E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O espelho de outrem

    O acto de olhar o espelho coloca-nos perante o nosso outro: estamos ali como um outro perante nós mesmos. A atitude mais comum de nos identificarmos com o reflexo faz-nos esquecer a estranheza da imagem. É por isso que devemos recuperar a história da Branca-de-Neve: quando a Rainha se vê ao espelho e este lhe devolve a imagem da Branca-de-Neve, temos de concluir que esta é o reflexo da Rainha. Do mesmo modo que a nossa identificação com o reflexo não nos deve fazer esquecer que ele continua a ser um outro que queremos incorporar em nós mesmos, também, ao invés, a atitude da Rainha não pode apagar o facto de que o outro que ela rejeita é, afinal, um reflexo de si mesma.
  É exactamente essa a lição do Padre Brown no conto "The Man in the Passage" (G. K. Chesterton). Tanto Wilson Seymour como o Capitão Cutler, testemunhas num julgamento por homicídio, garantem ter visto uma estranha figura no local do crime. As descrições dos seus contornos, porém, divergem por completo. Também o Padre Brown viu a figura e também a descrição que ele dá da mesma é bastante diferente das outras, parecendo resultar dos testemunhos que esta criatura combina traços femininos, brutais e diabólicos. O Padre Brown acaba por esclarecer o mistério explicando que não havia nenhuma outra pessoa por ali: a figura misteriosa era afinal o reflexo das testemunhas num espelho. O que temos aqui é precisamente uma instância daquela atitude de rejeição do nosso reflexo: Seymour e Cutler levam a cabo essa rejeição na sua versão mais radical: eles não chegam sequer a perceber que estão perante uma imagem sua, encaram-na sempre como a de um outro, não se reconhecendo. O seu outro é-lhes, portanto, totalmente alheio. O que o Padre Brown, no fundo, nos vem lembrar, é que por muito estranha que nos pareça a imagem no espelho, ela continua a ser um reflexo de nós mesmos. O espelho devolve-nos a nossa imagem invertida e, nesse sentido, ela pode parecer-nos o oposto do que somos. Mas essa inversão supõe sempre a ligação simbiótica invisível a tudo o que somos.


  No episódio "Dead Man's Eyes" (Jerry Levine), da reedição de 2002 da série The Twilight Zone, Lauren Janus é uma viúva que descobre que quando coloca os óculos do seu falecido marido consegue ver o que ele via. Colocar os óculos é, portanto, pôr os próprios olhos do marido no lugar dos seus. Janus aproveita esta nova capacidade para tentar perceber quem o matou. Quando, finalmente, consegue ver o que ele viu no momento em que o assassino o atacou por trás, é a si mesma que vê no espelho a atacá-lo. Conclui assim que ela mesma é a assassina.
  Também a atitude de Janus é de rejeição, mas o seu caminho é particularmente interessante. O primeiro momento em que ela percebe que consegue ver com os olhos do falecido é, precisamente, aquele em que se vê ao espelho e encontra aí a imagem do marido. Aquela não é a sua imagem - i. e., não é a imagem de Lauren Janus - e, nesse sentido, ela percebe-a como a de um outro que não ela. Mas ao mesmo tempo aquela é a sua imagem - a imagem do marido, no lugar do qual ela agora se põe. Assim, se ela descobre no espelho o outro que pertencia ao seu marido, isso tem de significar que neste momento esse outro pertence-lhe a ela. Tal parece sugerir a conclusão surpreendente de que é mais fácil aceitarmos como nosso o outro que pertence a outrem do que o outro que nos pertence. Mas isto é essencial na aprendizagem de Janus: é precisamente aprendendo a acolher a alteridade que lhe é completamente alheia que ela conseguirá, no final, incorporar a alteridade que lhe é íntima (a do seu próprio reflexo). Ou, por outras palavras, é na identificação com o outro-que-não-sou-eu que eu aprendo a aceitar o outro-que-eu-sou.
  Para Janus perceber isso, é essencial colocar-se nos olhos do marido. Com efeito, se a experiência de descobrir o reflexo do marido no espelho a alerta para a evidência de a imagem que o espelho me devolve ser a de um outro, torna-se imperativo mudar de ponto de vista para perceber que esse outro é, não obstante, igual a mim. Porque o espelho coloca-me diante do meu reflexo e, assim, esse reflexo está noutro lugar, difernte daquele em que eu me situo. Um terceiro, porém, tem a posição privilegiada de perceber a simetria entre as duas imagens. Janus não pôde perceber, portanto, que ela mesma matara o marido, pois a imagem desse assassinato era a de um acto cometido por um outro (i. e., por uma outra). Com os olhos do marido, porém, pôde reconhcer-se a si mesma: aquela no espelho, afinal, é ela própria.
  O final do episódio lembra a penúltima cena de Psycho (Alfred Hitchcock), em que a mãe de Norman, já completamente personificada no corpo deste, tem um discurso pelo qual se inocenta dos crimes praticados pelo filho. Em ambos os casos, note-se, o sujeito aceitou finalmente que o "outro" é, afinal, ele mesmo. Isso é mais nítido no caso de Janus, em que ela se limita a repetir que foi ela que matou o marido. No caso de Psyhco, porém, isto não é contrariado. Pelo contrário, aí apenas se sugere que há um último passo que pode ter ficado por dar: depois de o sujeito aceitar que é o outro, falta o outro (a mãe) aceitar que é o sujeito.


