No filme Toy Story 3 (Lee Unkrich), Woody e os outros brinquedos encaram a iminência da separação de Andy, o seu dono, que já não é uma criança. Os brinquedos não podem acompanhar Andy no seu crescimento e assim o desencontro é inevitável. Eles não envelhecem – o que são, são-no para sempre. A infância de Andy é o único momento que a sua efemeridade pode partilhar com a eternidade dos brinquedos.
A tragédia dos brinquedos é a do abandono. Andy parte e tem de os deixar. É a tragédia de ficarem. Ficam para sempre. Ficarão mesmo quando Andy já lá não estiver, quando tiver desaparecido por completo. São eles, de facto, quem mais sente a efemeridade de Andy: a ausência do rapaz só está presente porque eles a sentem. O vazio de Andy só existe nos seus brinquedos. Qualquer encontro é breve, face à perspectiva da eternidade. E é quase como se este breve encontro entre eles servisse apenas para criar o vazio que vai durar para sempre. Por isso, em Toy Story, por paradoxal que pareça, é um breve momento que dá luz à eternidade. O que existe para sempre nasce do ventre do efémero.
A perspectiva trágica dos brinquedos é o reverso da do livro Peter and Wendy (J. M. Barrie). Também Peter Pan permanece. O único encontro possível com ele dá-se na infância de Wendy e seus irmãos, porque Peter não cresce, não envelhece. A viagem à Terra do Nunca não é senão o provar um pouco de eternidade. Mas esse gosto têm-no todas as crianças em cada brincadeira. Um brinquedo é isso mesmo: a oportunidade de sermos eternos por um instante.
É também por isso que os brinquedos, em Toy Story, não se mexem nem falam quando Andy está por perto. Porque o gosto da eternidade dá-se através do vislumbre e não do toque ou da mistura. A única eternidade possível para Andy ou as outras pessoas seria a da morte enquanto nada, não-ser. E não é essa a morte que virá para Andy. Ela chegará antes como o fim da vida, como o limite para a sua história. Também na peça de teatro Peter Pan, or The Boy Who Wouldn't Grow Up, segundo indicações de Barrie, Peter nunca podia ser tocado por nenhum personagem. De tal modo que a fada que o acompanhava tinha de impedir Wendy de o beijar. Todo o beijo é um furto e neste caso ele é impossível para Wendy: podemos experimentar a eternidade, mas não podemos fazê-la nossa.
Em Peter and Wendy, a perspectiva é a de Wendy. A tragédia aqui é a de quem tem de partir e observa quem fica. A de quem vê quem vem a seguir (Jane, depois Margaret, etc.) ocupar o lugar que foi seu. Peter vai acabar por esquecer Wendy, como esqueceu Mary (mãe de Wendy) e como vai esquecer Jane e Margaret. Ele tem de esquecer para continuar criança (segundo nos é dito em Peter and Wendy). Assim, a tragédia de Wendy é a de saber que vai desaparecer. E vai desaparecer, não apenas de si mesma, mas também dos outros: quem fica (Peter) não a recordará.
No livro The Man who mistook his Wife for a Hat – And Other Clinical
Tales, Oliver Sacks dá-nos a conhecer o caso do “marinheiro perdido” (lost mariner) Jimmie G.,
que, detido mentalmente na data de 1945, não conseguia guardar memória a partir daí,
esquecendo tudo (o que lhe ia acontecendo a partir daquela data) no espaço de minutos. A vida deste homem dissolvia-se assim num limbo: ele não tinha, por assim dizer, um lugar no tempo, andava continuamente à deriva. Tendo já decorrido décadas sobre o momento em que a sua memória estagnou, o homem julgava ser muitos anos mais novo do que era de facto. Por isso, o momento em que o médico o põe diante de um espelho é de um choque profundo para ele. O marinheiro descobre então que envelheceu. Que o tempo passou para si. Ora, também Peter Pan tem um momento de terror, de certo modo, simétrico: aquele em que Wendy acende a luz e ele descobre que ela envelheceu (“For almost the only time in his life that I know of, Peter was afraid”). Assim, se o marinheiro fica horrorizado ao descobrir que ele próprio não é Peter Pan, o horror de Peter é o de descobrir que os outros também não o são. Mas porque há uma outra criança (Jane) que surge sempre a seguir, Peter, como o marinheiro, pode esquecer e começar tudo de novo. É assim, eternamente, para ele. E para os brinquedos em Toy Story: também eles poderão começar de novo com Bonnie, a criança que vem a seguir. E virá porventura outra um dia. Ao contrário de Peter, porém, o que é neles mais eterno é o vazio de quem partiu: eles estão condenados a recordar.
Fernando Savater diz que, por nascermos, já vencemos a morte. Já negámos o nada. Mas a verdade é que se morrermos e nada existir depois disso, o breve instante em que vivemos passa por esmagado pela eternidade da escuridão. Por isso, é como se cada criança que vem a seguir tivesse a missão de lembrar que já vencemos a eternidade do nada há muito tempo. Vencemo-la para sempre. E se a essa chama ligamos a vida é porque, afinal, a eternidade só vive quando o efémero a visita. Peter não tem aventuras sem Wendys, fadas ou meninos perdidos. E um brinquedo morre no fim de cada brincadeira.
Muito belo. Parabéns!
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ResponderEliminarFantástico! Adorei seu excerto.
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