E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A distância de si mesmo - O sacrifício de Narciso


Narciso alla Fonte (Caravaggio) 

  Narcissus disbelieves in the unknown;
  He cannot join his image in the lake
  So long as he assumes he is alone.

  W. H. Auden, "Are You There?"
  
  A poesia de Auden transmite com exactidão o narcisismo de Narciso. Narciso não pode juntar-se ao lago enquanto acreditar que está sozinho – o que significa que ele só mergulhará em busca do seu reflexo quando acreditar que assim persegue um outro.
  É fundamental o alerta, porém, de que ele não acredita no desconhecido: o desconhecido não o prende nem atrai. Ora, ao desconhecido pertence o verdadeiro outro. Porque quem nos é completamente outro – i. e., quem de nenhum modo se identifica connosco – permanece-nos fatalmente estranho, distante, inalcançável. A familiaridade com alguém só se consegue tornando esse alguém em nós mesmos (nem que seja um pouco). Ou o inverso: tornando-nos nós esse alguém. Trata-se, no fundo, de uma concretização da velha ideia de que só podemos conhecer o que a nós se compara, o que já vive dentro de nós. Nesta linha, conhecer é sempre reconhecer.

  A constatação de que o que vemos fora de nós se assemelha ao que está em nós elimina uma barreira entre interior e exterior. Precisamente a barreira que, segundo sugere Tolentino Mendonça, inaugura a diferença entre amizade e amor: "a relação de amizade é fecundada pela aceitação buscada dos limites. Talvez a grande diferença entre amor e amizade resida no facto do amor tender sempre para o ilimitado, suspeitando de contornos e fronteiras." Diferentemente do amor, "na amizade (...) aceitamos que exista uma vida sem nós e para lá de nós." Por contraposição ao amante, “o amigo é que faz parte da nossa vida afectiva sem deixar de ser o outro” (Nenhum Caminho Será Longo – Para uma Teologia da Amizade).
  É precisamente esta barreira que, aparentemente ausente no confronto entre Narciso e o seu reflexo, não o impede de se apaixonar por si mesmo. A magia da amizade é a da conversa a partir de dois lados de um muro: a sua arte é a de manter vivo o outro dentro do meu próximo. Por paradoxal que pareça, a morte da amizade começa quando quem me é próximo deixa de me ser secretamente distante. E é isso que o reflexo de Narciso nunca foi. Para Narciso, ele nunca foi o rosto do desconhecido. Por isso, pode atrair-se por ele. Entre ambos não existe um muro. Existe apenas a linha do espelho: aquela que me separa do outro que há em mim. Ao ver-se na água, Narciso não se descobre a si mesmo, mas ao outro que há em si. Por isso ele sabe que não está sozinho: há um outro por ali. E é o único outro que o pode atrair, porque é o único que não lhe é desconhecido: é o outro que ele traz dentro de si mesmo. É o seu outro.

  Narciso estende a mão e, turvando a água, deixa de ver por momentos o seu reflexo. O amor quer transpor todas as barreiras, mesmo aquelas que dão vida a quem se ama. É essa a sua verdadeira cegueira. Porque sempre que Narciso tenta abraçar o seu reflexo, unindo-se a quem ama, a fronteira entre eles desaparece e, com isso, o próprio amor fracassa, pois o outro que o atrai deixa de existir.
  Não é ainda aqui, porém, que Narciso se condena, mas sim no momento seguinte – aquele em que se afoga. No fim de contas, acreditou que, se não conseguia trazer para junto de si o seu reflexo, poderia ele fazer o caminho inverso: juntar-se à imagem. Em vez de transformar o outro nele mesmo, propôs-se transformar-se ele mesmo no outro. E não devemos menosprezar o altruísmo deste gesto: ao abdicar de viver para deixar o outro que ama viver por ele, Narciso, contra a teologia da amizade de Tolentino Mendonça, grita que o seu amor pode ser o gesto de sacrifício que funda a liberdade do (seu) outro.
  A morte de Narciso é o único fim que pode ter o seu sacrifício. Salvá-lo seria condená-lo. Porque depois de abandonar a posição em que adorava o seu reflexo, depois de passar a ocupar o lugar do seu outro, há uma certeza que o tortura mais que tudo: nunca mais poderá ver-se a si mesmo.

domingo, 22 de novembro de 2015

Fatal como a vida - "Unbreakable" (M. Night Shyamalan)


