E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O verdadeiro mentiroso

  No conto "The Liar", de Henry James, Oliver Lyon é um pintor convidado a visitar a casa de campo de Sir David Ashmore para aí pintar o retrato deste. Durante o jantar na noite de chegada, reconhece entre os presentes uma mulher, Everina, que amou e pediu em casamento (sem sucesso) em tempos, e a quem pintou o retrato várias vezes. Descobre que ela é agora casada com o Coronel Capadose, por quem parece muito apaixonada. Em conversa com o Coronel, Lyon ouve histórias que não podem ser totalmente verdadeiras e adivinha nele exageros românticos, mas Sir David, mais tarde, garante-lhe que o Coronel é simplesmente um mentiroso compulsivo, embora inofensivo. Muito perturbado por descobrir Everina envolvida em procedimentos tão censuráveis, pergunta-se até que ponto o propósito de cobrir as mentiras do marido não a terão feito sua cúmplice. Para o descobrir, passa o máximo de tempo com o casal e propõe-se a pintar os retratos da filha deste, primeiro, e do Coronel, depois. Everina repete-lhe que o marido é uma pessoa nobre e Lyon decide retratar na sua pintura o carácter mentiroso de Capadose, de modo a forçar uma reacção de Everina que encare abertamente o facto. Uma das sessões é interrompida por uma modelo pobre, Geraldine, à procura de trabalho. O Coronel, porém, garante que aquela não é uma modelo e sim uma louca que o persegue há anos por ter uma vendetta pessoal contra ele. Entretanto as sessões são interrompidas, mas numa noite em que Lyon aparece inadvertidamente em casa, descobre que o casal está lá para ver o retrato. Espiando-os em segredo, vê Everina sair horrorizada com o retrato do marido e este destruir a pintura com várias facadas. Visita-os mais tarde e eles aparentam ficar surpreendidos com a notícia da destruição do quadro, embora admitam ter visitado a casa do pintor na sua ausência. O Coronel acusa então Geraldine, a modelo (presente nas redondezas da casa do pintor no mesmo dia), de ser a provável autora do crime. Lyon fica horrorizado ao ver o Coronel sacrificar assim uma pessoa inocente, por um lado, sem que Everina o desminta, por outro.

