No conto "The Liar", de Henry James, Oliver Lyon é um pintor convidado a visitar a casa de campo de Sir David Ashmore para aí pintar o retrato deste. Durante o jantar na noite de chegada, reconhece entre os presentes uma mulher, Everina, que amou e pediu em casamento (sem sucesso) em tempos, e a quem pintou o retrato várias vezes. Descobre que ela é agora casada com o Coronel Capadose, por quem parece muito apaixonada. Em conversa com o Coronel, Lyon ouve histórias que não podem ser totalmente verdadeiras e adivinha nele exageros românticos, mas Sir David, mais tarde, garante-lhe que o Coronel é simplesmente um mentiroso compulsivo, embora inofensivo. Muito perturbado por descobrir Everina envolvida em procedimentos tão censuráveis, pergunta-se até que ponto o propósito de cobrir as mentiras do marido não a terão feito sua cúmplice. Para o descobrir, passa o máximo de tempo com o casal e propõe-se a pintar os retratos da filha deste, primeiro, e do Coronel, depois. Everina repete-lhe que o marido é uma pessoa nobre e Lyon decide retratar na sua pintura o carácter mentiroso de Capadose, de modo a forçar uma reacção de Everina que encare abertamente o facto. Uma das sessões é interrompida por uma modelo pobre, Geraldine, à procura de trabalho. O Coronel, porém, garante que aquela não é uma modelo e sim uma louca que o persegue há anos por ter uma vendetta pessoal contra ele. Entretanto as sessões são interrompidas, mas numa noite em que Lyon aparece inadvertidamente em casa, descobre que o casal está lá para ver o retrato. Espiando-os em segredo, vê Everina sair horrorizada com o retrato do marido e este destruir a pintura com várias facadas. Visita-os mais tarde e eles aparentam ficar surpreendidos com a notícia da destruição do quadro, embora admitam ter visitado a casa do pintor na sua ausência. O Coronel acusa então Geraldine, a modelo (presente nas redondezas da casa do pintor no mesmo dia), de ser a provável autora do crime. Lyon fica horrorizado ao ver o Coronel sacrificar assim uma pessoa inocente, por um lado, sem que Everina o desminta, por outro.
Quem é o mentiroso neste conto?
O primeiro candidato é, naturalmente, o Coronel Capadose. Conta histórias sem cessar – quase todas incríveis, algumas desmentidas pelos alegados envolvidos e uma cuja falsidade é pessoalmente testemunhada por Lyon. O título parece assim referir o Coronel, cuja personalidade se mostra tão fascinante para o pintor – a ponto de alguns críticos terem mesmo sugerido que é por Capadose que ele se sente verdadeiramente atraído, mais do que pela sua mulher.
A candidatura do Coronel, todavia, não é a única. Também a sua mulher é uma hipótese forte. Se pensarmos que a preocupação principal de Lyon, de acordo com o próprio, é averiguar até que ponto e de que modo está ela implicada nas mentiras do marido, não seria ousado concluir que no fim de contas a mentirosa em questão é ela, com base na prova final de que ela teria aceitado o sacrifício da inocente Geraldine proposto pelo marido.
A própria Geraldine parece ser também uma mentirosa. Com efeito, se o que o Coronel conta for verdade, então ela afinal não era uma modelo à procura de trabalho, ao contrário do que diz. Se, por outro lado, o Coronel estiver a mentir também aqui, continua difícil de explicar a alusão que Geraldine faz ao facto de Lyon já a "ter tido" (i. e., já a ter usado como modelo em tempos), visto que este garante que nunca a viu antes. Aparentemente, por uma via ou outra, Geraldine está a mentir.
Não é imperativo concluir, todavia, que Geraldine mente. De facto, é possível que seja ela a única a dizer sempre a verdade. Basta aventar a leitura de que é ela a mulher por quem Lyon esteve em tempos apaixonado, não Everina. À primeira vista inverosímil, esta hipótese tem alguns pontos de apoio relevantes: Everina não parece reconhecer Lyon quando o vê no jantar pela primeira vez (mais tarde, alega que não o viu), nem lhe responde ao sorriso que ele lhe dirige (alega depois que não percebeu); as impressões que ele recebe nessa primeira noite destoam um bocado da imagem que ele guardava da sua amada (veja-se, por exemplo, o comentário: "She was looking at Colonel Capadose as if she were in love with him – a queer accident for the proudest, most reserved of women" e a própria surpresa ao descobri-la unida a alguém tão incompatível no seu modo de ser com aquela que ele conheceu); alguns dos comentários de Everina (nomeadamente, sobre o casamento) parecem vindos de alguém que não tem noção da história passada entre Lyon e a mulher em questão, etc.
