Na versão de 1991 do filme Cape Fear (Martin Scorcese), há uma ligação de sedução entre Max Cady e Danielle. Essa ligação pode facilmente ser aproximada da relação entre o Lobo Mau e o Capuchinho Vermelho. A ascendência que Cady ganha sobre Danielle confirma claramente a sentença de Bruno Bettelheim (The Uses of Enchantment - The meaning and importance of fairy tales), segundo a qual o Lobo só tem poder sobre nós porque nos atrai ("If there were not something in us that likes the big bad wolf, he would have no power over us"). Mas a sedução de Cady pode ser vista como atingindo o próprio Sam Bowden, pai de Danielle. De facto, não é forçado descobrir na fúria de Bowden em reacção aos avanços de Cady sobre a sua filha uma atitude ciumenta e possessiva - e muito mais em relação ao sedutor do que em relação à filha. Isto será porventura mais evidente na cena em que Bowden se zanga e chega a ser algo violento com Danielle, ao perceber, perante o sorriso malandro desta, que ela e Cady estiveram juntos, adivinhando um clima sexual entre ambos.
A atracção entre opostos parece aqui relativamente fácil de explicar. Cady expressa e concretiza vários desejos e impulsos que estariam reprimidos em Bowden. Este parece pretender a posição do macho que possui as fêmeas sem restrições que não os limites do seu desejo, como podemos perceber pelas infidelidades praticadas com Lori Davis. Confrontado (perante a sua mulher) com a necessidade de lhes pôr fim, é Cady quem concretiza o desejo reprimido (e assim tornado violento) de Bowden de possuir novamente Davis e de, simultaneamente, livrar-se dela. Assim, a atracção (e o ódio) que Bowden sente por Cady explicam-se muito perante a constatação de que este concretiza em grande parte o que Bowden quer ser e fazer, e da inveja e, simultaneamente, repulsa que daí resultam. Não admira, assim, o contraste entre as reacções de Bowden perante os contactos de Lori e Danielle com Cady: preocupa-se com aquela e sente-se mesmo culpado pelo ataque (como disse, porque Cady concretizou apenas os impulsos do próprio Bowden); irrita-se e mostra-se agressivo com esta - porque, por um lado, Cady poderá ter avançado com o que seriam os desejos do próprio pai em relação à filha, exibida abertamente na cena como criatura sexual, e, por outro, porque a filha ocupa o lugar que deveria ser seu na obsessão de Cady.
Cady é assim, de certo modo, o ego ideal ("Idealich") de Bowden, na medida em que traduz a união, desejada por Bowden, entre o ego deste e o seu id. Mas é mais do que isso. À partida, há um conflito em cada sujeito entre o id e o superego - o Lobo e o Caçador são, por definição, inimigos. Mas Cady consegue fazer-se valer da lei, as tentativas de Bowden de afastar Cady por meios legais vêem-se repetidamente frustradas. Se aceitarmos que o plano (simbólico) da Lei é o do superego, como pretendia Lacan, então temos que Cady, tendo a lei do seu lado, representa também o ideal do ego ("Ichideal") para Bowden, visto que pode ser tomado como o modelo com o qual ele se quereria conformar (na medida em que Bowden quer também escapar à censura da lei). Assim, Cady consegue atingir a posição - à partida impossível - em que pode dar vazão aos impulsos do id (de Bowden), escapando, porém, à censura da lei, sendo ego ideal e ideal do ego ao mesmo tempo. Concretiza também assim, de certo modo, a velha suspeita de que o superego se vale das energias do (plano inconsciente do) id, só que em Cady o superego parece satisfeito de tal modo que não existe qualquer ataque virado para o próprio sujeito.
Cady é assim, de certo modo, o ego ideal ("Idealich") de Bowden, na medida em que traduz a união, desejada por Bowden, entre o ego deste e o seu id. Mas é mais do que isso. À partida, há um conflito em cada sujeito entre o id e o superego - o Lobo e o Caçador são, por definição, inimigos. Mas Cady consegue fazer-se valer da lei, as tentativas de Bowden de afastar Cady por meios legais vêem-se repetidamente frustradas. Se aceitarmos que o plano (simbólico) da Lei é o do superego, como pretendia Lacan, então temos que Cady, tendo a lei do seu lado, representa também o ideal do ego ("Ichideal") para Bowden, visto que pode ser tomado como o modelo com o qual ele se quereria conformar (na medida em que Bowden quer também escapar à censura da lei). Assim, Cady consegue atingir a posição - à partida impossível - em que pode dar vazão aos impulsos do id (de Bowden), escapando, porém, à censura da lei, sendo ego ideal e ideal do ego ao mesmo tempo. Concretiza também assim, de certo modo, a velha suspeita de que o superego se vale das energias do (plano inconsciente do) id, só que em Cady o superego parece satisfeito de tal modo que não existe qualquer ataque virado para o próprio sujeito.
Na versão original de 1962 (J. Lee Thompson), aproximamo-nos muito mais do conto do Capuchinho Vermelho no que toca à relação entre Sam Bowden e Max Cady - que podemos espelhar, como sugeri, na relação entre o Caçador e o Lobo. Salientou Bettelheim a oposição nesta última relação: "the dangerous seducer who, if given to, turns into the destroyer of the good grandmother and the girl; and the hunter, the responsible, strong and rescuing father figure". Esta oposição entre o Lobo (Cady, obviamente) e o Caçador (Bowden), como foi dito, é muito mais vincada no primeiro filme. Tudo no Cady de Robert Mitchum é reprovável ou repulsivo e tudo no Bowden de Gregory Peck é (apresentado como) legítimo ou, pelo menos, justificado. Mesmo os seus nomes (Sam - Max) são quase a inversão um do outro. Mas aquela oposição é muito mais dúbia no filme de Scorcese.