  Quem é o mentiroso neste conto?
  O primeiro candidato é, naturalmente, o Coronel Capadose. Conta histórias sem cessar – quase todas incríveis, algumas desmentidas pelos alegados envolvidos e uma cuja falsidade é pessoalmente testemunhada por Lyon. O título parece assim referir o Coronel, cuja personalidade se mostra tão fascinante para o pintor – a ponto de alguns críticos terem mesmo sugerido que é por Capadose que ele se sente verdadeiramente atraído, mais do que pela sua mulher.
  A candidatura do Coronel, todavia, não é a única. Também a sua mulher é uma hipótese forte. Se pensarmos que a preocupação principal de Lyon, de acordo com o próprio, é averiguar até que ponto e de que modo está ela implicada nas mentiras do marido, não seria ousado concluir que no fim de contas a mentirosa em questão é ela, com base na prova final de que ela teria aceitado o sacrifício da inocente Geraldine proposto pelo marido.
  A própria Geraldine parece ser também uma mentirosa. Com efeito, se o que o Coronel conta for verdade, então ela afinal não era uma modelo à procura de trabalho, ao contrário do que diz. Se, por outro lado, o Coronel estiver a mentir também aqui, continua difícil de explicar a alusão que Geraldine faz ao facto de Lyon já a "ter tido" (i. e., já a ter usado como modelo em tempos), visto que este garante que nunca a viu antes. Aparentemente, por uma via ou outra, Geraldine está a mentir.
  Não é imperativo concluir, todavia, que Geraldine mente. De facto, é possível que seja ela a única a dizer sempre a verdade. Basta aventar a leitura de que é ela a mulher por quem Lyon esteve em tempos apaixonado, não Everina. À primeira vista inverosímil, esta hipótese tem alguns pontos de apoio relevantes: Everina não parece reconhecer Lyon quando o vê no jantar pela primeira vez (mais tarde, alega que não o viu), nem lhe responde ao sorriso que ele lhe dirige (alega depois que não percebeu); as impressões que ele recebe nessa primeira noite destoam um bocado da imagem que ele guardava da sua amada (veja-se, por exemplo, o comentário: "She was looking at Colonel Capadose as if she were in love with him – a queer accident for the proudest, most reserved of women" e a própria surpresa ao descobri-la unida a alguém tão incompatível no seu modo de ser com aquela que ele conheceu); alguns dos comentários de Everina (nomeadamente, sobre o casamento) parecem vindos de alguém que não tem noção da história passada entre Lyon e a mulher em questão, etc.
  Nesta linha, quando Geraldine afirma que Lyon já a teve no passado, estaria a referir o quadro que o pintor pensa ter feito de Everina (quadro que, por sinal, o casal deveria possuir se aquela fosse a verdadeira amada de Lyon, mas não possui, apresentando versões inconsistentes das razões para o seu desaparecimento). E Everina seria afinal uma mulher a encarnar a personagem de Geraldine, adaptando-se às memórias de Lyon à medida que o vai conhecendo. Por outras palavras, o propósito de Everina parece ser o de corresponder à imagem que nela projecta o pintor. Como se ela quisesse ser a própria pintura, não o modelo.