  Há dezenas de milhões de anos, quando os vulcões das actuais Galápagos surgiram no meio do Pacífico, brotaram sem vida animal ou vegetal. Hoje, porém, as águas destas ilhas, como explica David Attenborough, albergam um dos mais diversos ecossistemas marinhos do mundo, secundado, em riqueza e diversidade, pela vida em terra.
  A vida teve de fazer o seu caminho para chegar às Galápagos. Um caminho muito longo e improvável. Hoje encontram-se milhares de iguanas nas suas rochas, mas a primeira a lá chegar teve de percorrer perto de 1000.000 quilómetros pela água, provavelmente numa frágil jangada construída de ramos pelo engenho do arbítrio natural. As tartarugas gigantes que actualmente dão nome às ilhas não sabem nadar, mas conseguem deixar-se flutuar (o que revela nelas uma profunda sabedoria estóica). Há provavelmente 3 milhões de anos, um destes estóicos aventureiros flutuou desde as florestas sul-americanas durante semanas ou meses até chegar às Galápagos, onde deixou ovos. As aranhas foram dos primeiros animais a chegar – conhece-se hoje cerca de 150 espécies diferentes na sua vegetação. Têm um modo muito próprio de viajar: produzem um fio de seda a partir do abdómen, um fio composto de dois filamentos que se agarram entre si com a força com que um bebé humano pela primeira vez berra a vida para fora dos pulmões; a mais leve brisa leva esse fio de seda aonde for e a aranha, como as palavras, vai com o vento. Foi precisamente a flutuar, não pelas águas – como as estóicas tartarugas –, mas pelos céus – como os deuses (e os homens) – que as aranhas fizeram os seus 1000.000 quilómetros até chegarem às Galápagos. Outros animais, como as abelhas carpinteiras, não poderiam ter feito a viagem sem um abrigo especialmente confeccionado – e encontraram-no em pequenos e (in)significantes ramos. Hoje, como desde há tempos sem memória, estes animais polinizadores são fundamentais na vida das Galápagos, a tal ponto que a vegetação se lhes adequou. Nas palavras de Attenborough: "Nearly all the flowers on the Galapagos are now either white or yellow. Those are the colours preferred by the carpenter bees. So there's no point in being anything else."
  A chegada e o caminho da vida nas Galápagos, feitos de vias improváveis e fantásticas, são uma perfeita ilustração da sentença de Ian Malcolm em Jurassic Park (Steven Spielberg): "Life finds a way." A delicadeza dos meios de que a vida se vale para chegar a todos os cantos – mesmo, ou sobretudo, os invisíveis – traz a ilusão da fragilidade: nada é tão inverosímil como a vida e nada é tão resistente. Feita de caminhos improváveis, ela resiste a todas as probabilidades.


  É este olhar sobre o fenómeno natural que nos ajuda a ler a história de Unbreakable (M. Night Shyamalan). Elijah tem uma doença rara (osteogenese imperfeita), em virtude da qual os seus ossos são extremamente frágeis, o que lhe vale a alcunha de "Mr. Glass". Está convencido de que existe certamente alguém que é o seu inverso, alguém cujos ossos não quebram. Acaba por encontrá-lo em David Dunn, único sobrevivente (ileso) de um desastre de comboio. Exceptuando a sua fraqueza na água, David parece quase imortal: não esteve nunca doente, é extremamente resistente e forte, confirmando-se assim como o herói que Elijah procurava.
  A força e resistência de David podem parecer a exibição mais evidente da pujança da vida e da sua inquebrantabilidade. Mas a facilidade com que quase se afoga mostra que nenhum ser vivo é imortal. Isso não disfarça a maravilha: a verdadeira vida é sempre frágil. Essa é a maior prova de que os deuses estão mortos.
  É também esse laço – o da fragilidade – que une David e Elijah. À primeira vista, surge-nos apenas um momento de fraqueza que ambos partilham: a água pode matar qualquer um deles. É, todavia, a especial delicadeza de Elijah que faz dele o verdadeiro herói da história. O caminho de Elijah é o mais improvável: porque pode partir – e porque parte mesmo por vezes – ele tem tudo para ficar pelo caminho. Mas continua. Também David, por seu lado, só está verdadeiramente vivo quando está perto de morrer.
  A dignidade do que é frágil não resulta da sua fraqueza, mas da sua força. Porque o frágil  não depende de nada para poder sobreviver. Protege-se a si mesmo. E assim tem de ser. E isto – para usar uma expressão de Saramago – "É fatal como a morte. E a vida."

