poderíamos ter actuado de outro modo. Na perspectiva da bio-moralidade, ao invés, o descontentamento e a frustração revelam que a pessoa é corrupta no seu próprio ser, aparecendo assim os seus fracassos como inevitáveis, como decorrendo necessariamente da sua genética.
Um bom exemplo desta contraposição pode ser encontrado no filme Crimes and Misdemeanors (Woody Allen). Ambas as lógicas, com efeito, aparecem sobrepostas em Lester, um bem-sucedido produtor televisivo, e, mais concretamente, no modo como este se relaciona com o cunhado Cliff, um realizador de cinema relativamente insignificante e em permanente descontentamento com a vida.
Lester vai tentando ajudar Cliff arranjando-lhe trabalho, embora não se identifique com o seu estilo e o ache demasiado idealista, suspeitando igualmente (e correctamente) que Cliff o despreza. Ele exterioriza a lógica de responsabilização mais clássica: acredita que Cliff é o único responsável pelos próprios fracassos, por não conseguir aproveitar oportunidades como as que ele lhe oferece. Esta visão implica um intervalo entre a pessoa e os seus insucessos. Transparece claramente, porém, que, por debaixo destas atitudes politicamente correctas, a verdadeira perspectiva de Lester, memo que contida, é a da "bio-moralidade": Lester não acredita verdadeiramente que Cliff alguma vez possa vir a ter sucesso, ele vê-o, no fundo, como um falhado, condenado geneticamente, por assim dizer, a fracassar.
Cliff aceita os projectos que Lester lhe atribui apenas para ter sustento enquanto desenvolve o projecto que verdadeiramente lhe interessa: um documentário sobre um filósofo e as suas dissertações sobre o amor e a celebração da vida. Quando o filósofo se suicida, Cliff fica desolado, pois este gesto esvazia a mensagem que ele documentara tão dedicadamente. É este derradeiro insucesso, no entanto, que traz a Cliff uma inesperada vitória sobre Lester. Porque o acto do filósofo é afinal um de rebeldia contra o seu próprio ser e, portanto, um desmentido da bio-moralidade. Assim, o fracasso último de Cliff representa para ele, contra Lester, um derradeiro sinal de esperança.
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