  O interesse desta hipótese, de todo o modo, não reside tanto nela em si, mas sim no salto que permite dar para a descoberta de Lyon como o mais mentiroso dos personagens da história. Com efeito, independentemente de Everina ser a mulher que ele amou em tempos, parece seguro que ele projecta agora nela a imagem que guardou. Se Lyon pintou o quadro dessa mulher e a pintura desapareceu, é o próprio Lyon que seguramente ainda a possui: ele traz a pintura consigo e o que ele vê é apenas esse retrato da mulher que ele próprio fez e projecta agora em Everina. Resulta assim eivada de uma negra ironia a garantia que ele dá de conseguir pintar Everina mesmo às escuras, depois de ela dizer que não o deixaria penetrar-lhe a natureza (“Nothing would induce me to let you pry into me that way!’ ‘Oh, you,’ Lyon laughed – ‘I could do you in the dark!"): com efeito, não admira que ele não precise de a ver para a pintar, visto que é ele mesmo a criar o modelo que pinta. É à luz desse mesmo retrato projectado que ele pretende explicar e até julgar todas as acções desta mulher, é por referência a essa imagem que ele ganha esperanças e consegue desilusões em relação à sua conduta. É só porque ele a conheceu (ou pintou) honesta e íntegra que se admira agora por vê-la casada com um mentiroso. É só porque a imagina aversa aos hábitos do marido que supõe que ela fica em casa para não os ver quando ele sai para eventos sociais, e não apenas porque quer ficar com a filha (apesar de ela lhe dar esta razão), etc.
  A rejeição de Geraldine por Lyon é, afinal, a atitude simbólica de quem escorraça o modelo por preferir a máscara, o original por preferir a pintura. A sua diversão preferida é precisamente a de ver rosto atrás de rosto e o seu trabalho o de reproduzir a máscara humana: “...he had time to lose himself in his favourite diversion of watching face after face. This amusement gave him the greatest pleasure he knew, and he often thought it a mercy that the human mask did interest him and that it was not less vivid than it was (...), since he was to make his living by reproducing it.” Não admira assim que tanto o fascine a figura do Coronel e que ele queira tão ansiosamente fazer-lhe o retrato. Pois com a sua sucessão ininterrupta de mentiras e invenções, que é o Coronel, afinal, senão uma máscara, ou uma série de máscaras, sem conteúdo? Quando Everina vê a pintura do marido e se horroriza ao descobrir que está lá "tudo" (“It’s all there – it’s all there!’ Mrs Capadose went on. ‘Hang it, what’s all there?’ ‘Everything there oughtn’t to be – everything he has seen – it’s too dreadful!”), é verdadeiramente o "nada" que lá aparece que a horroriza. Ou seja, ao pintar a máscara do marido como tal, Lyon mostra também o vazio por detrás dela. O próprio Capadose, naturalmente, não compreende a perturbação da mulher: parece satisfeito com o retrato. Mas isso é porque o quadro funciona como um espelho para ele, onde ele consegue ver e admirar a sua máscara, mas não consegue (nem sequer pensa em) espreitar o que deveria esconder-se atrás dela. Por ser uma máscara, ele não sabe o que é disfarçar-se. Por só saber fingir, ele não sabe o que é esconder. Por só conseguir representar, ele não sabe o que é ser descoberto.
  Ainda assim, no fim de contas, é o pintor o verdadeiro mentiroso. Apaixonado por máscaras e apenas convencido por elas, é a máscara que ele próprio criou que o engana até ao fim. Com efeito, ele tenta forçar em Everina até ao final o acto de contrição, mas falha. Engendra a explicação de que o Coronel "a ensinou demasiado bem" (a ser também mentirosa): corrompendo-a, destruiu a mulher que ele conheceu em tempos. Com isto, ele falha em ver que Everina só deixa de corresponder ao retrato que ele próprio pintou dela e lhe quis impor. A única versão daquela mulher que ele se mostrou disposto a aceitar foi uma que ele próprio fabricou. Por se mostrar até ao fim inconsciente desta atitude, ele é o pior dos mentirosos: aquele que mente a si mesmo.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