segunda-feira, 21 de setembro de 2015

The danger of (not) buying a new tie - "The Case of Mr. Pelham" (Alfred Hitchcock)


  No episódio "The case of Mr. Pelham", da série Alfred Hitchcock Presents, Albert Pelham é um contabilista preocupado com a existência de um possível duplo que parece estar a querer tomar-lhe o lugar. Esse outro apodera-se dos seus hábitos e das suas rotinas e como que começa a levar a cabo o seu quotidiano por si. Em conversa com o seu psiquiatra, Pelham acaba por ter a ideia de fazer mudanças. Muda a assinatura, compra uma nova gravata. O outro não desaparece, porém, e, finalmente, Pelham e ele encontram-se frente a frente, perante o olhar espantado do seu mordomo. Quando este é instado por ambos a apontar qual deles é o verdadeiro, o duplo chama a atenção para a gravata que Pelham traz: uma gravata que o verdadeiro Albert Pelham nunca compraria. O mordomo dá-lhe razão e o "nosso" Albert Pelham perde, ao que tudo indica, a batalha.

  Embora pareça haver simplesmente dois Pelhams, uma leitura mais cuidada poderá levar-nos a concluir que o duplo não é verdadeiramente um "outro". Albert Pelham é, como o psiquiatra o descreve (e o próprio confirma), uma criatura de rotinas, de hábitos regulares, etc. Através do seu quotidiano uniforme, Albert Pelham criou um personagem: o personagem de si mesmo. Este personagem é a encarnação do seu ser-em-si (v. Sartre, L'Être et le Néant). Com efeito, este outro Albert Pelham é o que é e não pode ser outra coisa - não tem outras roupas, não tem outros hábitos, porque só aqueles cabem ao seu papel.
  Pela criação deste personagem, Pelham asfixiou-se como ser-para-si e, assim, afogou a sua liberdade. Identificou-se de tal modo com as suas rotinas que negou o nada que o separava de si mesmo, apagando-se como consciência capaz de se transcender a si próprio. Ele deixa assim de poder dizer que, como qualquer ser-para-si, é o que não é e não é o que é.
  Quando Pelham começa a notar que alguém – que não ele – leva a cabo as suas rotinas no seu lugar, isto não é mais do que o despertar do seu para-si adormecido, o retorno da capacidade de transcendência que ele fizera desaparecer. Basta lembrar que a consciência de si mesmo é, afinal, uma instância da transcendência que nós somos: o simples facto de eu me poder ter a mim mesmo como objecto (da minha consciência) separa-me de mim próprio, pois eu sou a consciência de mim. Assim, o que acontece com Pelham não é mais do que a tradução física e geográfica dessa experiência: ele separa-se literalmente de si mesmo ao retomar a sua consciência, i. e., ao voltar a ser um ser-para-si. Essa separação é inevitável, pois nada pode ser em-si e para-si em simultâneo. Foi Pelham, portanto, que se condenou ao criar o seu personagem. A morte da liberdade de Pelham pelos hábitos traz assim uma confirmação existencialista da sentença kantiana (contra Aristóteles): os hábitos impossibilitam a liberdade.
  É tarde demais para Pelham. Já não tem corpo, já não tem facticidade para poder concretizar a sua liberdade. Toda a facticidade que lhe poderia caber é agora do "outro", i. e., do seu em-si. Por isso, o gesto de liberdade (a mudança de gravata) está condenado ao fracasso. Se Hitchcock não fosse tudo menos moralista, esta história poderia ser um alerta para os perigos da má-fé: se insistirmos na identificação connosco mesmos e no desejo de nos tornarmos um em-si, corremos o risco de morrermos como liberdade. Não basta sermos livres: é preciso não esquecermos que o somos.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

