E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

"Esse lugar é meu!" - O pesadelo invertido

  O tema do doppelgänger, do outro que vagueia por aí como um fantasma a assombrar-nos, é geralmente mote de histórias de terror ou angústia do original, daquele que é duplicado: a perspectiva com que seguimos a narrativa é a da pessoa cuja identidade é ameaçada pelo duplo, e, por norma, é o ponto de vista de alguém nervoso, temendo (justificadamente) que a sua identidade e o seu lugar no mundo sejam tomados por esse outro.
  Estas histórias trazem, portanto, em regra, relatos de usurpação, de um assalto protagonizado pelo duplo em relação ao original. Não interessa, para este efeito, se este original, pelas suas qualidades ou atitudes, realmente “merece” manter o seu lugar no mundo ou não. Assim, por exemplo, no episódio “Nervous Man in a Four Dollar Room”, da série The Twilight Zone, o final - substituição do original pelo duplo - é claramente apresentado como desejável e merecido.


  O sketch “Esse lugar é meu”, dos Gato Fedorento, apresenta uma curiosa inversão de perspectiva neste tema. Nas histórias tradicionais, o duplo não questiona a precedência do original. Muitas vezes, declara mesmo abertamente a intenção de o substituir - reconhecendo assim, implicitamente, que o lugar não é seu, que só se tornará seu quando ele o tomar e apenas por causa disso. O máximo a que o duplo chega, no que respeita a pretensões de legitimidade para fazer seu o lugar do original, é a uma crítica da conduta deste, a uma argumentação que visa provar que o original não merece manter o lugar e que ele - o duplo - saberá utilizá-lo com muito mais proveito.
  Isto basta para termos a certeza de que Miguel Góis representa, no sketch referido, o lugar do original, do duplicado, enquanto Ricardo Araújo Pereira é o duplo. Com efeito, a pretensão daquele é a de uma legitimidade originária, é a de quem reclama o lugar, o casaco, a família, como coisas que são suas porque lhe pertencem desde o início. Ele não argumenta, não tenta explicar que as merece mais do que o outro, reclama-as simplesmente como suas. É verdade que o outro também não desenvolve qualquer argumentação naquele sentido, mas o decisivo, aqui, é que ele não questiona aquela legitimidade originária. Isso basta para estabelecer os papéis.
  A inversão concretiza-se então no seguinte: neste sketch, é o outro quem ocupa o lugar do original, e é o original quem vem tomar o lugar do outro. Se alguém aqui teria razões para se sentir angustiado seria o outro, não o original.
  É curioso também verificar o contexto em que a inversão é encenada. A acção decorre num estádio vazio (exceptuando os dois personagens). Compreenderemos a importância deste pormenor se atentarmos no papel que o público tem nas tradicionais histórias que vínhamos referindo. O exemplo mais claro é talvez O Duplo, de Dostoiévski. A angústia do protagonista (Goliádkin) concretiza-se, sobretudo, na percepção da aprovação que o duplo recebe por parte dos outros, contrastante com o embaraço que ele sente de cada vez que se ridiculariza em público. Mas também noutros casos - em que a angústia do original não passa, pelo menos aparentemente, por esta sensação de humilhação ou rebaixamento - é atribuído um papel fundamental ao olhar do público. Assim, por exemplo, no episódio “The Case of Mr. Pelham” (Alfred Hitchcock), da série Alfred Hitchcock Presents, a crise do protagonista começa, precisamente, com reacções e relatos de terceiros. O problema nasce quando terceiros começam a vê-lo em vários lugares - lugares onde ele não esteve - a fazer coisas que ele não fez. Deste modo, a consciência da possibilidade de vir a ser substituído - e a angústia daí decorrente - só surgem por transmissão de terceiros: de facto, é o próprio olhar do terceiro que dá origem àquela possibilidade, pois é só aos olhos dos outros que o duplo pode tomar o lugar do original. É pelo olhar do terceiro, em suma, que o original toma consciência da possibilidade de ser substituído.
  Ora, em “Esse lugar é meu”, não há público. O estádio vazio exibe ostensivamente a ausência de terceiros. E talvez essa ausência seja decisiva na inversão de que vimos tratando. Porque se não há o olhar de um terceiro, não se abre o caminho para o outro tomar o lugar do original. É antes este quem pode, com toda a segurança, (re)tomar o seu lugar do outro.
  
  Na última troca de palavras no sketch, o duplo diz “vamos lá ver se você não tem aí mais nada meu”, ao que o original responde “essa deixa é minha”. A primeira frase é a mais radical tentativa de aniquilação do original: nenhum duplo, com efeito, em nenhuma obra conhecida, vai tão longe na sua pretensão de se substituir a quem chegou primeiro. Porque aqui, mais do que tomar simplesmente as coisas deste, o duplo tenta usurpar o seu lugar pondo-se na posição de usurpado. Em bom rigor, aliás, não será porventura correcto dizer que ele tenta tomar o lugar do original; diremos, mais exactamente, que ele tenta transformar o seu lugar (de duplo) no verdadeiro lugar do original, ou seja: ele não tenta trocar de lugar, mas sim trocar os próprios lugares.
  À primeira vista, pode parecer desapropriada (e por isso cómica) a última fala do duplo, visto que era ele quem tinha  as coisas do original, não o inverso. Deveria ser o original, portanto, a dizer aquilo. Mas tendo em conta o que acabamos de ver, a fala é, afinal, a mais adequada, atendendo ao que o duplo queria fazer. Agora que o original já retomou as suas coisas, desapossando delas o duplo, a este só resta uma atitude coerente, se quer manter o seu propósito de ocupar o lugar do original: inverter o sentido dos gestos dos dois intervenientes, fazendo aparecer a atitude do original - de retomar as coisas que são suas - como se fosse a de um duplo a usurpar o que não é (originariamente) seu. O que sugere uma conclusão assustadora. O original consegue, neste sketch, sobreviver ao pesadelo a que sucumbem o sr. Pelham ou Goliádkin: não se deixa vencer pelo seu duplo. Mas é preciso atenção, porque pode um pesadelo invertido estar escondido sob o disfarce de um pesadelo terminado.

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