A dança elegante


  Nas palavras de Jacques Drillon ("Zidane"), Zinedine Zidane trouxe a elegância a um mundo (o do futebol) que dela estava desprovido. Mostrou-se dançarino entre brutos, frugal entre pródigos, esteta entre vulgares ("Zidane a provoqué l'irruption d'une valeur nouvelle dans un monde qui en était déporvu: l'élegance. Au milieu des cogneurs et des brutes, il s'est imposé comme un danseur; au milieu des prodigues, comme un économe; au milieu des marqueurs, comme un passeur; au milieu des vulgaires, comme un esthète"). Humilde nobre entre rudes camponeses, Zidane passeou pelos campos deixando classe em cada movimento, delicadeza em cada gesto.
  Também o futebol tem os seus artistas de espectáculo. De jogadores assim esperamos sempre que façam alguma coisa: um truque, uma finta, uma acrobacia. De Zidane, ao invés, não se esperava nada em concreto, nenhum momento especial. Esperávamos tudo. Não aguardávamos alguma coisa, mas sim qualquer coisa: um simples passe, uma recepção ou condução. Não um remate acrobático, mas um remate; não um toque de calcanhar, mas um toque apenas; não uma condução de bola em grande velocidade ou em fintas, mas somente uma condução. Porque tudo era feito com elegância, e esta também mora na discrição. A magia de Zidane era a de nos ajudar a apreciar os momentos banais: como tudo era especial, mesmo sem conter nada de objectivamente significativo, tudo era extraordinário, mesmo quando vulgar; tudo era entusiasmante, independentemente de ser decisivo. Com a sua habilidade divina e a facilidade com que repete o impossível, Messi tem o condão de vulgarizar o extraordinário. Mas Zidane tinha o dom inverso: o de fazer extraordinário o que era vulgar.
  Alguns jogadores possuem uma graça nos movimentos que torna bonitas as suas jogadas. Num jogo de competição, todavia, a apreciação estética tende a estar condicionada pela utilidade do gesto. Daí que se costume aceitar como fatal a sentença de que a beleza tem de estar ao serviço da eficácia: em última análise, só merecerá ser apreciado o movimento bonito se este representar contributo efectivo para ganhar. Nesta linha, qualquer movimento gracioso sem consequências práticas caberia num espectáculo de circo, não num estádio. Mas Zidane conseguiu contestar a lógica daquela sentença sem prescindir da utilidade. Bastou inverter o mandamento: não a beleza ao serviço da eficácia, mas sim esta ao serviço da beleza.
  Tome-se como exemplo o golo marcado na final da Liga dos Campeões da época 2001-2002. Não se compreenderá o momento se se pensar que surge ali somente o único recurso técnico possível para colocar a bola na baliza. Porque o golo é consequência inevitável, mas quase colateral: o fundamental é o próprio gesto.
  No Livro da Dança de Gonçalo M. Tavares, encontramos o curioso verso "Hesitar entre a perfeição e o desastre". É precisamente essa hesitação que está ausente do dançarino. Não se pense, porém, que este escolhe sem vacilar. Passa-se antes que ele não chega sequer a escolher. É a própria alternativa que desaparece. A única opção para o dançarino é seguir a música. Lembremos a bailarina Rhodonia, que trazia os ouvidos ligados ao tornozelo (Paul Valéry, "L'âme et la danse"). Assim é com os dançarinos: os seus ouvidos estão nos pés, e por isso a cabeça não lhes pensa os passos. O caminho dos pés do dançarino é um segredo que guardam da cabeça. Esta bem poderia fechar os olhos enquanto se avança no percurso: não é ela que decide, não é ela que dirige. Os pés decidem por ela, e a música pelos pés. Do mesmo modo, há perfeição evidente naquele golo, mas Zidane não hesitou em escolher a perfeição sobre o desastre, porque na verdade não chegou a escolher: o gesto acontece sem que haja propriamente acto de vontade. Só a perfeição é verdadeiramente opção para o dançarino. Naquele momento, aquele era o único passo que a música pedia. Um verdadeiro dançarino não pensa a música que ouve. Entrega-se aos pés e deixa a música dançar por eles. O Sócrates de Valéry garantia que, com os olhos fechados, podia ver todos os movimentos de Rhodonia, bastando para isso ouvir a música que ela dançava. Se conhecêssemos a música que regeu aquela jogada, poderíamos limitar-nos a ouvi-la de olhos fechados para assistir ao golo. Mas somos espectadores, não bailarinos: não trazemos os ouvidos nos pés, e por isso precisamos de abrir os olhos para ver.
  É irónico, de resto, ouvir o comentário frequente de que Zidane parecia jogar em câmara lenta. Naturalmente que a simplicidade nos gestos, rodeada da azáfama esforçada dos restantes jogadores, pode explicar tal efeito. Nos instantes que antecipam o golo referido, Zidane tem muito tempo para pensar: a bola sobe muito e demora o seu tempo a descer. Para um jogador que já parecia fazer parar o tempo, ficou uma eternidade para pensar o que ia fazer. Tal facilidade, claro, é ilusória: gestos tão complexos são normalmente mais bem sucedidos quando executados por instinto, sem preparação. O dançarino Zidane, porém, sabe que não deve pensar nesse tempo. É suficientemente humilde para se ausentar e deixar a música comandar os pés. E fica aí talvez a maior prova da sua inteligência: saber identificar o momento para não pensar.

