E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O espelho de outrem

    O acto de olhar o espelho coloca-nos perante o nosso outro: estamos ali como um outro perante nós mesmos. A atitude mais comum de nos identificarmos com o reflexo faz-nos esquecer a estranheza da imagem. É por isso que devemos recuperar a história da Branca-de-Neve: quando a Rainha se vê ao espelho e este lhe devolve a imagem da Branca-de-Neve, temos de concluir que esta é o reflexo da Rainha. Do mesmo modo que a nossa identificação com o reflexo não nos deve fazer esquecer que ele continua a ser um outro que queremos incorporar em nós mesmos, também, ao invés, a atitude da Rainha não pode apagar o facto de que o outro que ela rejeita é, afinal, um reflexo de si mesma.
  É exactamente essa a lição do Padre Brown no conto "The Man in the Passage" (G. K. Chesterton). Tanto Wilson Seymour como o Capitão Cutler, testemunhas num julgamento por homicídio, garantem ter visto uma estranha figura no local do crime. As descrições dos seus contornos, porém, divergem por completo. Também o Padre Brown viu a figura e também a descrição que ele dá da mesma é bastante diferente das outras, parecendo resultar dos testemunhos que esta criatura combina traços femininos, brutais e diabólicos. O Padre Brown acaba por esclarecer o mistério explicando que não havia nenhuma outra pessoa por ali: a figura misteriosa era afinal o reflexo das testemunhas num espelho. O que temos aqui é precisamente uma instância daquela atitude de rejeição do nosso reflexo: Seymour e Cutler levam a cabo essa rejeição na sua versão mais radical: eles não chegam sequer a perceber que estão perante uma imagem sua, encaram-na sempre como a de um outro, não se reconhecendo. O seu outro é-lhes, portanto, totalmente alheio. O que o Padre Brown, no fundo, nos vem lembrar, é que por muito estranha que nos pareça a imagem no espelho, ela continua a ser um reflexo de nós mesmos. O espelho devolve-nos a nossa imagem invertida e, nesse sentido, ela pode parecer-nos o oposto do que somos. Mas essa inversão supõe sempre a ligação simbiótica invisível a tudo o que somos.


  No episódio "Dead Man's Eyes" (Jerry Levine), da reedição de 2002 da série The Twilight Zone, Lauren Janus é uma viúva que descobre que quando coloca os óculos do seu falecido marido consegue ver o que ele via. Colocar os óculos é, portanto, pôr os próprios olhos do marido no lugar dos seus. Janus aproveita esta nova capacidade para tentar perceber quem o matou. Quando, finalmente, consegue ver o que ele viu no momento em que o assassino o atacou por trás, é a si mesma que vê no espelho a atacá-lo. Conclui assim que ela mesma é a assassina.
  Também a atitude de Janus é de rejeição, mas o seu caminho é particularmente interessante. O primeiro momento em que ela percebe que consegue ver com os olhos do falecido é, precisamente, aquele em que se vê ao espelho e encontra aí a imagem do marido. Aquela não é a sua imagem - i. e., não é a imagem de Lauren Janus - e, nesse sentido, ela percebe-a como a de um outro que não ela. Mas ao mesmo tempo aquela é a sua imagem - a imagem do marido, no lugar do qual ela agora se põe. Assim, se ela descobre no espelho o outro que pertencia ao seu marido, isso tem de significar que neste momento esse outro pertence-lhe a ela. Tal parece sugerir a conclusão surpreendente de que é mais fácil aceitarmos como nosso o outro que pertence a outrem do que o outro que nos pertence. Mas isto é essencial na aprendizagem de Janus: é precisamente aprendendo a acolher a alteridade que lhe é completamente alheia que ela conseguirá, no final, incorporar a alteridade que lhe é íntima (a do seu próprio reflexo). Ou, por outras palavras, é na identificação com o outro-que-não-sou-eu que eu aprendo a aceitar o outro-que-eu-sou.
  Para Janus perceber isso, é essencial colocar-se nos olhos do marido. Com efeito, se a experiência de descobrir o reflexo do marido no espelho a alerta para a evidência de a imagem que o espelho me devolve ser a de um outro, torna-se imperativo mudar de ponto de vista para perceber que esse outro é, não obstante, igual a mim. Porque o espelho coloca-me diante do meu reflexo e, assim, esse reflexo está noutro lugar, difernte daquele em que eu me situo. Um terceiro, porém, tem a posição privilegiada de perceber a simetria entre as duas imagens. Janus não pôde perceber, portanto, que ela mesma matara o marido, pois a imagem desse assassinato era a de um acto cometido por um outro (i. e., por uma outra). Com os olhos do marido, porém, pôde reconhcer-se a si mesma: aquela no espelho, afinal, é ela própria.
  O final do episódio lembra a penúltima cena de Psycho (Alfred Hitchcock), em que a mãe de Norman, já completamente personificada no corpo deste, tem um discurso pelo qual se inocenta dos crimes praticados pelo filho. Em ambos os casos, note-se, o sujeito aceitou finalmente que o "outro" é, afinal, ele mesmo. Isso é mais nítido no caso de Janus, em que ela se limita a repetir que foi ela que matou o marido. No caso de Psyhco, porém, isto não é contrariado. Pelo contrário, aí apenas se sugere que há um último passo que pode ter ficado por dar: depois de o sujeito aceitar que é o outro, falta o outro (a mãe) aceitar que é o sujeito.


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