A criança que despiu o imperador


  Quando lemos o conhecido conto "As novas roupas do imperador", de Hans Christian Andersen, somos tentados a enaltecer a figura da criança que grita o que todos viam sem admitir: que o imperador estava nu. Ela assume o papel de dizer a verdade ao poder e à autoridade, desafiando a hipocrisia social, o fingimento descarado e a ostentação vazia.
  Coloquemos, porém, esta figura a par de uma outra, igualmente inocente (pelo menos aparentemente) e desbocada: a narradora do conto "Who dealt?" de Ring Lardner. Dois casais amigos – a narradora e Tom de um lado, Arthur e Helen do outro – juntam-se para uma noite de bridge. A narradora está casada há pouco tempo com Tom e não sabe que no passado ele e Helen estiveram noivos. Helen acabou, porém, por casar com Arthur (que ignorava aquele noivado), porque este, para além de ser rico, atlético, etc., conseguiu licenciar-se e arranjar uma posição estável na vida mais cedo do que Tom – que, por ser pobre, demorou muito mais. Esta é, pelo menos, a versão dos acontecimentos que recebemos a partir do relato que a narradora faz de uns escritos de Tom que ela encontrou e leu sem este saber. A narradora dá agora a conhecer tudo isso com a intenção ingénua de divertir os outros, sem perceber o significado do que está a dizer e o impacto destrutivo que assim provoca (não interessa aqui a possível interpretação da história segundo a qual a narradora está perfeitamente consciente do que está a fazer, querendo apenas vingar-se de Tom por este lhe ter escondido o romance e castigar Helen pelo afecto que Tom lhe dedicou).
  Ao contrário da criança de Andersen, merecedora da adoração da maioria dos seus leitores, a narradora de "Who dealt?" foi tratada pela crítica como "estúpida", "insensível", "faladora descontrolada" e até a sua inabilidade no bridge foi motivo de censura. O diferente tratamento dado a estas duas figuras parece assim justificado intuitivamente. Mas será essa diferença realmente de aceitar?
  O relato da narradora parece efectivamente não trazer nada de positivo; provoca até, no imediato, que Tom (um alcóolico em recuperação) recomece a beber. A longo prazo, há um estilhaçar óbvio nas relações entre os amigos, que não poderão voltar a ser as mesmas. A amizade entre os companheiros de jogo da narradora pôde sobreviver forte valendo-se do silêncio sobre aquele evento dilacerante. Uma vez revelada a verdade, todavia, deixa de ser possível agir como se nunca nada se tivesse passado - do mesmo modo que a partir do momento em que uma criança gritou que o imperador não tinha roupas a nudez deste ficou exposta, a tal ponto que já ninguém pode continuar a agir como se todos o vissem vestido. De certa maneira, podemos dizer que foi a criança quem, na verdade, despiu o imperador.
  Resta saber, porém, se estamos realmente prontos para aceitar as consequências da atitude da criança – ou será que a história de Lardner pode servir-nos de alerta para sermos prudentes com a ânsia de deixar as verdades emergirem? O tecido social das várias relações entre os membros de uma comunidade depende muito do silêncio sobre verdades que podem ser conhecidas, mas nunca pronunciadas. Este silêncio é tão cuidadosamente construído que essas verdades, em rigor, não chegam nunca a existir (enquanto ninguém lhes apontar o dedo). Se o enunciar de algo-que-não-devemos-dizer tem um mero efeito destruidor, então talvez devamos, com Slavoj Žižek (For They Know Not What They Do – Enjoyment as a political factor), concluir que é altura de abandonar o elogio da criança e aceitá-la como o protótipo do falador descontrolado que pode provocar a desintegração da própria sociedade.


  Por isso o tacto, mais até do que a educação, não se resume a hábitos estéreis, nem é um mero sintoma de civilização, mas o próprio sustento desta. E nada indica tão bem que é verdadeiramente de tacto que se trata naqueles silêncios como a pequena carta que Fabienne Tabard envia a Antoine Doinel em Baisers Volés (François Truffaut), onde explica que ao entrar inadvertidamente numa casa-de-banho e ao ser surpreendido aí com uma senhora nua, o homem educado dirá "Pardon, madame", mas o homem com tacto dirá "Pardon, monsieur".
  Repare-se que a própria noção de "verdades" pode ser aqui equívoca – precisamente porque, como já sugerimos, a sua existência real só começa quando são pronunciadas abertamente. Em rigor, o quadro que Andersen nos apresenta até ao momento em que a criança fala lembra-nos o § 293 das Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein: supondo que cada pessoa tem uma caixa com um escaravelho; que cada uma só consegue espreitar a sua caixa, mas não a dos outros, e que, não obstante, todas usam a expressão "escaravelho" sem quaisquer disputas quanto ao seu significado, então, diz Wittgenstein, não interessa verdadeiramente o que está dentro da caixa – que pode ser sempre o mesmo para todas as pessoas, pode ser sempre diferente, pode ir variando e, no limite, pode até a caixa estar vazia. A gramática da expressão prescinde do objecto, pois "a coisa na caixa não pertence de todo ao jogo de linguagem" ("Das Ding in der Schachtel gehört überhaupt nicht zum Sprachspiel"). Ora, isto vale também para as roupas do imperador: se este passeava exibindo as roupas e se a reacção de todos era a de quem as via, então, no limite, é realmente indiferente se o imperador estava vestido ou não.
  

  Os exemplos no cinema e na televisão serão incontáveis, mas um aparece aqui como particularmente interessante: no episódio "For immediate release" (Jennifer Getzinger), da série Mad Men, Peter Campbell cruza-se inesperadamente com o seu sogro Tom Vogel num bordel. Campbell fica preocupado, mas o seu colega Ken Cosgrove explica-lhe que nada tem a temer: a revelação do encontro seria provavelmente tão catastrófica para Vogel (igualmente casado e igualmente desejoso de manter o respeito da filha) como para Campbell, pelo que ele irá certamente guardar silêncio sobre o assunto. A verdade, porém, é que Vogel conta imediatamente à filha as infidelidades de Campbell e ainda cancela a sua conta na empresa do genro.
  Vogel não é como a narradora de "Who dealt?" ou a criança que aponta o dedo ao imperador: ele nada tem de ingénuo. A sua intenção é precisamente a de causar estragos na teia de relações (profissionais e pessoais) de Campbell consigo e com a sua filha. Mas assalta-nos a sua hipocrisia quando, além disso, ele ainda o censura por fazer o mesmo que ele. A verdade, contudo, é que Vogel pode ser, destes três, o que mais compreensão merece: ele trai Campbell com a perfeita consciência de que pode estar a trair-se (irremediavelmente) a si mesmo. Mesmo que o facto de ficar desmascarado perante a mulher, provavelmente, não o incomode muito, certamente a sua imagem perante a filha é ainda muito importante. E ele está pronto a abdicar disso pelo respeito que entende que ela merece receber por parte do marido. A cegueira em relação a si mesmo tem, assim, um curioso duplo efeito: é verdade que ele parece esquecer-se das suas próprias faltas quando censura o genro e assim aparece-nos como hipócrita, mas é precisamente este esquecimento de si próprio que faz o seu amor pela filha, pois leva-o a colocá-la em primeiro lugar, em vez de a si mesmo. O amor é cego. Mas só é verdadeiro o amor que provoca a cegueira em relação a si mesmo, e não a quem se ama.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A armadilha - "El Soborno" (Jorge Luis Borges)