Nesta linha, quando Geraldine afirma que Lyon já a teve no passado, estaria a referir o quadro que o pintor pensa ter feito de Everina (quadro que, por sinal, o casal deveria possuir se aquela fosse a verdadeira amada de Lyon, mas não possui, apresentando versões inconsistentes das razões para o seu desaparecimento). E Everina seria afinal uma mulher a encarnar a personagem de Geraldine, adaptando-se às memórias de Lyon à medida que o vai conhecendo. Por outras palavras, o propósito de Everina parece ser o de corresponder à imagem que nela projecta o pintor. Como se ela quisesse ser a própria pintura, não o modelo.
O interesse desta hipótese, de todo o modo, não reside tanto nela em si, mas sim no salto que permite dar para a descoberta de Lyon como o mais mentiroso dos personagens da história. Com efeito, independentemente de Everina ser a mulher que ele amou em tempos, parece seguro que ele projecta agora nela a imagem que guardou. Se Lyon pintou o quadro dessa mulher e a pintura desapareceu, é o próprio Lyon que seguramente ainda a possui: ele traz a pintura consigo e o que ele vê é apenas esse retrato da mulher que ele próprio fez e projecta agora em Everina. Resulta assim eivada de uma negra ironia a garantia que ele dá de conseguir pintar Everina mesmo às escuras, depois de ela dizer que não o deixaria penetrar-lhe a natureza (“Nothing would induce me to let you pry into me that way!’ ‘Oh, you,’ Lyon laughed – ‘I could do you in the dark!"): com efeito, não admira que ele não precise de a ver para a pintar, visto que é ele mesmo a criar o modelo que pinta. É à luz desse mesmo retrato projectado que ele pretende explicar e até julgar todas as acções desta mulher, é por referência a essa imagem que ele ganha esperanças e consegue desilusões em relação à sua conduta. É só porque ele a conheceu (ou pintou) honesta e íntegra que se admira agora por vê-la casada com um mentiroso. É só porque a imagina aversa aos hábitos do marido que supõe que ela fica em casa para não os ver quando ele sai para eventos sociais, e não apenas porque quer ficar com a filha (apesar de ela lhe dar esta razão), etc.
A rejeição de Geraldine por Lyon é, afinal, a atitude simbólica de quem escorraça o modelo por preferir a máscara, o original por preferir a pintura. A sua diversão preferida é precisamente a de ver rosto atrás de rosto e o seu trabalho o de reproduzir a máscara humana: “...he had time to lose himself in his favourite diversion of watching face after face. This amusement gave him the greatest pleasure he knew, and he often thought it a mercy that the human mask did interest him and that it was not less vivid than it was (...), since he was to make his living by reproducing it.” Não admira assim que tanto o fascine a figura do Coronel e que ele queira tão ansiosamente fazer-lhe o retrato. Pois com a sua sucessão ininterrupta de mentiras e invenções, que é o Coronel, afinal, senão uma máscara, ou uma série de máscaras, sem conteúdo? Quando Everina vê a pintura do marido e se horroriza ao descobrir que está lá "tudo" (“It’s all there – it’s all there!’ Mrs Capadose went on. ‘Hang it, what’s all there?’ ‘Everything there oughtn’t to be – everything he has seen – it’s too dreadful!”), é verdadeiramente o "nada" que lá aparece que a horroriza. Ou seja, ao pintar a máscara do marido como tal, Lyon mostra também o vazio por detrás dela. O próprio Capadose, naturalmente, não compreende a perturbação da mulher: parece satisfeito com o retrato. Mas isso é porque o quadro funciona como um espelho para ele, onde ele consegue ver e admirar a sua máscara, mas não consegue (nem sequer pensa em) espreitar o que deveria esconder-se atrás dela. Por ser uma máscara, ele não sabe o que é disfarçar-se. Por só saber fingir, ele não sabe o que é esconder. Por só conseguir representar, ele não sabe o que é ser descoberto.
