Plínio, o Velho, conta que Zêuxis e Parrásio entraram numa competição para ver qual deles era o maior dos pintores.
Zêuxis pintou um cacho de uvas tão perfeito que os pássaros, convencidos de que as uvas eram verdadeiras, lançaram-se contra a pintura.
Os pintores deslocaram-se então à casa de Parrásio para verem a pintura deste. Parrásio pediu a Zêuxis que afastasse a cortina e contemplasse a sua obra. Quando Zêuxis estendeu a mão para fazer isso mesmo, percebeu que a própria cortina era a imagem pintada.
Reconhecendo-se enganado, Zêuxis admitiu a derrota.
A vitória de Parrásio sobre Zêuxis mostra que a ilusão preferida ou desejada é aquela de que algo existe (por detrás da cortina), algo que não sabemos, porém, o que é.
A ilusão de Zêuxis perde, portanto, porque ela passa por fingir algo que se está mostrar: o que se finge existir são as próprias uvas. O que se esconde é a irrealidade do objecto.
Com a ilusão de Parrásio trata-se antes de sugerir que existe algo (ou a possibilidade de existir algo) que, na verdade, não está lá. Esta ilusão é a vencedora porque inventa um segredo.
É claro que a cortina de Parrásio é ilusória e, de facto, não há segredo nenhum. Mas o importante é a sugestão de que algo se oculta: também com um segredo verdadeiro não sabemos o que se esconde. Este não saber é que alimenta a curiosidade – mas se assim é, tal significa que o que está do outro lado é indiferente, e, portanto, é o que menos importa (se é que importa de todo): importância tem apenas o próprio segredo, o estar escondido; o jogo essencial faz-se entre o esconder e o aliciar o véu para conseguir fazê-lo cair.
De certo modo, a ilusão de Zêuxis é mais honesta, pois não sugere estar a esconder nada, não promete nenhum objecto misterioso. Ela exibe tudo o que tem: a aparência do objecto. Com a ilusão de Zêuxis, o que engana o observador são os seus próprios olhos, não tanto a imagem, visto que esta se oferece como o que é: uma imagem.
Neste sentido, a ilusão de Parrásio parece traiçoeira, já que é ela a enganar o observador. E fá-lo na medida em que o transforma em investigador: a imagem da cortina oferece-se como segredo. Não se oferece como a imagem de um objecto, mas sim como a ocultação de um objecto (ou, porventura, como ocultação da imagem de um objecto).
Assim, quando ambas as ilusões são desmascaradas, o que desilude na de Zêuxis é o facto de o objecto exibido não existir. Mas o observador deve apenas censurar-se a si mesmo, visto que não pode alegar que o quadro prometeu outra coisa que não a imagem do objecto – não se trata, aliás, de uma promessa, dado que a imagem já está efectivamente a oferecer-se como aquilo que é.
É por isso, no entanto, que a ilusão de Zêuxis é falsa, pois ela não engana (que é o que deveria fazer, enquanto ilusão): é o observador que se engana a si mesmo.
Já o quadro de Parrásio desilude (quando a ilusão é desmascarada) porque o objecto ocultado não existe, e não por não existir o objecto exibido (a cortina). Ou melhor: o que verdadeiramente desilude não é tanto o facto de não haver um objecto do segredo (uma coisa ocultada – ou a ocultada imagem de uma coisa), mas o próprio facto de não haver segredo, de este, afinal, não ser verdadeiro.
A aparência do segredo é a da proibição, mas a sua força é a do apelo para a violação da proibição, para o rasgar do véu que se esconde. O segredo vive como promessa.
O quadro de Parrásio exibe uma promessa. Na medida em que não há segredo, essa promessa revela-se falsa e, assim, a ilusão é verdadeira, porque engana (a verdade da ilusão é enganadora).
Em suma, por ser honesta, a ilusão de Zêuxis é falsa; por ser enganadora, a ilusão de Parrásio é verdadeira. Por isso, a última é a vencedora.
Esta vitória justifica-se também de uma outra perspectiva.