  No conto "El Soborno", de Jorge Luis Borges, Ezra Winthrop, um professor universitário, tem de escolher, entre dois candidatos (Herbert Locke e Eric Einarsson), quem vai ter a oportunidade de participar num congresso a realizar em pouco tempo. Einarsson publica então um artigo que, mais ou menos indirectamente, deixa Winthrop mal visto, impugnando aí o seu método pedagógico. Preocupado em ser imparcial, Winthrop escolhe Einarsson. Este visita depois o professor para lhe explicar que exagerou no seu artigo precisamente com a intenção de conseguir o voto de Winthrop, pois conhecia a preocupação deste com a imparcialidade e sabia que ele acabaria por escolhê-lo para ter a certeza de não tomar uma decisão motivada por vingança.
  
  Se Einarsson não tivesse publicado o artigo, a decisão de Winthrop teria sido outra? O conto não o esclarece, mas isso não é o mais importante, pois uma coisa é certa: diferente ou não no seu resultado, a decisão teria tido uma motivação diversa. Não é a mesma coisa, para usar um exemplo de Sartre (L'être et le néant), ficar em casa porque está a chover ou porque nos tentaram convencer a sair. A decisão de optar por Einarsson apenas e só porque este seria um candidato mais adequado teria sido também bastante diferente. De que modo?
  A questão obriga-nos a perceber porque acontece fazermos sem qualquer preocupação muitas coisas que, tivesse alguém tentado convencer-nos a fazê-las, teríamos resistido a levá-las a cabo, ou não as teríamos feito de todo. Segundo Sartre, a diferença está em que no primeiro caso eu decido agir de certo modo determinando-me a mim mesmo pela consideração das consequências dos meus actos. No segundo, as minhas possibilidades de agir assim ou de modo diverso apresentam-se-me como transcendidas e fixadas por uma liberdade que não é a minha, que as prevê e previne ao mesmo tempo. Experimentamos então aí a liberdade do outro através da nossa "escravatura": estamos definitivamente lançados no mundo como objectos perante o olhar do outro, pelo qual experimentamos esse outro como sujeito livre e consciente O outro não é, em suma, um qualquer obstáculo material (que eu poderia ultrapassar projectando-me em direcção a outros possíveis): é, isso sim, uma subjectividade inapreensível por mim, uma verdadeira liberdade.
  Parece assim que a nossa relutância em fazer aquilo que teríamos feito de boa vontade, não fora um outro ter aparecido e tentando convencer-nos a fazê-lo, não passa afinal de uma tentativa instintiva de recuperação da nossa (experiência de) liberdade; de uma vontade de assegurarmos a nós mesmos que as nossas possibilidades são ainda caminhos de verdadeira liberdade, não fixadas pela subjectividade de outrem. O que a história de Winthrop ilustra, porém, é que esta é uma armadilha inescapável e que o máximo que conseguimos é cair na ilusão de que conseguimos sair. A decisão de escolher Einarsson apesar do artigo pode ser simplificada como reacção a uma situação criada em que Winthrop dá por si num contexto em que é expectável que ele escolha Locke (em que ele se sente "empurrado" a fazê-lo). E daí a sua opção. O facto de esta ser afinal o resultado previsto e desejado por Einarsson apenas reforça, porém, a evidência: também esta reacção aparece, afinal, como fixada e transcendida pelo outro.
  Não havia assim escapatória para Winthrop, o que não quer dizer, todavia, que ele tenha ficado sem vingança. Depois da explicação de Einarsson, Winthrop riposta-lhe que, se é verdade que cedeu à vaidade da imparcialidade, também é verdade que Einarsson mostra vaidade ao relatar-lhe o seu plano e a respectiva execução. Que é isto senão uma exibição de liberdade perante Winthrop? E no entanto, como prova a apreciação de vaidade de Winthrop, Einarsson cai na mesma armadilha: pois não faz mais do que exibir-se como mero objecto perante o olhar do professor.
  Esta é a única vingança a que Winthrop poderia aspirar. E por ter tido a oportunidade de a concretizar, pôde despedir-se sem raiva de Einarsson, com um aperto de mão entre iguais.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Zêuxis e Parrásio, ou A verdade da ilusão

  Plínio, o Velho, conta que Zêuxis e Parrásio entraram numa competição para ver qual deles era o maior dos pintores.
  Zêuxis pintou um cacho de uvas tão perfeito que os pássaros, convencidos de que as uvas eram verdadeiras, lançaram-se contra a pintura.
  Os pintores deslocaram-se então à casa de Parrásio para verem a pintura deste. Parrásio pediu a Zêuxis que afastasse a cortina e contemplasse a sua obra. Quando Zêuxis estendeu a mão para fazer isso mesmo, percebeu que a própria cortina era a imagem pintada.
  Reconhecendo-se enganado, Zêuxis admitiu a derrota.