Ainda assim, no fim de contas, é o pintor o verdadeiro mentiroso. Apaixonado por máscaras e apenas convencido por elas, é a máscara que ele próprio criou que o engana até ao fim. Com efeito, ele tenta forçar em Everina até ao final o acto de contrição, mas falha. Engendra a explicação de que o Coronel "a ensinou demasiado bem" (a ser também mentirosa): corrompendo-a, destruiu a mulher que ele conheceu em tempos. Com isto, ele falha em ver que Everina só deixa de corresponder ao retrato que ele próprio pintou dela e lhe quis impor. A única versão daquela mulher que ele se mostrou disposto a aceitar foi uma que ele próprio fabricou. Por se mostrar até ao fim inconsciente desta atitude, ele é o pior dos mentirosos: aquele que mente a si mesmo.
Quem é o mentiroso neste conto?
O primeiro candidato é, naturalmente, o Coronel Capadose. Conta histórias sem cessar – quase todas incríveis, algumas desmentidas pelos alegados envolvidos e uma cuja falsidade é pessoalmente testemunhada por Lyon. O título parece assim referir o Coronel, cuja personalidade se mostra tão fascinante para o pintor – a ponto de alguns críticos terem mesmo sugerido que é por Capadose que ele se sente verdadeiramente atraído, mais do que pela sua mulher.
A candidatura do Coronel, todavia, não é a única. Também a sua mulher é uma hipótese forte. Se pensarmos que a preocupação principal de Lyon, de acordo com o próprio, é averiguar até que ponto e de que modo está ela implicada nas mentiras do marido, não seria ousado concluir que no fim de contas a mentirosa em questão é ela, com base na prova final de que ela teria aceitado o sacrifício da inocente Geraldine proposto pelo marido.
A própria Geraldine parece ser também uma mentirosa. Com efeito, se o que o Coronel conta for verdade, então ela afinal não era uma modelo à procura de trabalho, ao contrário do que diz. Se, por outro lado, o Coronel estiver a mentir também aqui, continua difícil de explicar a alusão que Geraldine faz ao facto de Lyon já a "ter tido" (i. e., já a ter usado como modelo em tempos), visto que este garante que nunca a viu antes. Aparentemente, por uma via ou outra, Geraldine está a mentir.
Não é imperativo concluir, todavia, que Geraldine mente. De facto, é possível que seja ela a única a dizer sempre a verdade. Basta aventar a leitura de que é ela a mulher por quem Lyon esteve em tempos apaixonado, não Everina. À primeira vista inverosímil, esta hipótese tem alguns pontos de apoio relevantes: Everina não parece reconhecer Lyon quando o vê no jantar pela primeira vez (mais tarde, alega que não o viu), nem lhe responde ao sorriso que ele lhe dirige (alega depois que não percebeu); as impressões que ele recebe nessa primeira noite destoam um bocado da imagem que ele guardava da sua amada (veja-se, por exemplo, o comentário: "She was looking at Colonel Capadose as if she were in love with him – a queer accident for the proudest, most reserved of women" e a própria surpresa ao descobri-la unida a alguém tão incompatível no seu modo de ser com aquela que ele conheceu); alguns dos comentários de Everina (nomeadamente, sobre o casamento) parecem vindos de alguém que não tem noção da história passada entre Lyon e a mulher em questão, etc.
Nesta linha, quando Geraldine afirma que Lyon já a teve no passado, estaria a referir o quadro que o pintor pensa ter feito de Everina (quadro que, por sinal, o casal deveria possuir se aquela fosse a verdadeira amada de Lyon, mas não possui, apresentando versões inconsistentes das razões para o seu desaparecimento). E Everina seria afinal uma mulher a encarnar a personagem de Geraldine, adaptando-se às memórias de Lyon à medida que o vai conhecendo. Por outras palavras, o propósito de Everina parece ser o de corresponder à imagem que nela projecta o pintor. Como se ela quisesse ser a própria pintura, não o modelo.