domingo, 20 de agosto de 2017

A porta intransponível

  No livro Der Prozeß, de Franz Kafka, Josef K. é objecto de um processo movido por uma autoridade remota e inacessível por um crime que não lhe é identificado. Não obstante as suas várias tentativas, K., cada vez mais emaranhado no processo, nunca chega verdadeiramente a entendê-lo, as suas razões ou os seus objectivos. Acaba morto por dois homens não identificados, mas eventualmente ligados ao processo também.

  Baseando-se numa sugestão de Davide Stimilli, Giorgio Agamben ("K.") defende que será útil ler o K. do nome do protagonista, não tanto como uma referência a Kafka, mas mais como uma referência a calúnia ou difamação, lembrando-se para isso a inscrição de um K na testa do kaluminator condenado nos antigos processos romanos.
  Na leitura de Agamben, Josef K. seria o caluniador de si mesmo: ele próprio dirige à sua pessoa uma acusação que sabe ser falsa. O tribunal, afinal, nem sequer desejaria nada de Josef K., ou de quem quer que seja: limita-se a receber quem chega e a dispensar quem parte. Funciona assim como um serviço de que Josef K. se serve quando se difama a si próprio.
  Ligando esta ideia a uma outra defendida alhures por Kafka – a de que o pecado original não surge tanto numa falta cometida pelo sujeito, mas sim na falsa acusação de uma falta supostamente cometida contra ele –, que pode ser adaptada à realidade judicial – onde o essencial também não seria a culpa do acusado, mas a própria acusação, que instala por si a causa, o objecto do processo –, a importância da calúnia pode ser percebida atentando em que ela põe em questão a acusação, ou seja, o momento fundamental do processo, bem como a culpa do difamado e o princípio de que não há pena sem culpa (na medida em que o próprio processo se traduz numa punição infligida a quem não praticou o facto) – a não ser que se veja a própria calúnia como o facto culposo punido. A calúnia de Josef K. traduziria assim a única estratégia possível para afirmar a própria inocência diante da lei. Estratégia fracassada, já que a condenação (pela calúnia) vem implicada na própria absolvição (pelo crime objecto da calúnia).
  Na parábola final ("Diante da Lei"), contada pelo sacerdote, as indicações contraditórias dadas pelo guardião das portas da Lei (dizendo, primeiro, que não podia deixar o homem entrar, e depois, no fim da vida deste, que aquela entrada esteve sempre pensada para ele) seriam lidas como: "não estás acusado; a acusação apenas a ti diz respeito: és o único a poder acusares-te a ti mesmo e a poder ser acusado". Segundo Agamben, todavia, há uma preciosa lição a retirar da parábola: concentrando a atenção mais no guardião do que propriamente na Lei, o homem sucedeu em passar a vida no exterior desta (já que nunca chegou a passar a porta), ao contrário de Josef K., completamente absorvido pelo seu processo e consumido por ele.

  A contraposição final entre Josef K. e o homem parado às portas da Lei não parece muito convincente. Os dois assemelham-se em demasia para tal contraponto: também Josef K. está às portas da Lei sem conseguir entrar: não consegue penetrar no processo, perceber-lhe a lógica, compreender-lhe o propósito. E, no entanto, esse processo está pensado apenas para si, já que é ele o visado. Embora impedido de entrar, nunca arreda pé: visita sucessivamente o advogado, aparece no tribunal mesmo sem ser convocado, a sua vida profissional deteriora-se devido à preocupação constante com a evolução do processo, etc. Ora, a imagem do homem às portas da Lei não é senão a representação disso mesmo: alguém que não consegue entrar na porta aberta para si, mas também não consegue afastar-se.
  A ideia de que Josef K. é o seu próprio caluniador instiga, todavia, uma reflexão interessante. O que o leva a acusar-se falsamente a si mesmo?
  O projecto de garantir a afirmação da sua inocência diante da acusação sai realmente gorado assim que a própria acusação se torna o crime. Mas talvez seja mais interessante desviar o foco: o objectivo pode não ser tanto o de assegurar a resposta, mas sim a própria pergunta. E este é um propósito muito mais radical – consentâneo, de resto, com a ideia de que é a própria acusação, não a culpa do arguido, o momento essencial do processo.
  A afirmação da inocência é uma resposta à acusação. Mas pensamos sempre em responder ao dedo apontado por outrem. É porventura esse o golpe extremo de Josef K.: ele não quer apenas desviar-se do dedo apontado, mas colocar-se atrás dele, fazê-lo seu. Ser ele próprio a decidir a direcção em que o dedo aponta.
  Que acusação é esta que queremos a todo o custo evitar, da qual queremos desesperadamente declarar-nos inocentes, apesar de nem sabermos de que crime se trata? Lembremos como o olhar do outro, segundo Sartre (L'être et le rien), faz nascer em nós uma nova dimensão do nosso ser: o ser-para-outrem. O modo como aparecemos ao olhar alheio tem uma substância própria que, apesar de referida a nós, não tem origem em nós e não pode ser por nós resgatada. É este objecto referido a nós – e que, por assim dizer, nos exibe nus diante do olhar de outrem – que fica ilustrado na imagem de um dedo apontado, de uma acusação da qual nos queremos defender, de uma projecção (de culpa) que queremos evitar. Queremos, em suma, afirmar-nos "inocentes" de sermos aquilo que nos apontam. Porque esse "aquilo" não foi posto no mundo por nós, mas sim pelo próprio dedo que, ao apontar, o fez nascer. E por isso o momento fundamental no processo é o da acusação e não o da sentença: independentemente da resposta, a imagem do acusado projectada na acusação tem uma substância própria inalienável. E por isso a resposta não pode ser outra senão a da culpa do arguido, isto é, a da confirmação da verdade da acusação: é por isso que, como indica a Josef K. o pintor Titorelli, nenhum arguido foi alguma vez absolvido.
  Se é Josef K. o caluniador de si mesmo, então ele quer resgatar da única maneira logicamente possível esse ser-para-outrem nascido com a acusação: tornar-se ele próprio o autor da acusação dirigida contra si. Todavia, tal como a tentativa mais modesta, também esta, mais ambiciosa, está condenada a fracassar. Como explica a Josef K. o sacerdote do tribunal, a declaração da própria inocência é o discurso habitual de um homem culpado. Ou seja, a afirmação (de inocência) do acusado não tem o sentido que ele lhe quer dar, mas sim o (de culpa) que lhe é dado pelo tribunal, precisamente o oposto. O que sugere uma verdade terrível para Josef K.: mesmo quando é ele a decidir os termos do discurso, nem aí ele pode determinar o seu significado. E assim o seu poder é vazio. Pode ser ele a fazer nascer a acusação, até pode ser ele a escolhê-la, mas ela nunca será verdadeiramente sua, porque nunca poderemos fazer nosso o olhar do outro. Por isso é tão impactante a parábola do homem diante da Lei. É ele mesmo que escolhe dirigir-se lá e a porta, como explica o guarda, está pensada apenas para ele. Mas essa porta, embora sua, nunca será a entrada para a sua casa.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

