E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Nada custa a Aquiles, mas tudo custa a Heitor



  Há uma respiração divina no toque de Messi.
  Gonçalo M. Tavares escreve que “o importante da respiração é o modo como ela não existe.” E que a cabeça deve respirar como a água: são os outros - o Peixe, por exemplo - que respiram pela água” (Livro da Dança). Messi tem esse modo divino de respirar quando joga, que consiste em deixar a bola respirar por ele.
  Cristiano respira sozinho. O fôlego está preso nos túneis do seu corpo e a bola surda é incapaz de ouvir sequer ecos dessa respiração. Messi é oco porque a bola é que faz o trabalho da respiração por si. Cristiano, pelo contrário, joga com uma bola vazia, porque traz tudo dentro de si mesmo - não quer, não pode perder nada. Messi, pelo contrário, nada tem a perder.
  As emoções não fazem parte do jogo de Cristiano, elas são esse jogo. Não remata senão com a fúria de derrubar, não corre senão com a ousadia louca de querer chegar onde não pode, não falha senão já com o desespero de um Job revoltado e não celebra senão com a arrogância de quem quer o mundo a olhar para si. Cristiano leva as emoções humanas ao extremo e todos os momentos do jogo são oportunidades para as estender um pouco mais além. Joga sempre assaltado pela manía, a loucura guerreira que, na Ilíada, cegava os heróis humanos como Heitor ou Diomedes.
  Messi, pelo contrário, não se emociona na nossa linguagem. A sua fúria, como a mênis de Aquiles, é uma paixão divina, de que os homens não podem falar e que ele só partilha com os deuses. As suas jogadas nada lembram das investidas de Agamémnon, dos golpes de Menelau ou dos ímpetos de Diomedes. Elas ecoam, isso sim, os caminhos com que Atena, Ares ou Apolo espalhavam a sua ira nos campos de Tróia. Se o olhar de Messi parece perdido ou deixado noutro lugar que não o campo, é porque o seu campo é outro. Ele não está perdido; mora no Olimpo. Nesse olhar que aos nossos olhos que não vêem parece não ver, espreita, por isso, "o primeiro estrangeiro da literatura universal" ("il primo straniero della letteratura universale"), como Pietro Citati chamou a Aquiles (La Mente Colorata).
  Porque as suas emoções nascem para lá das medidas humanas, Messi pode exibir o infinito numa jogada. Ele não é um combatente, como Cristiano, porque não joga com as correntes deste. A glória de Cristiano é a de um duelo impossível com os limites humanos. Por vezes vence algumas batalhas e toca o céu. São momentos em que quase podemos ouvir as moradas dos deuses estremecerem com a sua fúria humana. Mas para chegar a ser sobre-humano, Cristiano é sempre humano no princípio da luta. Porque traz tudo dentro de si e joga na vertigem de o perder, podemos dizer dele, como Rachel Bespaloff disse de Heitor, que "tem muito a perder, estando preenchido, mas sempre acima do que o preenche, pelo seu ardor de desafiar o destino" ("il a beaucoup à perdre étant comblé et toujours au-dessus de ce qui le comble par son ardeur à défier le destin" - De l'Iliade).
  Aparentemente, a dimensão do jogo de Messi é a do trágico hegeliano: move-se no campo como o actor do antigo teatro grego que, pela máscara, representava a Essência. Analisando o pensamento de Hegel sobre a tragédia, diz Alenka Zupančič: “When the actor puts on the mask, he is no longer himself; in the mask, he brings to life the (universal) essence he represents.” (The Odd One In: On Commedy) Também a camisola 10 parece ser a máscara com que o actor deixa de ser Lionel para representar Messi - porque só se pode representar Messi e o seu jogo, nunca sê-lo e jogá-lo verdadeiramente.
  Como explica Zupančič, no entanto, “the essence ultimately exists only as the universal moment, separated by the mask from the concrete and actual self, and as such this essence is still not actual”. Ora, se assim é, esta não é afinal a dimensão do jogo de Messi, mas sim a de Cristiano. É Cristiano que, por vezes representa a Essência numa jogada, é ele que de vez em quando vemos dar uns passos no trilho do infinito. E sabemos que é ele porque quando o vemos jogar ouvimos respirar o homem que veste a camisola 7 e ficamos a saber que ele está lá - tal como o espectador de uma tragédia grega antiga sabia que havia um homem por detrás da máscara. Ainda seguindo Zupančič, se na tragédia encontramos uma consciência individual a representar o papel do universal abstracto (a pôr a máscara de infinito por uns instantes), já na comédia a pessoa desse indivíduo coincide com a própria essência, não se limita a representá-la. Quando vemos jogar Messi, não sentimos que haja um homem ali disfarçado, porque sabemos que é a bola que respira e não encontramos olhar algum. As suas jogadas não são encenação de infinito, antes trazem o infinito em si porque já são esse infinito. Por isto podemos completar a sentença de há pouco dizendo que ninguém pode ser verdadeiramente Messi e jogar como ele, a não ser o próprio Lionel. E concluir que a dimensão do jogo de Messi é afinal a do cómico hegeliano, ficando para Cristiano a dimensão trágica.
  Rachel Bespaloff escreveu que "nada custa a Aquiles, mas tudo custa a Heitor" (“rien ne coûte à Achille, mais tout coûte à Hector”). É aqui que na tragédia de Cristiano aparece o seu heroísmo. O seu grito de fúria não é o grito de Aquiles, cuja ira não podemos compreender. A sua revolta é, pelo contrário, a que mais ressoa no nosso interior, porque é profundamente humana: dirige-se contra a finitude. E se a paixão divina de Messi está para além do nosso entendimento, o heroísmo de Cristiano só pode ser entendido no mundo dos Antigos. Porque, como explica Sloterdijk (Zorn und Zeit), aí o heroísmo assume uma importância vital: os actos heróicos testemunham a possibilidade de criar algo novo, algo que não surge logicamente dos ditames da Natureza (e dentro dos limites desta). Eles mostram que “sob o Sol surge algo mais do que o indiferente e o eternamente idêntico” (“unter der Sonne ereignet sich mehr als das Gleichgültige und Immergleich”). O jogo de Messi, por lhe faltar a transpiração humana, não assume esta dimensão. Por isso, tal como, "mesmo vencido, a coragem de Heitor não se esvanece diante do heroísmo de Aquiles" (“même vaincu, le courage d’Hector ne s’efface pas devant l’heroïsme d’Achille” - Bespaloff), também a ousadia de Cristiano não pode ser ocultada pelo talento de Messi.

  "Heitor tudo sofreu e tudo perdeu, excepto a si mesmo" (“Hector a tout souffert, et tout perdu sauf lui-même”- Bespaloff). Também Cristiano, na sua batalha por ganhar o mundo para o poder trazer na barriga, há-de acabar por tudo perder - para, no fim, se ganhar a si mesmo na história que está a escrever. Não sendo o jogador mais espectacular (Ronaldinho), o mais elegante (Zidane) ou o mais literariamente romântico (Garrincha), a dimensão trágica da sua história torna-o o mais heróico de todos.

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