E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sábado, 5 de agosto de 2017

O valor da distância

   No conto “The Pendulum”, de O. Henry, John Perkins chega a casa desanimado a pensar na sua rotina, em como todos os os dias é recebido do mesmo modo pela mulher, Katy, com uma sequência de gestos que pode adivinhar com exactidão. Nesse dia, contudo, Katy deixou-lhe uma nota dizendo-lhe que foi ter com a mãe doente e voltará passados uns dias. John fica desolado com a falta da mulher, nem quer sair para ir jogar pool com os amigos, como faz habitualmente, prometendo a si mesmo que a partir daí vai cuidar melhor dela. Quando Katy volta, informando que afinal a mãe nada tinha de grave, John, aparentemente esquecido das suas resoluções, volta à sua rotina e sai para ir jogar com os companheiros.

  A história parece oferecer uma moral imediata e simples: a de que só apreciamos uma coisa quando a perdemos. Se a temos perto de nós, tomamo-la por garantida só porque ela está ao nosso alcance. Longe de nós, torna-se valiosa porque só deslocando-nos poderemos agarrá-la.
  Uma leitura mais atenta sugere uma inversão curiosa desta mensagem, que permite descobrir aquele que é porventura o seu significado profundo: afinal, é preciso perdermos uma coisa para a valorarmos, sob pena de nos aborrecermos com ela. À primeira vista, isto parece apenas a consequência lógica da primeira leitura, mas na verdade é mesmo a sua inversão. Porque a primeira moral quer intimar-nos a dar valor ao que temos e a lutar para o manter. A segunda, pelo contrário, intima-nos a perder as coisas para podermos perceber o valor que têm. Dito de outro modo, a segunda moral avisa-nos de que se mantivermos ao nosso alcance as coisas que temos, nunca lhes daremos valor.
  Por estranho que pareça, é preciso perdermos as coisas para as encontrarmos. Aquilo que deixamos ao pé de nós para nós não existe. Está demasiado visível para o vermos e é só quando foge que o descobrimos, é só quando desaparece que nos aparece.
  Estamos cheios de histórias de como esta, das quais é habitual retirar a lição de que é longe das nossas coisas que percebemos o seu devido valor. Se não tomarmos atenção à lição escondida dentro desta verdade, porém, vamos cometer o erro comum de a interpretar ao contrário: julgaremos que é um erro deixar fugir aquilo que temos perto por falharmos em perceber o seu valor. Mas é precisamente deixando-o fugir que o podemos perceber. É só de longe que vemos o valor de algo, mas afinal é isso que torna a distância tão preciosa.

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