O segredo da tragédia

  Numa d'As 1001 noites, um pescador conta ao génio que encurralou num jarrão a história do rei Yunan, do seu vizir e do médico Duban.
  O médico Duban consegue curar da lepra o rei Yunan e o monarca recompensa-o com honras e riqueza. O vizir, invejoso, cria em Yunan a suspeita de más intenções do médico, convencendo-o de que tal como o curou com uma coisa que lhe deu a segurar, Duban pode muito bem no futuro vir a matá-lo com outra que lhe dê a cheirar. O rei, assustado, condena o médico à morte, ignorando os seus pedidos de clemência. Duban acaba por enganar o rei ingrato: entrega-lhe um livro supostamente maravilhoso. O rei percorre-o salivando o dedo com que folheia, mas nada encontra. Sem perceber, leva assim à boca o veneno mortal que Duban colocara nas páginas do livro.

  Os receios de Yunan confirmaram-se: tal como o curou com uma coisa que lhe deu para segurar, do mesmo modo conseguiu Duban trazer-lhe a morte entregado-lhe outro objecto nas mãos. Foi, todavia, a sua ingratidão que o perdeu. Teria provavelmente continuado a viver muito tempo e a beneficiar da sabedoria do médico se não tivesse dado ouvidos ao vizir. Que medo é esse que o levou a querer livrar-se de Duban?
  O rei não é simplesmente ingrato. De facto, a sua primeira reacção, uma vez curado, é a de recompensar o seu benfeitor. Só mais tarde, temendo o perigo mortal que nele encontra, inverte o seu modo de proceder. Por outro lado, o vizir não oferece propriamente uma razão que torne aquele perigo mais plausível. A evidência apoia-se na mera possibilidade: se o médico o curou com tanta facilidade, com igual presteza o poderá matar. E é a mera perspectiva desta eventualidade que basta para aterrorizar Yunan: mesmo sem nenhum sinal de que tal vai efectivamente materializar-se, ele está já suficientemente atemorizado para se querer livrar de Duban.
  Em certos pontos fulcrais, a história de Duban lembra a de Jesus. Também o Cristo, de acordo com o Novo Testamento, curou inexplicavelmente, e também ele era demasiado perturbador ou perigoso para ser deixado vivo, embora não houvesse ameaçado fazer mal a ninguém. Ora, é tentadora a sugestão de que a semelhança no segundo ponto pode ser explicada pela proximidade no primeiro. Ou seja, é bem possível que, por paradoxal que pareça, seja o milagre aquilo que torna tão terrível o milagreiro.
  Associamos a milagres um efeito positivo ou benéfico que, por definição, não pode ser compreendido. O milagre explica-se pela ausência de explicação: não deveria ter tido lugar, mas sucedeu. E porque não pode ser entendido, nada faz prever o milagre: ele é, por natureza, imprevisível e, por isso, indisciplinável. O que é tão assustador num milagre senão o facto de não poder ser explicado? O que perturba tanto senão a sua imprevisibilidade? O que é tão perigoso senão que ele não pode ser dominado?
  Podemos admirar a mestria com que o praticante domina uma arte, uma técnica ou uma ciência. Mas só o louvaremos enquanto pudermos perceber o seu senhorio. Para lá disso, temos alguém demasiado perturbador. Não entendemos o que faz e por isso não podemos prever o que vai fazer. Se o tememos mesmo quando tudo o que ele produz são bênçãos, deve-se isso a que as suas maravilhas nos lembram o que mais nos impressiona nas tragédias: o facto de não lhes encontrarmos motivo ou explicação.
  O milagroso é, nesta medida, o que mais próximo está do trágico. Isso mesmo é confirmado pela história do rei Yunan. Mas não podemos ignorar o modo como os acontecimentos se deram. Porque foi o próprio soberano a precipitar essa proximidade. O livro da morte era, com efeito, um que ele nunca poderia ler, porque seria sempre incapaz de compreender. Mas ele mesmo quis abrir esse livro. Por isso podemos, em suma, avançar que o milagre faz assustador o milagreiro porque parece anunciar a tragédia que ele poderá trazer. Essa tragédia, porém, tem um segredo ainda mais irónico: ela não falha em aparecer, mas apenas porque nós mesmos a chamámos.