Quer isto dizer que a separação entre Bowden e Cady é mais efectiva no primeiro filme do que no segundo? À primeira vista, é isso mesmo que sucede: por contraposição ao antagonismo entre os dois na versão original, encontramos uma miscelânea, uma mistura entre as duas figuras (i. e., uma diluição da fronteira entre ambas), no remake e assim a distinção entre eles parece mais difícil. Veja-se que Bowden está aqui longe de ser o justo inocente que Peck havia representado no primeiro filme: trai e mente à mulher, trata a colega de trabalho e amante como mero objecto descartável de satisfação de desejos, encomenda o espancamento de Cady (muito mais incompreensível aqui que no primeiro filme), não cumpre os deveres legais e deontológicos da sua profissão (mesmo que com a "boa intenção" de garantir a condenação de Cady), etc. Por outro lado, não podemos evitar, ainda que com desconforto, reconhecer razão a Cady quando se sente injustiçado por Bowden não o ter representado como devia ter feito, quase sentimos a dor física a que é sujeito no espancamento cobarde de que é vítima (se bem que depois até saia daí vitorioso) e é claro para todos (e sobretudo para Bowden) que Cady entende muito melhor Danielle (os seus medos, as suas preocupações, os seus desejos) do que o pai.
A maior distinção entre os dois que a oposição verificada no primeiro filme parece sugerir é, porém, meramente aparente. Num dos contos do Padre Brown, "The Duel of Dr. Hirsch" (G. K. Chesterton), há também dois homens – Hirsch e Dubosc – que em tudo se opõem. Ora, para o Padre Brown, é precisamente essa oposição perfeita que impede que os dois homens alguma vez se encontrem:
"They will never meet. (...) They are the opposite of each other, (...) They contradict each other. They cancel out, so to speak. (...) These opposites won't do. They don't work. They don't fight. If it's white instead of black, and solid instead of liquid, and so on all along the line--then there's something wrong, (...). One of these men is fair and the other dark, one stout and the other slim, one strong and the other weak. (...) Things made so opposite are things that cannot quarrel."
A solução do conto é clara: dois homens que em tudo se opõem só podem ser a mesma pessoa. E é precisamente essa conclusão que não podemos evitar quando atentamos no momento culminante do primeiro filme, em que Bowden tem Cady à mercê e acaba por não disparar a arma, preferindo vê-lo fechado numa prisão. É aí que, repetindo Bowden exactamente as mesmas palavras que Cady antes de lhe dirigira, percebemos que eles afinal não se distinguem. E, por paradoxal que pareça, é precisamente a oposição flagrante entre eles que mais nos confirma essa indistinção. Dito ainda de outro modo: dois homens que são o inverso um do outro não passam do mesmo homem a ver-se ao espelho.
Scorcese aprendeu bem a lição do Padre Brown: para fazer funcionar o antagonismo entre Cady e Bowden, teve de os tornar mais parecidos. Não há nada mais diferente que o parecido. E não há nada mais igual que o inverso. O Cady de Nick Nolte e o Bowden de Robert De Niro são, afinal, muito semelhantes e, por isso, fundamentalmente diferentes.
A maior distinção entre os dois que a oposição verificada no primeiro filme parece sugerir é, porém, meramente aparente. Num dos contos do Padre Brown, "The Duel of Dr. Hirsch" (G. K. Chesterton), há também dois homens – Hirsch e Dubosc – que em tudo se opõem. Ora, para o Padre Brown, é precisamente essa oposição perfeita que impede que os dois homens alguma vez se encontrem:
"They will never meet. (...) They are the opposite of each other, (...) They contradict each other. They cancel out, so to speak. (...) These opposites won't do. They don't work. They don't fight. If it's white instead of black, and solid instead of liquid, and so on all along the line--then there's something wrong, (...). One of these men is fair and the other dark, one stout and the other slim, one strong and the other weak. (...) Things made so opposite are things that cannot quarrel."
A solução do conto é clara: dois homens que em tudo se opõem só podem ser a mesma pessoa. E é precisamente essa conclusão que não podemos evitar quando atentamos no momento culminante do primeiro filme, em que Bowden tem Cady à mercê e acaba por não disparar a arma, preferindo vê-lo fechado numa prisão. É aí que, repetindo Bowden exactamente as mesmas palavras que Cady antes de lhe dirigira, percebemos que eles afinal não se distinguem. E, por paradoxal que pareça, é precisamente a oposição flagrante entre eles que mais nos confirma essa indistinção. Dito ainda de outro modo: dois homens que são o inverso um do outro não passam do mesmo homem a ver-se ao espelho.
Scorcese aprendeu bem a lição do Padre Brown: para fazer funcionar o antagonismo entre Cady e Bowden, teve de os tornar mais parecidos. Não há nada mais diferente que o parecido. E não há nada mais igual que o inverso. O Cady de Nick Nolte e o Bowden de Robert De Niro são, afinal, muito semelhantes e, por isso, fundamentalmente diferentes.
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