E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A distância de si mesmo - O sacrifício de Narciso


Narciso alla Fonte (Caravaggio) 

  Narcissus disbelieves in the unknown;
  He cannot join his image in the lake
  So long as he assumes he is alone.

  W. H. Auden, "Are You There?"
  
  A poesia de Auden transmite com exactidão o narcisismo de Narciso. Narciso não pode juntar-se ao lago enquanto acreditar que está sozinho – o que significa que ele só mergulhará em busca do seu reflexo quando acreditar que assim persegue um outro.
  É fundamental o alerta, porém, de que ele não acredita no desconhecido: o desconhecido não o prende nem atrai. Ora, ao desconhecido pertence o verdadeiro outro. Porque quem nos é completamente outro – i. e., quem de nenhum modo se identifica connosco – permanece-nos fatalmente estranho, distante, inalcançável. A familiaridade com alguém só se consegue tornando esse alguém em nós mesmos (nem que seja um pouco). Ou o inverso: tornando-nos nós esse alguém. Trata-se, no fundo, de uma concretização da velha ideia de que só podemos conhecer o que a nós se compara, o que já vive dentro de nós. Nesta linha, conhecer é sempre reconhecer.

  A constatação de que o que vemos fora de nós se assemelha ao que está em nós elimina uma barreira entre interior e exterior. Precisamente a barreira que, segundo sugere Tolentino Mendonça, inaugura a diferença entre amizade e amor: "a relação de amizade é fecundada pela aceitação buscada dos limites. Talvez a grande diferença entre amor e amizade resida no facto do amor tender sempre para o ilimitado, suspeitando de contornos e fronteiras." Diferentemente do amor, "na amizade (...) aceitamos que exista uma vida sem nós e para lá de nós." Por contraposição ao amante, “o amigo é que faz parte da nossa vida afectiva sem deixar de ser o outro” (Nenhum Caminho Será Longo – Para uma Teologia da Amizade).
  É precisamente esta barreira que, aparentemente ausente no confronto entre Narciso e o seu reflexo, não o impede de se apaixonar por si mesmo. A magia da amizade é a da conversa a partir de dois lados de um muro: a sua arte é a de manter vivo o outro dentro do meu próximo. Por paradoxal que pareça, a morte da amizade começa quando quem me é próximo deixa de me ser secretamente distante. E é isso que o reflexo de Narciso nunca foi. Para Narciso, ele nunca foi o rosto do desconhecido. Por isso, pode atrair-se por ele. Entre ambos não existe um muro. Existe apenas a linha do espelho: aquela que me separa do outro que há em mim. Ao ver-se na água, Narciso não se descobre a si mesmo, mas ao outro que há em si. Por isso ele sabe que não está sozinho: há um outro por ali. E é o único outro que o pode atrair, porque é o único que não lhe é desconhecido: é o outro que ele traz dentro de si mesmo. É o seu outro.

  Narciso estende a mão e, turvando a água, deixa de ver por momentos o seu reflexo. O amor quer transpor todas as barreiras, mesmo aquelas que dão vida a quem se ama. É essa a sua verdadeira cegueira. Porque sempre que Narciso tenta abraçar o seu reflexo, unindo-se a quem ama, a fronteira entre eles desaparece e, com isso, o próprio amor fracassa, pois o outro que o atrai deixa de existir.
  Não é ainda aqui, porém, que Narciso se condena, mas sim no momento seguinte – aquele em que se afoga. No fim de contas, acreditou que, se não conseguia trazer para junto de si o seu reflexo, poderia ele fazer o caminho inverso: juntar-se à imagem. Em vez de transformar o outro nele mesmo, propôs-se transformar-se ele mesmo no outro. E não devemos menosprezar o altruísmo deste gesto: ao abdicar de viver para deixar o outro que ama viver por ele, Narciso, contra a teologia da amizade de Tolentino Mendonça, grita que o seu amor pode ser o gesto de sacrifício que funda a liberdade do (seu) outro.
  A morte de Narciso é o único fim que pode ter o seu sacrifício. Salvá-lo seria condená-lo. Porque depois de abandonar a posição em que adorava o seu reflexo, depois de passar a ocupar o lugar do seu outro, há uma certeza que o tortura mais que tudo: nunca mais poderá ver-se a si mesmo.

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