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Love my other - "En memoria de Paulina" (Adolfo Bioy Casares)

  No documentário The Pervert's Guide to Cinema (Sophie Fiennes), Zizek diz-nos o seguinte: "All too often, when we love somebody, we don't accept him or her as what the person effectively is. We accept him or her insofar as this person fits the coordinates of our fantasy. We misidentify, wrongly identify him or her, which is why, when we discover that we were wrong, love can quickly turn into violence. There is nothing more dangerous, more lethal for the loved person than to be loved, as it were, for not what he or she is, but for fitting the ideal."
  Estas palavras têm confirmação exacta no conto "En memoria de Paulina" (Adolfo Bioy Casares). O narrador está apaixonado por Paulina, mas esta prefere Julio Montero. Paulina visita o narrador para lhe contar que vai partir com Montero, que entretanto a espera na rua. O narrador parte também (para o estrangeiro) e volta anos depois. Recebe então novamente a visita de Paulina, que lhe declara o seu amor. O narrador descobre na manhã seguinte, porém, que Paulina morreu anos antes, precisamente no dia em que o visitou antes de partir, assassinada por Montero, por motivos de ciúme. O que o narrador viu na noite anterior, de acordo a explicação do próprio, foi precisamente uma projecção dos ciúmes de Montero, a Paulina que Montero fantasiou no seu ciúme, enamorada do narrador, e não a verdadeira – entretanto já morta e que se apaixonara apenas por Montero.

  À primeira vista, pode parecer que este conto contraria o que diz Zizek: Paulina é fiel, não corresponde de modo nenhum ao que Montero temia, pelo que a violência deste, afinal, não poderia ser explicada pela falta de correspondência entre a Paulina real e o modelo ideal projectado por Montero. Não é, porém, assim. Tal leitura assenta numa identificação errada do modelo idealizado por Montero. Na verdade, é precisamente uma Paulina infiel aquilo que Montero desejava. É justamente esse o modelo que ele projecta (e cria), porque é esse que dá sentido ao seu (modo de) ser (um ciumento possessivo). Assim, porque Paulina não corresponde a esse modelo, o seu amor torna-se violência. Ou seja, Montero não mata Paulina porque (pensa que) ela lhe é infiel, mas sim porque (sabe que) ela não o é.
    O conto figura a possibilidade, por outro lado, de se identificar uma segunda dimensão neste tipo de amor: a criadora. O amor de Montero não é meramente destrutivo. Ele mata a Paulina real, mas dá vida a outra Paulina, concretizando assim uma verdade evidente, mas nem sempre tida em conta em histórias de amor violento: para aquele que pensa o modelo, o objecto de desejo só existe – rectius: só merece existir – enquanto corresponder a esse modelo. Para Montero, só a Paulina infiel existia, porque só essa correspondia ao seu modelo. A violência com que Montero reage ao confronto com a Paulina real – com a falta de correspondência entre esta e o seu modelo – mostra que para ele, a pessoa real de Paulina não merecia existir, mas a ideal sim.
  Esta atitude, note-se, não está presente apenas em Montero: ela transparece no próprio narrador. Até à primeira visita de Paulina, o narrador recusa ver a atracção desta pelo rival, apesar dos sinais. Até esse momento, com efeito, crê apenas na Paulina enamorada por ele próprio, rejeitando implicitamente o direito a existir da Paulina real, por contraposição ao seu modelo ideal. A mesma atitude reaparece depois com a segunda visita – a da mulher imaginada/projectada. Esta é recebida com afecto e, apesar dos sinais de que algo está errado (reconhecidos pelo próprio), o narrador rejeita (nessa noite, pelo menos) a possibilidade de aquela não ser a verdadeira Paulina. Reconhece apenas a esta, portanto, o direito de existir, não à outra.
  Como se vê, a Paulina-modelo do narrador e a de Montero são, no fim de contas, a mesma pessoa, pelo que ela é tanto uma criação de Montero como do próprio narrador. Também pelo lado deste se confirma a dimensão criadora do amor idealizador.

  Lembremos a história "Wenn Herr K. einen Menschen liebte" (Bertolt Brecht), em que o senhor Keuner explica o que faz quando ama alguém:


"Was tun Sie", wurde Herr K. gefragt, "wenn Sie einen Menschen lieben?" "Ich mache einen Entwurf von ihm", sagte Herr K., "und sorge, daß er ihm ähnlich wird." "Wer? Der Entwurf?" "Nein", sagte Herr K., "Der Mensch." 


