Há dezenas de milhões de anos, quando os vulcões das actuais Galápagos surgiram no meio do Pacífico, brotaram sem vida animal ou vegetal. Hoje, porém, as águas destas ilhas, como explica David Attenborough, albergam um dos mais diversos ecossistemas marinhos do mundo, secundado, em riqueza e diversidade, pela vida em terra.
A vida teve de fazer o seu caminho para chegar às Galápagos. Um caminho muito longo e improvável. Hoje encontram-se milhares de iguanas nas suas rochas, mas a primeira a lá chegar teve de percorrer perto de 1000.000 quilómetros pela água, provavelmente numa frágil jangada construída de ramos pelo engenho do arbítrio natural. As tartarugas gigantes que actualmente dão nome às ilhas não sabem nadar, mas conseguem deixar-se flutuar (o que revela nelas uma profunda sabedoria estóica). Há provavelmente 3 milhões de anos, um destes estóicos aventureiros flutuou desde as florestas sul-americanas durante semanas ou meses até chegar às Galápagos, onde deixou ovos. As aranhas foram dos primeiros animais a chegar – conhece-se hoje cerca de 150 espécies diferentes na sua vegetação. Têm um modo muito próprio de viajar: produzem um fio de seda a partir do abdómen, um fio composto de dois filamentos que se agarram entre si com a força com que um bebé humano pela primeira vez berra a vida para fora dos pulmões; a mais leve brisa leva esse fio de seda aonde for e a aranha, como as palavras, vai com o vento. Foi precisamente a flutuar, não pelas águas – como as estóicas tartarugas –, mas pelos céus – como os deuses (e os homens) – que as aranhas fizeram os seus 1000.000 quilómetros até chegarem às Galápagos. Outros animais, como as abelhas carpinteiras, não poderiam ter feito a viagem sem um abrigo especialmente confeccionado – e encontraram-no em pequenos e (in)significantes ramos. Hoje, como desde há tempos sem memória, estes animais polinizadores são fundamentais na vida das Galápagos, a tal ponto que a vegetação se lhes adequou. Nas palavras de Attenborough: "Nearly all the flowers on the Galapagos are now either white or yellow. Those are the colours preferred by the carpenter bees. So there's no point in being anything else."
A chegada e o caminho da vida nas Galápagos, feitos de vias improváveis e fantásticas, são uma perfeita ilustração da sentença de Ian Malcolm em Jurassic Park (Steven Spielberg): "Life finds a way." A delicadeza dos meios de que a vida se vale para chegar a todos os cantos – mesmo, ou sobretudo, os invisíveis – traz a ilusão da fragilidade: nada é tão inverosímil como a vida e nada é tão resistente. Feita de caminhos improváveis, ela resiste a todas as probabilidades.
É este olhar sobre o fenómeno natural que nos ajuda a ler a história de Unbreakable (M. Night Shyamalan). Elijah tem uma doença rara (osteogenese imperfeita), em virtude da qual os seus ossos são extremamente frágeis, o que lhe vale a alcunha de "Mr. Glass". Está convencido de que existe certamente alguém que é o seu inverso, alguém cujos ossos não quebram. Acaba por encontrá-lo em David Dunn, único sobrevivente (ileso) de um desastre de comboio. Exceptuando a sua fraqueza na água, David parece quase imortal: não esteve nunca doente, é extremamente resistente e forte, confirmando-se assim como o herói que Elijah procurava.
A força e resistência de David podem parecer a exibição mais evidente da pujança da vida e da sua inquebrantabilidade. Mas a facilidade com que quase se afoga mostra que nenhum ser vivo é imortal. Isso não disfarça a maravilha: a verdadeira vida é sempre frágil. Essa é a maior prova de que os deuses estão mortos.
É também esse laço – o da fragilidade – que une David e Elijah. À primeira vista, surge-nos apenas um momento de fraqueza que ambos partilham: a água pode matar qualquer um deles. É, todavia, a especial delicadeza de Elijah que faz dele o verdadeiro herói da história. O caminho de Elijah é o mais improvável: porque pode partir – e porque parte mesmo por vezes – ele tem tudo para ficar pelo caminho. Mas continua. Também David, por seu lado, só está verdadeiramente vivo quando está perto de morrer.
A dignidade do que é frágil não resulta da sua fraqueza, mas da sua força. Porque o frágil não depende de nada para poder sobreviver. Protege-se a si mesmo. E assim tem de ser. E isto – para usar uma expressão de Saramago – "É fatal como a morte. E a vida."
Great!
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