O interesse desta hipótese, de todo o modo, não reside tanto nela em si, mas sim no salto que permite dar para a descoberta de Lyon como o mais mentiroso dos personagens da história. Com efeito, independentemente de Everina ser a mulher que ele amou em tempos, parece seguro que ele projecta agora nela a imagem que guardou. Se Lyon pintou o quadro dessa mulher e a pintura desapareceu, é o próprio Lyon que seguramente ainda a possui: ele traz a pintura consigo e o que ele vê é apenas esse retrato da mulher que ele próprio fez e projecta agora em Everina. Resulta assim eivada de uma negra ironia a garantia que ele dá de conseguir pintar Everina mesmo às escuras, depois de ela dizer que não o deixaria penetrar-lhe a natureza (“Nothing would induce me to let you pry into me that way!’ ‘Oh, you,’ Lyon laughed – ‘I could do you in the dark!"): com efeito, não admira que ele não precise de a ver para a pintar, visto que é ele mesmo a criar o modelo que pinta. É à luz desse mesmo retrato projectado que ele pretende explicar e até julgar todas as acções desta mulher, é por referência a essa imagem que ele ganha esperanças e consegue desilusões em relação à sua conduta. É só porque ele a conheceu (ou pintou) honesta e íntegra que se admira agora por vê-la casada com um mentiroso. É só porque a imagina aversa aos hábitos do marido que supõe que ela fica em casa para não os ver quando ele sai para eventos sociais, e não apenas porque quer ficar com a filha (apesar de ela lhe dar esta razão), etc.
A rejeição de Geraldine por Lyon é, afinal, a atitude simbólica de quem escorraça o modelo por preferir a máscara, o original por preferir a pintura. A sua diversão preferida é precisamente a de ver rosto atrás de rosto e o seu trabalho o de reproduzir a máscara humana: “...he had time to lose himself in his favourite diversion of watching face after face. This amusement gave him the greatest pleasure he knew, and he often thought it a mercy that the human mask did interest him and that it was not less vivid than it was (...), since he was to make his living by reproducing it.” Não admira assim que tanto o fascine a figura do Coronel e que ele queira tão ansiosamente fazer-lhe o retrato. Pois com a sua sucessão ininterrupta de mentiras e invenções, que é o Coronel, afinal, senão uma máscara, ou uma série de máscaras, sem conteúdo? Quando Everina vê a pintura do marido e se horroriza ao descobrir que está lá "tudo" (“It’s all there – it’s all there!’ Mrs Capadose went on. ‘Hang it, what’s all there?’ ‘Everything there oughtn’t to be – everything he has seen – it’s too dreadful!”), é verdadeiramente o "nada" que lá aparece que a horroriza. Ou seja, ao pintar a máscara do marido como tal, Lyon mostra também o vazio por detrás dela. O próprio Capadose, naturalmente, não compreende a perturbação da mulher: parece satisfeito com o retrato. Mas isso é porque o quadro funciona como um espelho para ele, onde ele consegue ver e admirar a sua máscara, mas não consegue (nem sequer pensa em) espreitar o que deveria esconder-se atrás dela. Por ser uma máscara, ele não sabe o que é disfarçar-se. Por só saber fingir, ele não sabe o que é esconder. Por só conseguir representar, ele não sabe o que é ser descoberto.
Ainda assim, no fim de contas, é o pintor o verdadeiro mentiroso. Apaixonado por máscaras e apenas convencido por elas, é a máscara que ele próprio criou que o engana até ao fim. Com efeito, ele tenta forçar em Everina até ao final o acto de contrição, mas falha. Engendra a explicação de que o Coronel "a ensinou demasiado bem" (a ser também mentirosa): corrompendo-a, destruiu a mulher que ele conheceu em tempos. Com isto, ele falha em ver que Everina só deixa de corresponder ao retrato que ele próprio pintou dela e lhe quis impor. A única versão daquela mulher que ele se mostrou disposto a aceitar foi uma que ele próprio fabricou. Por se mostrar até ao fim inconsciente desta atitude, ele é o pior dos mentirosos: aquele que mente a si mesmo.