  O senhor Keuner faz um esboço da pessoa em questão e depois procura garantir, não que o esboço se assemelhe à pessoa, mas sim que esta se assemelhe ao esboço.
  A coincidência entre as referidas Paulinas-modelo permite também avançar uma hipótese curiosa. Essa coincidência dá-nos a entender que, de certo modo, os olhos com que Montero e o narrador vêem Paulina são, no fim de contas, os mesmos. Pelo que se pode afirmar que entre os dois há uma relação de mesmidade. Montero e o narrador são, para efeitos do que vêem (e do que criam com essa visão), a mesma pessoa. Na história de Paulina, tanto o narrador como Montero são, afinal, senhores K. frustrados e violentos, incapazes de aceitar uma Paulina que não corresponda ao esboço que dela fizeram.
  Claro que essa mesmidade, existindo, não é suficiente para apagar a "outridade" que também caracteriza a sua relação. Ou seja, embora se identifiquem para certo efeito, Montero e o narrador mantêm-se, no restante, separados – como se confirma pelo facto de que a idealização de Montero – a de uma Paulina infiel – pressupõe necessariamente a existência de outro (o narrador) com quem Paulina o possa trair. Por outras palavras, se o narrador e Montero coincidissem totalmente, Paulina não seria infiel a Montero (estaria a traí-lo com ele mesmo, o que não seria traição), pelo que a idealização deste fracassaria. Assim, Montero é um outro para o narrador, tal como este o é para Montero. Mas se Montero é outro para alguém com quem se identifica, então Montero é o outro do narrador, e este é o outro de Montero.
  Estes desenvolvimentos ajudam a perceber melhor o que está em jogo no desejo dos dois rivais. O narrador deseja que Paulina o deseje a ele e não ao seu (dele) outro (Montero). Ou seja, ele pretende que ela o deseje rejeitando ao mesmo tempo o outro que em si mora. A lição do conto surge então aqui como a de que este amor não pode ser correspondido, por ser demasiado egoísta: Paulina pode suportar (amar) alguém que rejeita quem lhe é completamente outro (leia-se: pode amar Montero, apesar de ele a rejeitar como ela é e a substituir por uma Paulina idealizada). Mas não pode amar alguém que vai ainda mais longe na sua aversão: alguém que não apenas a rejeita como ela é (ou seja, não apenas rejeita quem lhe é completamente outro), como rejeita o seu (dele) próprio outro, i. e., rejeita também o outro que é ele mesmo.
  Deste modo, sob aparência enganadora, uma estranha lição de moral esconde-se neste conto. O amor egoísta do narrador deixa-o só, enquanto o amor altruísta de Montero é, pelo contrário, correspondido.
  Esta lição, todavia, traduz apenas um castigo para a cegueira do narrador. Dado que este vê o que Montero vê (a mesma Paulina idealizada), eles comungam um ponto de vista. E essa coincidência impede-o de perceber que Montero é o seu outro – do mesmo modo que se eu passar para o outro lado do espelho (sem dar conta), não posso perceber que o que está do lado lá é o meu reflexo, ou seja, é um outro que me pertence. Ora, quando o espelho nos devolve o nosso reflexo, devolve-nos o nosso outro. E esse outro é também o modo como aparecemos a terceiros: é o nosso outro que os terceiros encontram quando nos olham. Por não perceber que Montero é o seu outro – por outras palavras: por não ser capaz de ver o que Paulina vê quando olha para ele (narrador) –, o narrador não entende que deveria ter idealizado Paulina do mesmo modo que Montero o fez: o que ele deveria ter almejado, para conseguir que Paulina o desejasse (a ele, narrador) era, afinal, que Paulina desejasse Montero.
  Montero, pelo contrário, percebe o que Paulina vê quando olha para ele e por isso idealiza-a correctamente: como estando apaixonada pelo seu outro, i. e., pelo narrador. Precisamente porque Paulina rejeita esse outro, no entanto, Montero descobre-se, a final, rejeitado. E é essa rejeição que ele não é capaz de suportar. Porque um amor que não se dirige ao meu outro é um amor que nunca me vai atingir. Porque Paulina ama Montero e não o narrador, Montero nunca poderá dizer-se amado.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Nada custa a Aquiles, mas tudo custa a Heitor



