No livro Der Prozeß, de Franz Kafka, Josef K. é objecto de um processo movido por uma autoridade remota e inacessível por um crime que não lhe é identificado. Não obstante as suas várias tentativas, K., cada vez mais emaranhado no processo, nunca chega verdadeiramente a entendê-lo, as suas razões ou os seus objectivos. Acaba morto por dois homens não identificados, mas eventualmente ligados ao processo também.
Baseando-se numa sugestão de Davide Stimilli, Giorgio Agamben ("K.") defende que será útil ler o K. do nome do protagonista, não tanto como uma referência a Kafka, mas mais como uma referência a calúnia ou difamação, lembrando-se para isso a inscrição de um K na testa do kaluminator condenado nos antigos processos romanos.
Na leitura de Agamben, Josef K. seria o caluniador de si mesmo: ele próprio dirige à sua pessoa uma acusação que sabe ser falsa. O tribunal, afinal, nem sequer desejaria nada de Josef K., ou de quem quer que seja: limita-se a receber quem chega e a dispensar quem parte. Funciona assim como um serviço de que Josef K. se serve quando se difama a si próprio.
Ligando esta ideia a uma outra defendida alhures por Kafka – a de que o pecado original não surge tanto numa falta cometida pelo sujeito, mas sim na falsa acusação de uma falta supostamente cometida contra ele –, que pode ser adaptada à realidade judicial – onde o essencial também não seria a culpa do acusado, mas a própria acusação, que instala por si a causa, o objecto do processo –, a importância da calúnia pode ser percebida atentando em que ela põe em questão a acusação, ou seja, o momento fundamental do processo, bem como a culpa do difamado e o princípio de que não há pena sem culpa (na medida em que o próprio processo se traduz numa punição infligida a quem não praticou o facto) – a não ser que se veja a própria calúnia como o facto culposo punido. A calúnia de Josef K. traduziria assim a única estratégia possível para afirmar a própria inocência diante da lei. Estratégia fracassada, já que a condenação (pela calúnia) vem implicada na própria absolvição (pelo crime objecto da calúnia).
Na parábola final ("Diante da Lei"), contada pelo sacerdote, as indicações contraditórias dadas pelo guardião das portas da Lei (dizendo, primeiro, que não podia deixar o homem entrar, e depois, no fim da vida deste, que aquela entrada esteve sempre pensada para ele) seriam lidas como: "não estás acusado; a acusação apenas a ti diz respeito: és o único a poder acusares-te a ti mesmo e a poder ser acusado". Segundo Agamben, todavia, há uma preciosa lição a retirar da parábola: concentrando a atenção mais no guardião do que propriamente na Lei, o homem sucedeu em passar a vida no exterior desta (já que nunca chegou a passar a porta), ao contrário de Josef K., completamente absorvido pelo seu processo e consumido por ele.
A contraposição final entre Josef K. e o homem parado às portas da Lei não parece muito convincente. Os dois assemelham-se em demasia para tal contraponto: também Josef K. está às portas da Lei sem conseguir entrar: não consegue penetrar no processo, perceber-lhe a lógica, compreender-lhe o propósito. E, no entanto, esse processo está pensado apenas para si, já que é ele o visado. Embora impedido de entrar, nunca arreda pé: visita sucessivamente o advogado, aparece no tribunal mesmo sem ser convocado, a sua vida profissional deteriora-se devido à preocupação constante com a evolução do processo, etc. Ora, a imagem do homem às portas da Lei não é senão a representação disso mesmo: alguém que não consegue entrar na porta aberta para si, mas também não consegue afastar-se.
A ideia de que Josef K. é o seu próprio caluniador instiga, todavia, uma reflexão interessante. O que o leva a acusar-se falsamente a si mesmo?
O projecto de garantir a afirmação da sua inocência diante da acusação sai realmente gorado assim que a própria acusação se torna o crime. Mas talvez seja mais interessante desviar o foco: o objectivo pode não ser tanto o de assegurar a resposta, mas sim a própria pergunta. E este é um propósito muito mais radical – consentâneo, de resto, com a ideia de que é a própria acusação, não a culpa do arguido, o momento essencial do processo.