  A vitória de Parrásio sobre Zêuxis mostra que a ilusão preferida ou desejada é aquela de que algo existe (por detrás da cortina), algo que não sabemos, porém, o que é.
  A ilusão de Zêuxis perde, portanto, porque ela passa por fingir algo que se está mostrar: o que se finge existir são as próprias uvas. O que se esconde é a irrealidade do objecto.
 Com a ilusão de Parrásio trata-se antes de sugerir que existe algo (ou a possibilidade de existir algo) que, na verdade, não está lá. Esta ilusão é a vencedora porque inventa um segredo.
  É claro que a cortina de Parrásio é ilusória e, de facto, não há segredo nenhum. Mas o importante é a sugestão de que algo se oculta: também com um segredo verdadeiro não sabemos o que se esconde. Este não saber é que alimenta a curiosidade – mas se assim é, tal significa que o que está do outro lado é indiferente, e, portanto, é o que menos importa (se é que importa de todo): importância tem apenas o próprio segredo, o estar escondido; o jogo essencial faz-se entre o esconder e o aliciar o véu para conseguir fazê-lo cair.
  De certo modo, a ilusão de Zêuxis é mais honesta, pois não sugere estar a esconder nada, não promete nenhum objecto misterioso. Ela exibe tudo o que tem: a aparência do objecto. Com a ilusão de Zêuxis, o que engana o observador são os seus próprios olhos, não tanto a imagem, visto que esta se oferece como o que é: uma imagem.
  Neste sentido, a ilusão de Parrásio parece traiçoeira, já que é ela a enganar o observador. E fá-lo na medida em que o transforma em investigador: a imagem da cortina oferece-se como segredo. Não se oferece como a imagem de um objecto, mas sim como a ocultação de um objecto (ou, porventura, como ocultação da imagem de um objecto).
  Assim, quando ambas as ilusões são desmascaradas, o que desilude na de Zêuxis é o facto de o objecto exibido não existir. Mas o observador deve apenas censurar-se a si mesmo, visto que não pode alegar que o quadro prometeu outra coisa que não a imagem do objecto – não se trata, aliás, de uma promessa, dado que a imagem já está efectivamente a oferecer-se como aquilo que é.
  É por isso, no entanto, que a ilusão de Zêuxis é falsa, pois ela não engana (que é o que deveria fazer, enquanto ilusão): é o observador que se engana a si mesmo.
  Já o quadro de Parrásio desilude (quando a ilusão é desmascarada) porque o objecto ocultado não existe, e não por não existir o objecto exibido (a cortina). Ou melhor: o que verdadeiramente desilude não é tanto o facto de não haver um objecto do segredo (uma coisa ocultada – ou a ocultada imagem de uma coisa), mas o próprio facto de não haver segredo, de este, afinal, não ser verdadeiro.
  A aparência do segredo é a da proibição, mas a sua força é a do apelo para a violação da proibição, para o rasgar do véu que se esconde. O segredo vive como promessa.
  O quadro de Parrásio exibe uma promessa. Na medida em que não há segredo, essa promessa revela-se falsa e, assim, a ilusão é verdadeira, porque engana (a verdade da ilusão é enganadora).
  Em suma, por ser honesta, a ilusão de Zêuxis é falsa; por ser enganadora, a ilusão de Parrásio é verdadeira. Por isso, a última é a vencedora.
  Esta vitória justifica-se também de uma outra perspectiva.
  A ilusão de Zêuxis não é aquela de que o humano se alimenta. Ela serve apenas os animais, não o homem – por isso, na lenda, ela engana os pássaros, não uma pessoa. Trata-se da ilusão de que as coisas existem, de que o mundo material é verdadeiro, tem essência – em suma: de que o objecto está realmente aí.
  Esta ilusão cartesiana, baseada no engano sobre a existência das coisas a partir da sua representação não é, porém, o que faz viver o humano. Porque o que o cativa não é tanto a possibilidade de o objecto exibido não existir, mas sobretudo a de existir um objecto oculto. É nisso, aliás, que se baseia o jogo da sedução: na promessa do objecto oculto. O que verdadeiramente atrai o homem não é a nudez exibida que não existe, mas sim a que pode ou não existir escondida pelo vestido.
  O que move o homem, no fundo, é esse perverso desejo kantiano de espreitar por debaixo das saias da realidade para ver a coisa-em-si (para falar como Jean-Baptiste Botul, o filósofo inexistente). Não tanto saber se as coisas existem ou não, mas sim se algo (por definição, Deus) existe por detrás delas.
 O que caracteriza então o humano é este jogo do segredo. Um animal que espreita uma toca quer a presa que lá se esconde, quer a coisa-em-si. O homem não. O homem que espreita o interior de uma casa excita-se e deleita-se com o próprio segredo, com o facto de estar a desvendar um segredo – porque desvendar o segredo é atravessá-lo, é passar por ele, penetrá-lo. É aí, na penetração do esconderijo, que está o prazer humano.
  É por isso que na ilusão de Parrásio é uma pessoa que é enganada, já não um bicho: é porque é esta ilusão que verdadeiramente atrai as pessoas. É a ilusão de um segredo. Por outro lado, é bem significativo que a pessoa enganada seja precisamente Zêuxis: é o próprio autor da ilusão não-humana a abandoná-la para aceitar a ilusão verdadeiramente humana.
  Por fim, a ilusão de Parrásio talvez não seja tão traiçoeira quanto isso. É que ela representa a promessa de que vive o segredo (o segredo vive da promessa que seduz, tal como a sedução vive do segredo que promete). Se pensarmos que o homem tem prazer, não tanto na obtenção da coisa-em-si, mas antes na vivência do próprio segredo, então a ilusão de Parrásio está ao serviço do homem: ela oferece uma cortina fechada e, com isso, um segredo, mas impede que o segredo morra. A cortina não pode abrir-se (seria esse o único modo de o segredo morrer) e, por isso, o segredo continuará vivo.
  Podemos pensar que este estado perpétuo de prazer, se é verdade que nos impede de passar para um além-do-prazer e, portanto, impede a destruição do segredo (do próprio prazer), também é verdade que não deixa de ser uma posição aquém do clímax, na medida em que se resume a uma contemplação do segredo que se exibe adiante.
  Poderíamos dizer, portanto, que o que verdadeiramente queremos não é deter-nos neste momento de prazer morno, expectante, prazer da curiosidade, prazer do sofrimento de não saber. O que queremos é antes o prazer do momento culminante do desvendamento do segredo, do atravessamento, da penetração do segredo. O que procuramos prolongar é esse pico, esse culminar, não o momento expectante que o antecede.
  Só que a competição entre Zêuxis e Parrásio é uma competição entre ilusões. Se a pintura de Parrásio possibilitasse realmente aquele atravessamento, deixaria de ser uma ilusão (de um segredo) e passaria a ser um segredo real (que, como tal, se poderia desvendar). Parrásio teria feito batota, portanto.
  E talvez seja de preferir, no fim de contas, a ilusão. É que a história do humano não se faz da descoberta da verdade das coisas, mas da procura por essa verdade. Ao fim de milénios, não sabemos ainda nada sobre a verdade das coisas – e pode mesmo não haver nada para saber, o que não retira valor humano nenhum à procura.
  O humano não está no encontro de Deus, mas sim na procura de Deus. O desvendar do segredo pode ser o culminar da procura humana. Mas o que é humano é a procura. E é essa a realidade da ilusão de Parrásio.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Demasiado diferentes - "Cape Fear"