  Há uma respiração divina no toque de Messi.
  Gonçalo M. Tavares escreve que “o importante da respiração é o modo como ela não existe.” E que a cabeça deve respirar como a água: são os outros - o Peixe, por exemplo - que respiram pela água” (Livro da Dança). Messi tem esse modo divino de respirar quando joga, que consiste em deixar a bola respirar por ele.
  Cristiano respira sozinho. O fôlego está preso nos túneis do seu corpo e a bola surda é incapaz de ouvir sequer ecos dessa respiração. Messi é oco porque a bola é que faz o trabalho da respiração por si. Cristiano, pelo contrário, joga com uma bola vazia, porque traz tudo dentro de si mesmo - não quer, não pode perder nada. Messi, pelo contrário, nada tem a perder.
  As emoções não fazem parte do jogo de Cristiano, elas são esse jogo. Não remata senão com a fúria de derrubar, não corre senão com a ousadia louca de querer chegar onde não pode, não falha senão já com o desespero de um Job revoltado e não celebra senão com a arrogância de quem quer o mundo a olhar para si. Cristiano leva as emoções humanas ao extremo e todos os momentos do jogo são oportunidades para as estender um pouco mais além. Joga sempre assaltado pela manía, a loucura guerreira que, na Ilíada, cegava os heróis humanos como Heitor ou Diomedes.
  Messi, pelo contrário, não se emociona na nossa linguagem. A sua fúria, como a mênis de Aquiles, é uma paixão divina, de que os homens não podem falar e que ele só partilha com os deuses. As suas jogadas nada lembram das investidas de Agamémnon, dos golpes de Menelau ou dos ímpetos de Diomedes. Elas ecoam, isso sim, os caminhos com que Atena, Ares ou Apolo espalhavam a sua ira nos campos de Tróia. Se o olhar de Messi parece perdido ou deixado noutro lugar que não o campo, é porque o seu campo é outro. Ele não está perdido; mora no Olimpo. Nesse olhar que aos nossos olhos que não vêem parece não ver, espreita, por isso, "o primeiro estrangeiro da literatura universal" ("il primo straniero della letteratura universale"), como Pietro Citati chamou a Aquiles (La Mente Colorata).
  Porque as suas emoções nascem para lá das medidas humanas, Messi pode exibir o infinito numa jogada. Ele não é um combatente, como Cristiano, porque não joga com as correntes deste. A glória de Cristiano é a de um duelo impossível com os limites humanos. Por vezes vence algumas batalhas e toca o céu. São momentos em que quase podemos ouvir as moradas dos deuses estremecerem com a sua fúria humana. Mas para chegar a ser sobre-humano, Cristiano é sempre humano no princípio da luta. Porque traz tudo dentro de si e joga na vertigem de o perder, podemos dizer dele, como Rachel Bespaloff disse de Heitor, que "tem muito a perder, estando preenchido, mas sempre acima do que o preenche, pelo seu ardor de desafiar o destino" ("il a beaucoup à perdre étant comblé et toujours au-dessus de ce qui le comble par son ardeur à défier le destin" - De l'Iliade).
  Aparentemente, a dimensão do jogo de Messi é a do trágico hegeliano: move-se no campo como o actor do antigo teatro grego que, pela máscara, representava a Essência. Analisando o pensamento de Hegel sobre a tragédia, diz Alenka Zupančič: “When the actor puts on the mask, he is no longer himself; in the mask, he brings to life the (universal) essence he represents.” (The Odd One In: On Commedy) Também a camisola 10 parece ser a máscara com que o actor deixa de ser Lionel para representar Messi - porque só se pode representar Messi e o seu jogo, nunca sê-lo e jogá-lo verdadeiramente.
  Como explica Zupančič, no entanto, “the essence ultimately exists only as the universal moment, separated by the mask from the concrete and actual self, and as such this essence is still not actual”. Ora, se assim é, esta não é afinal a dimensão do jogo de Messi, mas sim a de Cristiano. É Cristiano que, por vezes representa a Essência numa jogada, é ele que de vez em quando vemos dar uns passos no trilho do infinito. E sabemos que é ele porque quando o vemos jogar ouvimos respirar o homem que veste a camisola 7 e ficamos a saber que ele está lá - tal como o espectador de uma tragédia grega antiga sabia que havia um homem por detrás da máscara. Ainda seguindo Zupančič, se na tragédia encontramos uma consciência individual a representar o papel do universal abstracto (a pôr a máscara de infinito por uns instantes), já na comédia a pessoa desse indivíduo coincide com a própria essência, não se limita a representá-la. Quando vemos jogar Messi, não sentimos que haja um homem ali disfarçado, porque sabemos que é a bola que respira e não encontramos olhar algum. As suas jogadas não são encenação de infinito, antes trazem o infinito em si porque já são esse infinito. Por isto podemos completar a sentença de há pouco dizendo que ninguém pode ser verdadeiramente Messi e jogar como ele, a não ser o próprio Lionel. E concluir que a dimensão do jogo de Messi é afinal a do cómico hegeliano, ficando para Cristiano a dimensão trágica.
  Rachel Bespaloff escreveu que "nada custa a Aquiles, mas tudo custa a Heitor" (“rien ne coûte à Achille, mais tout coûte à Hector”). É aqui que na tragédia de Cristiano aparece o seu heroísmo. O seu grito de fúria não é o grito de Aquiles, cuja ira não podemos compreender. A sua revolta é, pelo contrário, a que mais ressoa no nosso interior, porque é profundamente humana: dirige-se contra a finitude. E se a paixão divina de Messi está para além do nosso entendimento, o heroísmo de Cristiano só pode ser entendido no mundo dos Antigos. Porque, como explica Sloterdijk (Zorn und Zeit), aí o heroísmo assume uma importância vital: os actos heróicos testemunham a possibilidade de criar algo novo, algo que não surge logicamente dos ditames da Natureza (e dentro dos limites desta). Eles mostram que “sob o Sol surge algo mais do que o indiferente e o eternamente idêntico” (“unter der Sonne ereignet sich mehr als das Gleichgültige und Immergleich”). O jogo de Messi, por lhe faltar a transpiração humana, não assume esta dimensão. Por isso, tal como, "mesmo vencido, a coragem de Heitor não se esvanece diante do heroísmo de Aquiles" (“même vaincu, le courage d’Hector ne s’efface pas devant l’heroïsme d’Achille” - Bespaloff), também a ousadia de Cristiano não pode ser ocultada pelo talento de Messi.