A afirmação da inocência é uma resposta à acusação. Mas pensamos sempre em responder ao dedo apontado por outrem. É porventura esse o golpe extremo de Josef K.: ele não quer apenas desviar-se do dedo apontado, mas colocar-se atrás dele, fazê-lo seu. Ser ele próprio a decidir a direcção em que o dedo aponta.
Que acusação é esta que queremos a todo o custo evitar, da qual queremos desesperadamente declarar-nos inocentes, apesar de nem sabermos de que crime se trata? Lembremos como o olhar do outro, segundo Sartre (L'être et le rien), faz nascer em nós uma nova dimensão do nosso ser: o ser-para-outrem. O modo como aparecemos ao olhar alheio tem uma substância própria que, apesar de referida a nós, não tem origem em nós e não pode ser por nós resgatada. É este objecto referido a nós – e que, por assim dizer, nos exibe nus diante do olhar de outrem – que fica ilustrado na imagem de um dedo apontado, de uma acusação da qual nos queremos defender, de uma projecção (de culpa) que queremos evitar. Queremos, em suma, afirmar-nos "inocentes" de sermos aquilo que nos apontam. Porque esse "aquilo" não foi posto no mundo por nós, mas sim pelo próprio dedo que, ao apontar, o fez nascer. E por isso o momento fundamental no processo é o da acusação e não o da sentença: independentemente da resposta, a imagem do acusado projectada na acusação tem uma substância própria inalienável. E por isso a resposta não pode ser outra senão a da culpa do arguido, isto é, a da confirmação da verdade da acusação: é por isso que, como indica a Josef K. o pintor Titorelli, nenhum arguido foi alguma vez absolvido.
Se é Josef K. o caluniador de si mesmo, então ele quer resgatar da única maneira logicamente possível esse ser-para-outrem nascido com a acusação: tornar-se ele próprio o autor da acusação dirigida contra si. Todavia, tal como a tentativa mais modesta, também esta, mais ambiciosa, está condenada a fracassar. Como explica a Josef K. o sacerdote do tribunal, a declaração da própria inocência é o discurso habitual de um homem culpado. Ou seja, a afirmação (de inocência) do acusado não tem o sentido que ele lhe quer dar, mas sim o (de culpa) que lhe é dado pelo tribunal, precisamente o oposto. O que sugere uma verdade terrível para Josef K.: mesmo quando é ele a decidir os termos do discurso, nem aí ele pode determinar o seu significado. E assim o seu poder é vazio. Pode ser ele a fazer nascer a acusação, até pode ser ele a escolhê-la, mas ela nunca será verdadeiramente sua, porque nunca poderemos fazer nosso o olhar do outro. Por isso é tão impactante a parábola do homem diante da Lei. É ele mesmo que escolhe dirigir-se lá e a porta, como explica o guarda, está pensada apenas para ele. Mas essa porta, embora sua, nunca será a entrada para a sua casa.
Se é Josef K. o caluniador de si mesmo, então ele quer resgatar da única maneira logicamente possível esse ser-para-outrem nascido com a acusação: tornar-se ele próprio o autor da acusação dirigida contra si. Todavia, tal como a tentativa mais modesta, também esta, mais ambiciosa, está condenada a fracassar. Como explica a Josef K. o sacerdote do tribunal, a declaração da própria inocência é o discurso habitual de um homem culpado. Ou seja, a afirmação (de inocência) do acusado não tem o sentido que ele lhe quer dar, mas sim o (de culpa) que lhe é dado pelo tribunal, precisamente o oposto. O que sugere uma verdade terrível para Josef K.: mesmo quando é ele a decidir os termos do discurso, nem aí ele pode determinar o seu significado. E assim o seu poder é vazio. Pode ser ele a fazer nascer a acusação, até pode ser ele a escolhê-la, mas ela nunca será verdadeiramente sua, porque nunca poderemos fazer nosso o olhar do outro. Por isso é tão impactante a parábola do homem diante da Lei. É ele mesmo que escolhe dirigir-se lá e a porta, como explica o guarda, está pensada apenas para ele. Mas essa porta, embora sua, nunca será a entrada para a sua casa.
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