A ilusão de Zêuxis não é aquela de que o humano se alimenta. Ela serve apenas os animais, não o homem – por isso, na lenda, ela engana os pássaros, não uma pessoa. Trata-se da ilusão de que as coisas existem, de que o mundo material é verdadeiro, tem essência – em suma: de que o objecto está realmente aí.
Esta ilusão cartesiana, baseada no engano sobre a existência das coisas a partir da sua representação não é, porém, o que faz viver o humano. Porque o que o cativa não é tanto a possibilidade de o objecto exibido não existir, mas sobretudo a de existir um objecto oculto. É nisso, aliás, que se baseia o jogo da sedução: na promessa do objecto oculto. O que verdadeiramente atrai o homem não é a nudez exibida que não existe, mas sim a que pode ou não existir escondida pelo vestido.
O que move o homem, no fundo, é esse perverso desejo kantiano de espreitar por debaixo das saias da realidade para ver a coisa-em-si (para falar como Jean-Baptiste Botul, o filósofo inexistente). Não tanto saber se as coisas existem ou não, mas sim se algo (por definição, Deus) existe por detrás delas.
O que caracteriza então o humano é este jogo do segredo. Um animal que espreita uma toca quer a presa que lá se esconde, quer a coisa-em-si. O homem não. O homem que espreita o interior de uma casa excita-se e deleita-se com o próprio segredo, com o facto de estar a desvendar um segredo – porque desvendar o segredo é atravessá-lo, é passar por ele, penetrá-lo. É aí, na penetração do esconderijo, que está o prazer humano.
É por isso que na ilusão de Parrásio é uma pessoa que é enganada, já não um bicho: é porque é esta ilusão que verdadeiramente atrai as pessoas. É a ilusão de um segredo. Por outro lado, é bem significativo que a pessoa enganada seja precisamente Zêuxis: é o próprio autor da ilusão não-humana a abandoná-la para aceitar a ilusão verdadeiramente humana.
Por fim, a ilusão de Parrásio talvez não seja tão traiçoeira quanto isso. É que ela representa a promessa de que vive o segredo (o segredo vive da promessa que seduz, tal como a sedução vive do segredo que promete). Se pensarmos que o homem tem prazer, não tanto na obtenção da coisa-em-si, mas antes na vivência do próprio segredo, então a ilusão de Parrásio está ao serviço do homem: ela oferece uma cortina fechada e, com isso, um segredo, mas impede que o segredo morra. A cortina não pode abrir-se (seria esse o único modo de o segredo morrer) e, por isso, o segredo continuará vivo.
Podemos pensar que este estado perpétuo de prazer, se é verdade que nos impede de passar para um além-do-prazer e, portanto, impede a destruição do segredo (do próprio prazer), também é verdade que não deixa de ser uma posição aquém do clímax, na medida em que se resume a uma contemplação do segredo que se exibe adiante.
Poderíamos dizer, portanto, que o que verdadeiramente queremos não é deter-nos neste momento de prazer morno, expectante, prazer da curiosidade, prazer do sofrimento de não saber. O que queremos é antes o prazer do momento culminante do desvendamento do segredo, do atravessamento, da penetração do segredo. O que procuramos prolongar é esse pico, esse culminar, não o momento expectante que o antecede.
Só que a competição entre Zêuxis e Parrásio é uma competição entre ilusões. Se a pintura de Parrásio possibilitasse realmente aquele atravessamento, deixaria de ser uma ilusão (de um segredo) e passaria a ser um segredo real (que, como tal, se poderia desvendar). Parrásio teria feito batota, portanto.
E talvez seja de preferir, no fim de contas, a ilusão. É que a história do humano não se faz da descoberta da verdade das coisas, mas da procura por essa verdade. Ao fim de milénios, não sabemos ainda nada sobre a verdade das coisas – e pode mesmo não haver nada para saber, o que não retira valor humano nenhum à procura.
O humano não está no encontro de Deus, mas sim na procura de Deus. O desvendar do segredo pode ser o culminar da procura humana. Mas o que é humano é a procura. E é essa a realidade da ilusão de Parrásio.
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