E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

O segredo da tragédia

  Numa d'As 1001 noites, um pescador conta ao génio que encurralou num jarrão a história do rei Yunan, do seu vizir e do médico Duban.
  O médico Duban consegue curar da lepra o rei Yunan e o monarca recompensa-o com honras e riqueza. O vizir, invejoso, cria em Yunan a suspeita de más intenções do médico, convencendo-o de que tal como o curou com uma coisa que lhe deu a segurar, Duban pode muito bem no futuro vir a matá-lo com outra que lhe dê a cheirar. O rei, assustado, condena o médico à morte, ignorando os seus pedidos de clemência. Duban acaba por enganar o rei ingrato: entrega-lhe um livro supostamente maravilhoso. O rei percorre-o salivando o dedo com que folheia, mas nada encontra. Sem perceber, leva assim à boca o veneno mortal que Duban colocara nas páginas do livro.

  Os receios de Yunan confirmaram-se: tal como o curou com uma coisa que lhe deu para segurar, do mesmo modo conseguiu Duban trazer-lhe a morte entregado-lhe outro objecto nas mãos. Foi, todavia, a sua ingratidão que o perdeu. Teria provavelmente continuado a viver muito tempo e a beneficiar da sabedoria do médico se não tivesse dado ouvidos ao vizir. Que medo é esse que o levou a querer livrar-se de Duban?
  O rei não é simplesmente ingrato. De facto, a sua primeira reacção, uma vez curado, é a de recompensar o seu benfeitor. Só mais tarde, temendo o perigo mortal que nele encontra, inverte o seu modo de proceder. Por outro lado, o vizir não oferece propriamente uma razão que torne aquele perigo mais plausível. A evidência apoia-se na mera possibilidade: se o médico o curou com tanta facilidade, com igual presteza o poderá matar. E é a mera perspectiva desta eventualidade que basta para aterrorizar Yunan: mesmo sem nenhum sinal de que tal vai efectivamente materializar-se, ele está já suficientemente atemorizado para se querer livrar de Duban.
  Em certos pontos fulcrais, a história de Duban lembra a de Jesus. Também o Cristo, de acordo com o Novo Testamento, curou inexplicavelmente, e também ele era demasiado perturbador ou perigoso para ser deixado vivo, embora não houvesse ameaçado fazer mal a ninguém. Ora, é tentadora a sugestão de que a semelhança no segundo ponto pode ser explicada pela proximidade no primeiro. Ou seja, é bem possível que, por paradoxal que pareça, seja o milagre aquilo que torna tão terrível o milagreiro.
  Associamos a milagres um efeito positivo ou benéfico que, por definição, não pode ser compreendido. O milagre explica-se pela ausência de explicação: não deveria ter tido lugar, mas sucedeu. E porque não pode ser entendido, nada faz prever o milagre: ele é, por natureza, imprevisível e, por isso, indisciplinável. O que é tão assustador num milagre senão o facto de não poder ser explicado? O que perturba tanto senão a sua imprevisibilidade? O que é tão perigoso senão que ele não pode ser dominado?
  Podemos admirar a mestria com que o praticante domina uma arte, uma técnica ou uma ciência. Mas só o louvaremos enquanto pudermos perceber o seu senhorio. Para lá disso, temos alguém demasiado perturbador. Não entendemos o que faz e por isso não podemos prever o que vai fazer. Se o tememos mesmo quando tudo o que ele produz são bênçãos, deve-se isso a que as suas maravilhas nos lembram o que mais nos impressiona nas tragédias: o facto de não lhes encontrarmos motivo ou explicação.
  O milagroso é, nesta medida, o que mais próximo está do trágico. Isso mesmo é confirmado pela história do rei Yunan. Mas não podemos ignorar o modo como os acontecimentos se deram. Porque foi o próprio soberano a precipitar essa proximidade. O livro da morte era, com efeito, um que ele nunca poderia ler, porque seria sempre incapaz de compreender. Mas ele mesmo quis abrir esse livro. Por isso podemos, em suma, avançar que o milagre faz assustador o milagreiro porque parece anunciar a tragédia que ele poderá trazer. Essa tragédia, porém, tem um segredo ainda mais irónico: ela não falha em aparecer, mas apenas porque nós mesmos a chamámos.

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