  Na versão de 1991 do filme Cape Fear (Martin Scorcese), há uma ligação de sedução entre Max Cady e Danielle. Essa ligação pode facilmente ser aproximada da relação entre o Lobo Mau e o Capuchinho Vermelho. A ascendência que Cady ganha sobre Danielle confirma claramente a sentença de Bruno Bettelheim (The Uses of Enchantment - The meaning and importance of fairy tales), segundo a qual o Lobo só tem poder sobre nós porque nos atrai ("If there were not something in us that likes the big bad wolf, he would have no power over us"). Mas a sedução de Cady pode ser vista como atingindo o próprio Sam Bowden, pai de Danielle. De facto, não é forçado descobrir na fúria de Bowden em reacção aos avanços de Cady sobre a sua filha uma atitude ciumenta e possessiva - e muito mais em relação ao sedutor do que em relação à filha. Isto será porventura mais evidente na cena em que Bowden se zanga e chega a ser algo violento com Danielle, ao perceber, perante o sorriso malandro desta, que ela e Cady estiveram juntos, adivinhando um clima sexual entre ambos.
  A atracção entre opostos parece aqui relativamente fácil de explicar. Cady expressa e concretiza vários desejos e impulsos que estariam reprimidos em Bowden. Este parece pretender a posição do macho que possui as fêmeas sem restrições que não os limites do seu desejo, como podemos perceber pelas infidelidades praticadas com Lori Davis. Confrontado (perante a sua mulher) com a necessidade de lhes pôr fim, é Cady quem concretiza o desejo reprimido (e assim tornado violento) de Bowden de possuir novamente Davis e de, simultaneamente, livrar-se dela. Assim, a atracção (e o ódio) que Bowden sente por Cady explicam-se muito perante a constatação de que este concretiza em grande parte o que Bowden quer ser e fazer, e da inveja e, simultaneamente, repulsa que daí resultam. Não admira, assim, o contraste entre as reacções de Bowden perante os contactos de Lori e Danielle com Cady: preocupa-se com aquela e sente-se mesmo culpado pelo ataque (como disse, porque Cady concretizou apenas os impulsos do próprio Bowden); irrita-se e mostra-se agressivo com esta - porque, por um lado, Cady poderá ter avançado com o que seriam os desejos do próprio pai em relação à filha, exibida abertamente na cena como criatura sexual, e, por outro, porque a filha ocupa o lugar que deveria ser seu na obsessão de Cady.
  Cady é assim, de certo modo, o ego ideal ("Idealich") de Bowden, na medida em que traduz a união, desejada por Bowden, entre o ego deste e o seu id. Mas é mais do que isso. À partida, há um conflito em cada sujeito entre o id e o superego - o Lobo e o Caçador são, por definição, inimigos. Mas Cady consegue fazer-se valer da lei, as tentativas de Bowden de afastar Cady por meios legais vêem-se repetidamente frustradas. Se aceitarmos que o plano (simbólico) da Lei é o do superego, como pretendia Lacan, então temos que Cady, tendo a lei do seu lado, representa também o ideal do ego ("Ichideal") para Bowden, visto que pode ser tomado como o modelo com o qual ele se quereria conformar (na medida em que Bowden quer também escapar à censura da lei). Assim, Cady consegue atingir a posição - à partida impossível - em que pode dar vazão aos impulsos do id (de Bowden), escapando, porém, à censura da lei, sendo ego ideal e ideal do ego ao mesmo tempo. Concretiza também assim, de certo modo, a velha suspeita de que o superego se vale das energias do (plano inconsciente do) id, só que em Cady o superego parece satisfeito de tal modo que não existe qualquer ataque virado para o próprio sujeito.
  Na versão original de 1962 (J. Lee Thompson), aproximamo-nos muito mais do conto do Capuchinho Vermelho no que toca à relação entre Sam Bowden e Max Cady - que podemos espelhar, como sugeri, na relação entre o Caçador e o Lobo. Salientou Bettelheim a oposição nesta última relação: "the dangerous seducer who, if given to, turns into the destroyer of the good grandmother and the girl; and the hunter, the responsible, strong and rescuing father figure". Esta oposição entre o Lobo (Cady, obviamente) e o Caçador (Bowden), como foi dito, é muito mais vincada no primeiro filme. Tudo no Cady de Robert Mitchum é reprovável ou repulsivo e tudo no Bowden de Gregory Peck é (apresentado como) legítimo ou, pelo menos, justificado. Mesmo os seus nomes (Sam - Max) são quase a inversão um do outro. Mas aquela oposição é muito mais dúbia no filme de Scorcese.
  Quer isto dizer que a separação entre Bowden e Cady é mais efectiva no primeiro filme do que no segundo? À primeira vista, é isso mesmo que sucede: por contraposição ao antagonismo entre os dois na versão original, encontramos uma miscelânea, uma mistura entre as duas figuras (i. e., uma diluição da fronteira entre ambas), no remake e assim a distinção entre eles parece mais difícil. Veja-se que Bowden está aqui longe de ser o justo inocente que Peck havia representado no primeiro filme: trai e mente à mulher, trata a colega de trabalho e amante como mero objecto descartável de satisfação de desejos, encomenda o espancamento de Cady (muito mais incompreensível aqui que no primeiro filme), não cumpre os deveres legais e deontológicos da sua profissão (mesmo que com a "boa intenção" de garantir a condenação de Cady), etc. Por outro lado, não podemos evitar, ainda que com desconforto, reconhecer razão a Cady quando se sente injustiçado por Bowden não o ter representado como devia ter feito, quase sentimos a dor física a que é sujeito no espancamento cobarde de que é vítima (se bem que depois até saia daí vitorioso) e é claro para todos (e sobretudo para Bowden) que Cady entende muito melhor Danielle (os seus medos, as suas preocupações, os seus desejos) do que o pai.
  A maior distinção entre os dois que a oposição verificada no primeiro filme parece sugerir é, porém, meramente aparente. Num dos contos do Padre Brown, "The Duel of Dr. Hirsch" (G. K. Chesterton), há também dois homens – Hirsch e Dubosc – que em tudo se opõem. Ora, para o Padre Brown, é precisamente essa oposição perfeita que impede que os dois homens alguma vez se encontrem:

"They will never meet. (...) They are the opposite of each other, (...) They contradict each other. They cancel out, so to speak. (...) These opposites won't do. They don't work. They don't fight. If it's white instead of black, and solid instead of liquid, and so on all along the line--then there's something wrong, (...). One of these men is fair and the other dark, one stout and the other slim, one strong and the other weak. (...) Things made so opposite are things that cannot quarrel."

  A solução do conto é clara: dois homens que em tudo se opõem só podem ser a mesma pessoa. E é precisamente essa conclusão que não podemos evitar quando atentamos no momento culminante do primeiro filme, em que Bowden tem Cady à mercê e acaba por não disparar a arma, preferindo vê-lo fechado numa prisão. É aí que, repetindo Bowden exactamente as mesmas palavras que Cady antes de lhe dirigira, percebemos que eles afinal não se distinguem. E, por paradoxal que pareça, é precisamente a oposição flagrante entre eles que mais nos confirma essa indistinção. Dito ainda de outro modo: dois homens que são o inverso um do outro não passam do mesmo homem a ver-se ao espelho.
  Scorcese aprendeu bem a lição do Padre Brown: para fazer funcionar o antagonismo entre Cady e Bowden, teve de os tornar mais parecidos. Não há nada mais diferente que o parecido. E não há nada mais igual que o inverso. O Cady de Nick Nolte e o Bowden de Robert De Niro são, afinal, muito semelhantes e, por isso, fundamentalmente diferentes.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O lugar vazio


  O episódio "Eye of the beholder" (Douglas Heyes), da série The Twilight Zone, conta a história de uma mulher (Janet Tyler) que acaba de ser sujeita à décima-primeira tentativa de "correcção" do seu rosto. A sua cabeça está coberta de ligaduras, mas os diálogos com o médico e as enfermeiras permitem-nos perceber que ela é um monstro disforme e que se mais este tratamento falhar, ela terá de ser afastada para viver numa comunidade com outras pessoas deformadas como ela. É isso mesmo que vem a suceder, mas quando lhe são retiradas as ligaduras percebemos que esta mulher corresponde grandemente ao ideal de beleza a que o espectador está habituado – ao contrário do pessoal do hospital, cujos rostos assemelham as pessoas a suínos.