  "Heitor tudo sofreu e tudo perdeu, excepto a si mesmo" (“Hector a tout souffert, et tout perdu sauf lui-même”- Bespaloff). Também Cristiano, na sua batalha por ganhar o mundo para o poder trazer na barriga, há-de acabar por tudo perder - para, no fim, se ganhar a si mesmo na história que está a escrever. Não sendo o jogador mais espectacular (Ronaldinho), o mais elegante (Zidane) ou o mais literariamente romântico (Garrincha), a dimensão trágica da sua história torna-o o mais heróico de todos.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

"Esse lugar é meu!" - O pesadelo invertido

  O tema do doppelgänger, do outro que vagueia por aí como um fantasma a assombrar-nos, é geralmente mote de histórias de terror ou angústia do original, daquele que é duplicado: a perspectiva com que seguimos a narrativa é a da pessoa cuja identidade é ameaçada pelo duplo, e, por norma, é o ponto de vista de alguém nervoso, temendo (justificadamente) que a sua identidade e o seu lugar no mundo sejam tomados por esse outro.
  Estas histórias trazem, portanto, em regra, relatos de usurpação, de um assalto protagonizado pelo duplo em relação ao original. Não interessa, para este efeito, se este original, pelas suas qualidades ou atitudes, realmente “merece” manter o seu lugar no mundo ou não. Assim, por exemplo, no episódio “Nervous Man in a Four Dollar Room”, da série The Twilight Zone, o final - substituição do original pelo duplo - é claramente apresentado como desejável e merecido.


