E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

A dança elegante


  Nas palavras de Jacques Drillon ("Zidane"), Zinedine Zidane trouxe a elegância a um mundo (o do futebol) que dela estava desprovido. Mostrou-se dançarino entre brutos, frugal entre pródigos, esteta entre vulgares ("Zidane a provoqué l'irruption d'une valeur nouvelle dans un monde qui en était déporvu: l'élegance. Au milieu des cogneurs et des brutes, il s'est imposé comme un danseur; au milieu des prodigues, comme un économe; au milieu des marqueurs, comme un passeur; au milieu des vulgaires, comme un esthète"). Humilde nobre entre rudes camponeses, Zidane passeou pelos campos deixando classe em cada movimento, delicadeza em cada gesto.
  Também o futebol tem os seus artistas de espectáculo. De jogadores assim esperamos sempre que façam alguma coisa: um truque, uma finta, uma acrobacia. De Zidane, ao invés, não se esperava nada em concreto, nenhum momento especial. Esperávamos tudo. Não aguardávamos alguma coisa, mas sim qualquer coisa: um simples passe, uma recepção ou condução. Não um remate acrobático, mas um remate; não um toque de calcanhar, mas um toque apenas; não uma condução de bola em grande velocidade ou em fintas, mas somente uma condução. Porque tudo era feito com elegância, e esta também mora na discrição. A magia de Zidane era a de nos ajudar a apreciar os momentos banais: como tudo era especial, mesmo sem conter nada de objectivamente significativo, tudo era extraordinário, mesmo quando vulgar; tudo era entusiasmante, independentemente de ser decisivo. Com a sua habilidade divina e a facilidade com que repete o impossível, Messi tem o condão de vulgarizar o extraordinário. Mas Zidane tinha o dom inverso: o de fazer extraordinário o que era vulgar.
  Alguns jogadores possuem uma graça nos movimentos que torna bonitas as suas jogadas. Num jogo de competição, todavia, a apreciação estética tende a estar condicionada pela utilidade do gesto. Daí que se costume aceitar como fatal a sentença de que a beleza tem de estar ao serviço da eficácia: em última análise, só merecerá ser apreciado o movimento bonito se este representar contributo efectivo para ganhar. Nesta linha, qualquer movimento gracioso sem consequências práticas caberia num espectáculo de circo, não num estádio. Mas Zidane conseguiu contestar a lógica daquela sentença sem prescindir da utilidade. Bastou inverter o mandamento: não a beleza ao serviço da eficácia, mas sim esta ao serviço da beleza.
  Tome-se como exemplo o golo marcado na final da Liga dos Campeões da época 2001-2002. Não se compreenderá o momento se se pensar que surge ali somente o único recurso técnico possível para colocar a bola na baliza. Porque o golo é consequência inevitável, mas quase colateral: o fundamental é o próprio gesto.
  No Livro da Dança de Gonçalo M. Tavares, encontramos o curioso verso "Hesitar entre a perfeição e o desastre". É precisamente essa hesitação que está ausente do dançarino. Não se pense, porém, que este escolhe sem vacilar. Passa-se antes que ele não chega sequer a escolher. É a própria alternativa que desaparece. A única opção para o dançarino é seguir a música. Lembremos a bailarina Rhodonia, que trazia os ouvidos ligados ao tornozelo (Paul Valéry, "L'âme et la danse"). Assim é com os dançarinos: os seus ouvidos estão nos pés, e por isso a cabeça não lhes pensa os passos. O caminho dos pés do dançarino é um segredo que guardam da cabeça. Esta bem poderia fechar os olhos enquanto se avança no percurso: não é ela que decide, não é ela que dirige. Os pés decidem por ela, e a música pelos pés. Do mesmo modo, há perfeição evidente naquele golo, mas Zidane não hesitou em escolher a perfeição sobre o desastre, porque na verdade não chegou a escolher: o gesto acontece sem que haja propriamente acto de vontade. Só a perfeição é verdadeiramente opção para o dançarino. Naquele momento, aquele era o único passo que a música pedia. Um verdadeiro dançarino não pensa a música que ouve. Entrega-se aos pés e deixa a música dançar por eles. O Sócrates de Valéry garantia que, com os olhos fechados, podia ver todos os movimentos de Rhodonia, bastando para isso ouvir a música que ela dançava. Se conhecêssemos a música que regeu aquela jogada, poderíamos limitar-nos a ouvi-la de olhos fechados para assistir ao golo. Mas somos espectadores, não bailarinos: não trazemos os ouvidos nos pés, e por isso precisamos de abrir os olhos para ver.
  É irónico, de resto, ouvir o comentário frequente de que Zidane parecia jogar em câmara lenta. Naturalmente que a simplicidade nos gestos, rodeada da azáfama esforçada dos restantes jogadores, pode explicar tal efeito. Nos instantes que antecipam o golo referido, Zidane tem muito tempo para pensar: a bola sobe muito e demora o seu tempo a descer. Para um jogador que já parecia fazer parar o tempo, ficou uma eternidade para pensar o que ia fazer. Tal facilidade, claro, é ilusória: gestos tão complexos são normalmente mais bem sucedidos quando executados por instinto, sem preparação. O dançarino Zidane, porém, sabe que não deve pensar nesse tempo. É suficientemente humilde para se ausentar e deixar a música comandar os pés. E fica aí talvez a maior prova da sua inteligência: saber identificar o momento para não pensar.

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