No documentário The Pervert's Guide to Cinema (Sophie Fiennes), Zizek diz-nos o seguinte: "All too often, when we love somebody, we don't accept him or her as what the person effectively is. We accept him or her insofar as this person fits the coordinates of our fantasy. We misidentify, wrongly identify him or her, which is why, when we discover that we were wrong, love can quickly turn into violence. There is nothing more dangerous, more lethal for the loved person than to be loved, as it were, for not what he or she is, but for fitting the ideal."
Estas palavras têm confirmação exacta no conto "En memoria de Paulina" (Adolfo Bioy Casares). O narrador está apaixonado por Paulina, mas esta prefere Julio Montero. Paulina visita o narrador para lhe contar que vai partir com Montero, que entretanto a espera na rua. O narrador parte também (para o estrangeiro) e volta anos depois. Recebe então novamente a visita de Paulina, que lhe declara o seu amor. O narrador descobre na manhã seguinte, porém, que Paulina morreu anos antes, precisamente no dia em que o visitou antes de partir, assassinada por Montero, por motivos de ciúme. O que o narrador viu na noite anterior, de acordo a explicação do próprio, foi precisamente uma projecção dos ciúmes de Montero, a Paulina que Montero fantasiou no seu ciúme, enamorada do narrador, e não a verdadeira – entretanto já morta e que se apaixonara apenas por Montero.
À primeira vista, pode parecer que este conto contraria o que diz Zizek: Paulina é fiel, não corresponde de modo nenhum ao que Montero temia, pelo que a violência deste, afinal, não poderia ser explicada pela falta de correspondência entre a Paulina real e o modelo ideal projectado por Montero. Não é, porém, assim. Tal leitura assenta numa identificação errada do modelo idealizado por Montero. Na verdade, é precisamente uma Paulina infiel aquilo que Montero desejava. É justamente esse o modelo que ele projecta (e cria), porque é esse que dá sentido ao seu (modo de) ser (um ciumento possessivo). Assim, porque Paulina não corresponde a esse modelo, o seu amor torna-se violência. Ou seja, Montero não mata Paulina porque (pensa que) ela lhe é infiel, mas sim porque (sabe que) ela não o é.
O conto figura a possibilidade, por outro lado, de se identificar uma segunda dimensão neste tipo de amor: a criadora. O amor de Montero não é meramente destrutivo. Ele mata a Paulina real, mas dá vida a outra Paulina, concretizando assim uma verdade evidente, mas nem sempre tida em conta em histórias de amor violento: para aquele que pensa o modelo, o objecto de desejo só existe – rectius: só merece existir – enquanto corresponder a esse modelo. Para Montero, só a Paulina infiel existia, porque só essa correspondia ao seu modelo. A violência com que Montero reage ao confronto com a Paulina real – com a falta de correspondência entre esta e o seu modelo – mostra que para ele, a pessoa real de Paulina não merecia existir, mas a ideal sim.
Esta atitude, note-se, não está presente apenas em Montero: ela transparece no próprio narrador. Até à primeira visita de Paulina, o narrador recusa ver a atracção desta pelo rival, apesar dos sinais. Até esse momento, com efeito, crê apenas na Paulina enamorada por ele próprio, rejeitando implicitamente o direito a existir da Paulina real, por contraposição ao seu modelo ideal. A mesma atitude reaparece depois com a segunda visita – a da mulher imaginada/projectada. Esta é recebida com afecto e, apesar dos sinais de que algo está errado (reconhecidos pelo próprio), o narrador rejeita (nessa noite, pelo menos) a possibilidade de aquela não ser a verdadeira Paulina. Reconhece apenas a esta, portanto, o direito de existir, não à outra.
Como se vê, a Paulina-modelo do narrador e a de Montero são, no fim de contas, a mesma pessoa, pelo que ela é tanto uma criação de Montero como do próprio narrador. Também pelo lado deste se confirma a dimensão criadora do amor idealizador.
Lembremos a história "Wenn Herr K. einen Menschen liebte" (Bertolt Brecht), em que o senhor Keuner explica o que faz quando ama alguém:
"Was tun Sie", wurde Herr K. gefragt, "wenn Sie einen
Menschen lieben?" "Ich mache einen Entwurf von ihm", sagte
Herr K., "und sorge, daß er ihm ähnlich wird." "Wer? Der
Entwurf?" "Nein", sagte Herr K., "Der Mensch."