  O sketch “Esse lugar é meu”, dos Gato Fedorento, apresenta uma curiosa inversão de perspectiva neste tema. Nas histórias tradicionais, o duplo não questiona a precedência do original. Muitas vezes, declara mesmo abertamente a intenção de o substituir - reconhecendo assim, implicitamente, que o lugar não é seu, que só se tornará seu quando ele o tomar e apenas por causa disso. O máximo a que o duplo chega, no que respeita a pretensões de legitimidade para fazer seu o lugar do original, é a uma crítica da conduta deste, a uma argumentação que visa provar que o original não merece manter o lugar e que ele - o duplo - saberá utilizá-lo com muito mais proveito.
  Isto basta para termos a certeza de que Miguel Góis representa, no sketch referido, o lugar do original, do duplicado, enquanto Ricardo Araújo Pereira é o duplo. Com efeito, a pretensão daquele é a de uma legitimidade originária, é a de quem reclama o lugar, o casaco, a família, como coisas que são suas porque lhe pertencem desde o início. Ele não argumenta, não tenta explicar que as merece mais do que o outro, reclama-as simplesmente como suas. É verdade que o outro também não desenvolve qualquer argumentação naquele sentido, mas o decisivo, aqui, é que ele não questiona aquela legitimidade originária. Isso basta para estabelecer os papéis.
  A inversão concretiza-se então no seguinte: neste sketch, é o outro quem ocupa o lugar do original, e é o original quem vem tomar o lugar do outro. Se alguém aqui teria razões para se sentir angustiado seria o outro, não o original.
  É curioso também verificar o contexto em que a inversão é encenada. A acção decorre num estádio vazio (exceptuando os dois personagens). Compreenderemos a importância deste pormenor se atentarmos no papel que o público tem nas tradicionais histórias que vínhamos referindo. O exemplo mais claro é talvez O Duplo, de Dostoiévski. A angústia do protagonista (Goliádkin) concretiza-se, sobretudo, na percepção da aprovação que o duplo recebe por parte dos outros, contrastante com o embaraço que ele sente de cada vez que se ridiculariza em público. Mas também noutros casos - em que a angústia do original não passa, pelo menos aparentemente, por esta sensação de humilhação ou rebaixamento - é atribuído um papel fundamental ao olhar do público. Assim, por exemplo, no episódio “The Case of Mr. Pelham” (Alfred Hitchcock), da série Alfred Hitchcock Presents, a crise do protagonista começa, precisamente, com reacções e relatos de terceiros. O problema nasce quando terceiros começam a vê-lo em vários lugares - lugares onde ele não esteve - a fazer coisas que ele não fez. Deste modo, a consciência da possibilidade de vir a ser substituído - e a angústia daí decorrente - só surgem por transmissão de terceiros: de facto, é o próprio olhar do terceiro que dá origem àquela possibilidade, pois é só aos olhos dos outros que o duplo pode tomar o lugar do original. É pelo olhar do terceiro, em suma, que o original toma consciência da possibilidade de ser substituído.
  Ora, em “Esse lugar é meu”, não há público. O estádio vazio exibe ostensivamente a ausência de terceiros. E talvez essa ausência seja decisiva na inversão de que vimos tratando. Porque se não há o olhar de um terceiro, não se abre o caminho para o outro tomar o lugar do original. É antes este quem pode, com toda a segurança, (re)tomar o seu lugar do outro.
  
  Na última troca de palavras no sketch, o duplo diz “vamos lá ver se você não tem aí mais nada meu”, ao que o original responde “essa deixa é minha”. A primeira frase é a mais radical tentativa de aniquilação do original: nenhum duplo, com efeito, em nenhuma obra conhecida, vai tão longe na sua pretensão de se substituir a quem chegou primeiro. Porque aqui, mais do que tomar simplesmente as coisas deste, o duplo tenta usurpar o seu lugar pondo-se na posição de usurpado. Em bom rigor, aliás, não será porventura correcto dizer que ele tenta tomar o lugar do original; diremos, mais exactamente, que ele tenta transformar o seu lugar (de duplo) no verdadeiro lugar do original, ou seja: ele não tenta trocar de lugar, mas sim trocar os próprios lugares.
  À primeira vista, pode parecer desapropriada (e por isso cómica) a última fala do duplo, visto que era ele quem tinha  as coisas do original, não o inverso. Deveria ser o original, portanto, a dizer aquilo. Mas tendo em conta o que acabamos de ver, a fala é, afinal, a mais adequada, atendendo ao que o duplo queria fazer. Agora que o original já retomou as suas coisas, desapossando delas o duplo, a este só resta uma atitude coerente, se quer manter o seu propósito de ocupar o lugar do original: inverter o sentido dos gestos dos dois intervenientes, fazendo aparecer a atitude do original - de retomar as coisas que são suas - como se fosse a de um duplo a usurpar o que não é (originariamente) seu. O que sugere uma conclusão assustadora. O original consegue, neste sketch, sobreviver ao pesadelo a que sucumbem o sr. Pelham ou Goliádkin: não se deixa vencer pelo seu duplo. Mas é preciso atenção, porque pode um pesadelo invertido estar escondido sob o disfarce de um pesadelo terminado.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A morte dos brinquedos


  No filme Toy Story 3 (Lee Unkrich), Woody e os outros brinquedos encaram a iminência da separação de Andy, o seu dono, que já não é uma criança. Os brinquedos não podem acompanhar Andy no seu crescimento e assim o desencontro é inevitável. Eles não envelhecem – o que são, são-no para sempre. A infância de Andy é o único momento que a sua efemeridade pode partilhar com a eternidade dos brinquedos.
  A tragédia dos brinquedos é a do abandono. Andy parte e tem de os deixar. É a tragédia de ficarem. Ficam para sempre. Ficarão mesmo quando Andy já lá não estiver, quando tiver desaparecido por completo. São eles, de facto, quem mais sente a efemeridade de Andy: a ausência do rapaz só está presente porque eles a sentem. O vazio de Andy só existe nos seus brinquedos. Qualquer encontro é breve, face à perspectiva da eternidade. E é quase como se este breve encontro entre eles servisse apenas para criar o vazio que vai durar para sempre. Por isso, em Toy Story, por paradoxal que pareça, é um breve momento que dá luz à eternidade. O que existe para sempre nasce do ventre do efémero.