 O artigo "The treachery of the commonplace", de Mary Sirridge, parte da citação de uma espectadora sobre o episódio, em que esta mostra a sua admiração ao descobrir que a protagonista era "linda" e os enfermeiros "pareciam porcos". A intenção do episódio parece ser, precisamente, a de produzir este efeito-surpresa. A mensagem última seria também óbvia: os conceitos de beleza e fealdade envolvem a relatividade fatal do ponto de vista. Janet parece horrível porque vive numa sociedade em que o padrão de beleza é referido ao rosto mais comum e este é, no presente caso, o dos enfermeiros. O espectador, porém, tem a distância que lhe permite perceber essa relatividade. Será apenas a distância do espectador, todavia, o que lhe permite ter aquela sensibilidade? E corresponderá essa sensibilidade a uma posição de verdadeira sabedoria, de verdadeiro discernimento?
  Em bom rigor, a espectadora só percebeu a dita relatividade porque começa por ver Janet como sendo bonita. É este ponto de partida que gera a contraposição em relação à visão dos médicos. Isto quer dizer, porém, que a relatividade das apreciações só é percebida a partir de uma apreciação absoluta: para compreender que a apreciação que os enfermeiros fazem está viciada de relatividade, eu tenho de partir de uma apreciação que está, ela mesma, viciada de relatividade; só que a minha apreciação, por definição, nunca é por mim assumida no princípio como relativa. Porque, como explicou Kant, um juízo estético, sendo, por definição, subjectivo, reclama sempre a universalidade. O que conduz aqui à armadilha do ponto de vista: eu consigo colocar-me atrás dos espectadores e assim perceber como é relativa a sua apreciação, consigo transcender os seus pontos de vista; mas nunca consigo colocar-me atrás de mim mesmo, nunca consigo transcender a minha perspectiva.
  A associação entre estética e moral, sugerida por Sirridge na sua leitura do episódio, de resto, é aqui pertinente: como explica Sartre, quando defendo algo como sendo bom, defendo-o como universalmente bom. Do mesmo modo, os enfermeiros impõem como universalmente válida a sua visão sobre o que é "esteticamente aceitável". Ora, Sirridge alerta então para um possível efeito perverso na mente do espectador, que pode ser levado a pensar: "mas do mesmo modo que a posição de quem quer impôr um padrão de beleza é inadmissível – pois não podemos impor aos outros o nosso próprio padrão de beleza –, não será igualmente inadmissível impor aos outros o meu modelo liberal de tolerância e diversidade?"
  Sirridge tenta resolver a questão dizendo que na verdade a posição liberal não é uma posição moral entre outras, que tal como todas as outras não pode ser imposta em absoluto, sob pena de tirania. Sirridge diz que se trata antes de uma perspectiva meta-moral, uma perspectiva, se quisermos, que não deve ser situada entre as outras no discurso moral, mas sim no estabelecimento das próprias condições do discurso.
  Esta resposta, no entanto, falha, pois a posição liberal, na verdade, deve ser situada (mesmo que num lugar suis generis) dentro do discurso moral. Como já alertou Dworkin, o compromisso com valores como a liberdade de expressão ou a tolerância face à diversidade fazem com que a posição liberal não seja verdadeiramente neutra. Significa isto que tem razão aquele espectador temido por Sirridge, que conclui que não pode defender como universalmente válida a sua posição liberal e tem de aceitar as outras posições, incluindo as que querem impor um padrão estético? Nada disso. Isto apenas significa o que se disse: que a posição liberal é situada entre as outras no discurso moral. Mas esse discurso é construído argumentativamente; e a posição liberal poderá e deverá ser defendida contra as outras (ou seja, não poderá ser imposta a priori). E deverá porque, como se referiu, defender um valor implica propor a sua universalidade.
  Onde nos deixa isto em relação à questão estética? À primeira vista, seríamos tentados a dizer o seguinte: a associação platónica entre o bom e o belo parece errada, pois afinal, como vimos, as perspectivas morais devem ser colocadas num plano de discussão argumentativa, enquanto as concepções estéticas, pelo contrário, não parecem passíveis de se adequar a esse plano. Não é imediatamente claro, porém, o que daqui resulta: com efeito, podemos pensar primeiro que isso significa que não há razões propriamente ditas para algo me parecer belo, pelo que a minha concepção estética não tem de ser justificada, por não ser sequer passível de justificação. O efeito perverso disto, no entanto, aparece inevitavelmente com a generalização de um dado padrão estético: a verdade é que certos modelos tendem a ser aceites por maiorias como paradigmas de beleza, que deste modo não carecem de ser explicados.
  Não tem, porém, de ser assim: isto pode revelar-se apenas, afinal, uma perspectiva infantil, não educada, das concepções estéticas. O sentimento do belo não tem de traduzir simplesmente a contemplação ausente da imagem. Aquele que aprecia sem valorar é apenas um olho e nada mais. É possível uma apreciação justificada, valoradora, baseada nas experiências pessoais e em juízos sustentados nas concepções morais do observador e no que elas lhe dizem sobre a pessoa por detrás do rosto. Este observador mora atrás dos seus olhos (pois pensa, valora) e à frente deles (pensa e valora o que vê).
  Nesta perspectiva, a expressão "beauty is in the eye of the beholder" mostra-se trágica e ironicamente contrariada: a beleza está em todo o lado, excepto nos olhos de quem a vê: está atrás dos olhos (explica-se pelas experiências de quem olha e pelos seus valores) e diante deles (esses elementos só existem na apreciação do que é visto e nas qualidades que aí se descobrem). Os olhos são, afinal, um não lugar, um filtro; são um lugar onde a beleza não existe, ainda que para nascer ela tenha de passar por eles. Se a beleza está nos olhos de quem a vê, então está apenas de passagem, pois não é aí que ela mora.