O senhor Keuner faz um esboço da pessoa em questão e depois procura garantir, não que o esboço se assemelhe à pessoa, mas sim que esta se assemelhe ao esboço.
A coincidência entre as referidas Paulinas-modelo permite também avançar uma hipótese curiosa. Essa coincidência dá-nos a entender que, de certo modo, os olhos com que Montero e o narrador vêem Paulina são, no fim de contas, os mesmos. Pelo que se pode afirmar que entre os dois há uma relação de mesmidade. Montero e o narrador são, para efeitos do que vêem (e do que criam com essa visão), a mesma pessoa. Na história de Paulina, tanto o narrador como Montero são, afinal, senhores K. frustrados e violentos, incapazes de aceitar uma Paulina que não corresponda ao esboço que dela fizeram.
Claro que essa mesmidade, existindo, não é suficiente para apagar a "outridade" que também caracteriza a sua relação. Ou seja, embora se identifiquem para certo efeito, Montero e o narrador mantêm-se, no restante, separados – como se confirma pelo facto de que a idealização de Montero – a de uma Paulina infiel – pressupõe necessariamente a existência de outro (o narrador) com quem Paulina o possa trair. Por outras palavras, se o narrador e Montero coincidissem totalmente, Paulina não seria infiel a Montero (estaria a traí-lo com ele mesmo, o que não seria traição), pelo que a idealização deste fracassaria. Assim, Montero é um outro para o narrador, tal como este o é para Montero. Mas se Montero é outro para alguém com quem se identifica, então Montero é o outro do narrador, e este é o outro de Montero.
Estes desenvolvimentos ajudam a perceber melhor o que está em jogo no desejo dos dois rivais. O narrador deseja que Paulina o deseje a ele e não ao seu (dele) outro (Montero). Ou seja, ele pretende que ela o deseje rejeitando ao mesmo tempo o outro que em si mora. A lição do conto surge então aqui como a de que este amor não pode ser correspondido, por ser demasiado egoísta: Paulina pode suportar (amar) alguém que rejeita quem lhe é completamente outro (leia-se: pode amar Montero, apesar de ele a rejeitar como ela é e a substituir por uma Paulina idealizada). Mas não pode amar alguém que vai ainda mais longe na sua aversão: alguém que não apenas a rejeita como ela é (ou seja, não apenas rejeita quem lhe é completamente outro), como rejeita o seu (dele) próprio outro, i. e., rejeita também o outro que é ele mesmo.
Deste modo, sob aparência enganadora, uma estranha lição de moral esconde-se neste conto. O amor egoísta do narrador deixa-o só, enquanto o amor altruísta de Montero é, pelo contrário, correspondido.
Esta lição, todavia, traduz apenas um castigo para a cegueira do narrador. Dado que este vê o que Montero vê (a mesma Paulina idealizada), eles comungam um ponto de vista. E essa coincidência impede-o de perceber que Montero é o seu outro – do mesmo modo que se eu passar para o outro lado do espelho (sem dar conta), não posso perceber que o que está do lado lá é o meu reflexo, ou seja, é um outro que me pertence. Ora, quando o espelho nos devolve o nosso reflexo, devolve-nos o nosso outro. E esse outro é também o modo como aparecemos a terceiros: é o nosso outro que os terceiros encontram quando nos olham. Por não perceber que Montero é o seu outro – por outras palavras: por não ser capaz de ver o que Paulina vê quando olha para ele (narrador) –, o narrador não entende que deveria ter idealizado Paulina do mesmo modo que Montero o fez: o que ele deveria ter almejado, para conseguir que Paulina o desejasse (a ele, narrador) era, afinal, que Paulina desejasse Montero.
Montero, pelo contrário, percebe o que Paulina vê quando olha para ele e por isso idealiza-a correctamente: como estando apaixonada pelo seu outro, i. e., pelo narrador. Precisamente porque Paulina rejeita esse outro, no entanto, Montero descobre-se, a final, rejeitado. E é essa rejeição que ele não é capaz de suportar. Porque um amor que não se dirige ao meu outro é um amor que nunca me vai atingir. Porque Paulina ama Montero e não o narrador, Montero nunca poderá dizer-se amado.