  A perspectiva trágica dos brinquedos é o reverso da do livro Peter and Wendy (J. M. Barrie). Também Peter Pan permanece. O único encontro possível com ele dá-se na infância de Wendy e seus irmãos, porque Peter não cresce, não envelhece. A viagem à Terra do Nunca não é senão o provar um pouco de eternidade. Mas esse gosto têm-no todas as crianças em cada brincadeira. Um brinquedo é isso mesmo: a oportunidade de sermos eternos por um instante.
  É também por isso que os brinquedos, em Toy Story, não se mexem nem falam quando Andy está por perto. Porque o gosto da eternidade dá-se através do vislumbre e não do toque ou da mistura. A única eternidade possível para Andy ou as outras pessoas seria a da morte enquanto nada, não-ser. E não é essa a morte que virá para Andy. Ela chegará antes como o fim da vida, como o limite para a sua história. Também na peça de teatro Peter Pan, or The Boy Who Wouldn't Grow Up, segundo indicações de Barrie, Peter nunca podia ser tocado por nenhum personagem. De tal modo que a fada que o acompanhava tinha de impedir Wendy de o beijar. Todo o beijo é um furto e neste caso ele é impossível para Wendy: podemos experimentar a eternidade, mas não podemos fazê-la nossa.
  Em Peter and Wendy, a perspectiva é a de Wendy. A tragédia aqui é a de quem tem de partir e observa quem fica. A de quem vê quem vem a seguir (Jane, depois Margaret, etc.) ocupar o lugar que foi seu. Peter vai acabar por esquecer Wendy, como esqueceu Mary (mãe de Wendy) e como vai esquecer Jane e Margaret. Ele tem de esquecer para continuar criança (segundo nos é dito em Peter and Wendy). Assim, a tragédia de Wendy é a de saber que vai desaparecer. E vai desaparecer, não apenas de si mesma, mas também dos outros: quem fica (Peter) não a recordará.
  No livro The Man who mistook his Wife for a Hat – And Other Clinical Tales, Oliver Sacks dá-nos a conhecer o caso do “marinheiro perdido” (lost mariner) Jimmie G., que, detido mentalmente na data de 1945, não conseguia guardar memória a partir daí, esquecendo tudo (o que lhe ia acontecendo a partir daquela data) no espaço de minutos. A vida deste homem dissolvia-se assim num limbo: ele não tinha, por assim dizer, um lugar no tempo, andava continuamente à deriva. Tendo já decorrido décadas sobre o momento em que a sua memória estagnou, o homem julgava ser muitos anos mais novo do que era de facto. Por isso, o momento em que o médico o põe diante de um espelho é de um choque profundo para ele. O marinheiro descobre então que envelheceu. Que o tempo passou para si. Ora, também Peter Pan tem um momento de terror, de certo modo, simétrico: aquele em que Wendy acende a luz e ele descobre que ela envelheceu (“For almost the only time in his life that I know of, Peter was afraid”). Assim, se o marinheiro fica horrorizado ao descobrir que ele próprio não é Peter Pan, o horror de Peter é o de descobrir que os outros também não o são. Mas porque há uma outra criança (Jane) que surge sempre a seguir, Peter, como o marinheiro, pode esquecer e começar tudo de novo. É assim, eternamente, para ele. E para os brinquedos em Toy Story: também eles poderão começar de novo com Bonnie, a criança que vem a seguir. E virá porventura outra um dia. Ao contrário de Peter, porém, o que é neles mais eterno é o vazio de quem partiu: eles estão condenados a recordar.

  Fernando Savater diz que, por nascermos, já vencemos a morte. Já negámos o nada. Mas a verdade é que se morrermos e nada existir depois disso, o breve instante em que vivemos passa por esmagado pela eternidade da escuridão. Por isso, é como se cada criança que vem a seguir tivesse a missão de lembrar que já vencemos a eternidade do nada há muito tempo. Vencemo-la para sempre. E se a essa chama ligamos a vida é porque, afinal, a eternidade só vive quando o efémero a visita. Peter não tem aventuras sem Wendys, fadas ou meninos perdidos. E um brinquedo morre no fim de cada brincadeira.