sábado, 5 de agosto de 2017

O valor da distância

   No conto “The Pendulum”, de O. Henry, John Perkins chega a casa desanimado a pensar na sua rotina, em como todos os os dias é recebido do mesmo modo pela mulher, Katy, com uma sequência de gestos que pode adivinhar com exactidão. Nesse dia, contudo, Katy deixou-lhe uma nota dizendo-lhe que foi ter com a mãe doente e voltará passados uns dias. John fica desolado com a falta da mulher, nem quer sair para ir jogar pool com os amigos, como faz habitualmente, prometendo a si mesmo que a partir daí vai cuidar melhor dela. Quando Katy volta, informando que afinal a mãe nada tinha de grave, John, aparentemente esquecido das suas resoluções, volta à sua rotina e sai para ir jogar com os companheiros.

  A história parece oferecer uma moral imediata e simples: a de que só apreciamos uma coisa quando a perdemos. Se a temos perto de nós, tomamo-la por garantida só porque ela está ao nosso alcance. Longe de nós, torna-se valiosa porque só deslocando-nos poderemos agarrá-la.
  Uma leitura mais atenta sugere uma inversão curiosa desta mensagem, que permite descobrir aquele que é porventura o seu significado profundo: afinal, é preciso perdermos uma coisa para a valorarmos, sob pena de nos aborrecermos com ela. À primeira vista, isto parece apenas a consequência lógica da primeira leitura, mas na verdade é mesmo a sua inversão. Porque a primeira moral quer intimar-nos a dar valor ao que temos e a lutar para o manter. A segunda, pelo contrário, intima-nos a perder as coisas para podermos perceber o valor que têm. Dito de outro modo, a segunda moral avisa-nos de que se mantivermos ao nosso alcance as coisas que temos, nunca lhes daremos valor.
  Por estranho que pareça, é preciso perdermos as coisas para as encontrarmos. Aquilo que deixamos ao pé de nós para nós não existe. Está demasiado visível para o vermos e é só quando foge que o descobrimos, é só quando desaparece que nos aparece.
  Estamos cheios de histórias de como esta, das quais é habitual retirar a lição de que é longe das nossas coisas que percebemos o seu devido valor. Se não tomarmos atenção à lição escondida dentro desta verdade, porém, vamos cometer o erro comum de a interpretar ao contrário: julgaremos que é um erro deixar fugir aquilo que temos perto por falharmos em perceber o seu valor. Mas é precisamente deixando-o fugir que o podemos perceber. É só de longe que vemos o valor de algo, mas afinal é isso que torna a distância tão preciosa.