Quando lemos o conhecido conto "As novas roupas do imperador", de Hans Christian Andersen, somos tentados a enaltecer a figura da criança que grita o que todos viam sem admitir: que o imperador estava nu. Ela assume o papel de dizer a verdade ao poder e à autoridade, desafiando a hipocrisia social, o fingimento descarado e a ostentação vazia.
Coloquemos, porém, esta figura a par de uma outra, igualmente inocente (pelo menos aparentemente) e desbocada: a narradora do conto "Who dealt?" de Ring Lardner. Dois casais amigos – a narradora e Tom de um lado, Arthur e Helen do outro – juntam-se para uma noite de bridge. A narradora está casada há pouco tempo com Tom e não sabe que no passado ele e Helen estiveram noivos. Helen acabou, porém, por casar com Arthur (que ignorava aquele noivado), porque este, para além de ser rico, atlético, etc., conseguiu licenciar-se e arranjar uma posição estável na vida mais cedo do que Tom – que, por ser pobre, demorou muito mais. Esta é, pelo menos, a versão dos acontecimentos que recebemos a partir do relato que a narradora faz de uns escritos de Tom que ela encontrou e leu sem este saber. A narradora dá agora a conhecer tudo isso com a intenção ingénua de divertir os outros, sem perceber o significado do que está a dizer e o impacto destrutivo que assim provoca (não interessa aqui a possível interpretação da história segundo a qual a narradora está perfeitamente consciente do que está a fazer, querendo apenas vingar-se de Tom por este lhe ter escondido o romance e castigar Helen pelo afecto que Tom lhe dedicou).
Ao contrário da criança de Andersen, merecedora da adoração da maioria dos seus leitores, a narradora de "Who dealt?" foi tratada pela crítica como "estúpida", "insensível", "faladora descontrolada" e até a sua inabilidade no bridge foi motivo de censura. O diferente tratamento dado a estas duas figuras parece assim justificado intuitivamente. Mas será essa diferença realmente de aceitar?
O relato da narradora parece efectivamente não trazer nada de positivo; provoca até, no imediato, que Tom (um alcóolico em recuperação) recomece a beber. A longo prazo, há um estilhaçar óbvio nas relações entre os amigos, que não poderão voltar a ser as mesmas. A amizade entre os companheiros de jogo da narradora pôde sobreviver forte valendo-se do silêncio sobre aquele evento dilacerante. Uma vez revelada a verdade, todavia, deixa de ser possível agir como se nunca nada se tivesse passado - do mesmo modo que a partir do momento em que uma criança gritou que o imperador não tinha roupas a nudez deste ficou exposta, a tal ponto que já ninguém pode continuar a agir como se todos o vissem vestido. De certa maneira, podemos dizer que foi a criança quem, na verdade, despiu o imperador.
Resta saber, porém, se estamos realmente prontos para aceitar as consequências da atitude da criança – ou será que a história de Lardner pode servir-nos de alerta para sermos prudentes com a ânsia de deixar as verdades emergirem? O tecido social das várias relações entre os membros de uma comunidade depende muito do silêncio sobre verdades que podem ser conhecidas, mas nunca pronunciadas. Este silêncio é tão cuidadosamente construído que essas verdades, em rigor, não chegam nunca a existir (enquanto ninguém lhes apontar o dedo). Se o enunciar de algo-que-não-devemos-dizer tem um mero efeito destruidor, então talvez devamos, com Slavoj Žižek (For They Know Not What They Do – Enjoyment as a political factor), concluir que é altura de abandonar o elogio da criança e aceitá-la como o protótipo do falador descontrolado que pode provocar a desintegração da própria sociedade.
Repare-se que a própria noção de "verdades" pode ser aqui equívoca – precisamente porque, como já sugerimos, a sua existência real só começa quando são pronunciadas abertamente. Em rigor, o quadro que Andersen nos apresenta até ao momento em que a criança fala lembra-nos o § 293 das Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein: supondo que cada pessoa tem uma caixa com um escaravelho; que cada uma só consegue espreitar a sua caixa, mas não a dos outros, e que, não obstante, todas usam a expressão "escaravelho" sem quaisquer disputas quanto ao seu significado, então, diz Wittgenstein, não interessa verdadeiramente o que está dentro da caixa – que pode ser sempre o mesmo para todas as pessoas, pode ser sempre diferente, pode ir variando e, no limite, pode até a caixa estar vazia. A gramática da expressão prescinde do objecto, pois "a coisa na caixa não pertence de todo ao jogo de linguagem" ("Das Ding in der Schachtel gehört überhaupt nicht zum Sprachspiel"). Ora, isto vale também para as roupas do imperador: se este passeava exibindo as roupas e se a reacção de todos era a de quem as via, então, no limite, é realmente indiferente se o imperador estava vestido ou não.
Os exemplos no cinema e na televisão serão incontáveis, mas um aparece aqui como particularmente interessante: no episódio "For immediate release" (Jennifer Getzinger), da série Mad Men, Peter Campbell cruza-se inesperadamente com o seu sogro Tom Vogel num bordel. Campbell fica preocupado, mas o seu colega Ken Cosgrove explica-lhe que nada tem a temer: a revelação do encontro seria provavelmente tão catastrófica para Vogel (igualmente casado e igualmente desejoso de manter o respeito da filha) como para Campbell, pelo que ele irá certamente guardar silêncio sobre o assunto. A verdade, porém, é que Vogel conta imediatamente à filha as infidelidades de Campbell e ainda cancela a sua conta na empresa do genro.
Vogel não é como a narradora de "Who dealt?" ou a criança que aponta o dedo ao imperador: ele nada tem de ingénuo. A sua intenção é precisamente a de causar estragos na teia de relações (profissionais e pessoais) de Campbell consigo e com a sua filha. Mas assalta-nos a sua hipocrisia quando, além disso, ele ainda o censura por fazer o mesmo que ele. A verdade, contudo, é que Vogel pode ser, destes três, o que mais compreensão merece: ele trai Campbell com a perfeita consciência de que pode estar a trair-se (irremediavelmente) a si mesmo. Mesmo que o facto de ficar desmascarado perante a mulher, provavelmente, não o incomode muito, certamente a sua imagem perante a filha é ainda muito importante. E ele está pronto a abdicar disso pelo respeito que entende que ela merece receber por parte do marido. A cegueira em relação a si mesmo tem, assim, um curioso duplo efeito: é verdade que ele parece esquecer-se das suas próprias faltas quando censura o genro e assim aparece-nos como hipócrita, mas é precisamente este esquecimento de si próprio que faz o seu amor pela filha, pois leva-o a colocá-la em primeiro lugar, em vez de a si mesmo. O amor é cego. Mas só é verdadeiro o amor que provoca a cegueira em relação a si mesmo, e não a quem se ama.
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