O episódio "Eye of the beholder" (Douglas Heyes), da série The Twilight Zone, conta a história de uma mulher (Janet Tyler) que acaba de ser sujeita à décima-primeira tentativa de "correcção" do seu rosto. A sua cabeça está coberta de ligaduras, mas os diálogos com o médico e as enfermeiras permitem-nos perceber que ela é um monstro disforme e que se mais este tratamento falhar, ela terá de ser afastada para viver numa comunidade com outras pessoas deformadas como ela. É isso mesmo que vem a suceder, mas quando lhe são retiradas as ligaduras percebemos que esta mulher corresponde grandemente ao ideal de beleza a que o espectador está habituado – ao contrário do pessoal do hospital, cujos rostos assemelham as pessoas a suínos.
O artigo "The treachery of the commonplace", de Mary Sirridge, parte da citação de uma espectadora sobre o episódio, em que esta mostra a sua admiração ao descobrir que a protagonista era "linda" e os enfermeiros "pareciam porcos". A intenção do episódio parece ser, precisamente, a de produzir este efeito-surpresa. A mensagem última seria também óbvia: os conceitos de beleza e fealdade envolvem a relatividade fatal do ponto de vista. Janet parece horrível porque vive numa sociedade em que o padrão de beleza é referido ao rosto mais comum e este é, no presente caso, o dos enfermeiros. O espectador, porém, tem a distância que lhe permite perceber essa relatividade. Será apenas a distância do espectador, todavia, o que lhe permite ter aquela sensibilidade? E corresponderá essa sensibilidade a uma posição de verdadeira sabedoria, de verdadeiro discernimento?
Em bom rigor, a espectadora só percebeu a dita relatividade porque começa por ver Janet como sendo bonita. É este ponto de partida que gera a contraposição em relação à visão dos médicos. Isto quer dizer, porém, que a relatividade das apreciações só é percebida a partir de uma apreciação absoluta: para compreender que a apreciação que os enfermeiros fazem está viciada de relatividade, eu tenho de partir de uma apreciação que está, ela mesma, viciada de relatividade; só que a minha apreciação, por definição, nunca é por mim assumida no princípio como relativa. Porque, como explicou Kant, um juízo estético, sendo, por definição, subjectivo, reclama sempre a universalidade. O que conduz aqui à armadilha do ponto de vista: eu consigo colocar-me atrás dos espectadores e assim perceber como é relativa a sua apreciação, consigo transcender os seus pontos de vista; mas nunca consigo colocar-me atrás de mim mesmo, nunca consigo transcender a minha perspectiva.
A associação entre estética e moral, sugerida por Sirridge na sua leitura do episódio, de resto, é aqui pertinente: como explica Sartre, quando defendo algo como sendo bom, defendo-o como universalmente bom. Do mesmo modo, os enfermeiros impõem como universalmente válida a sua visão sobre o que é "esteticamente aceitável". Ora, Sirridge alerta então para um possível efeito perverso na mente do espectador, que pode ser levado a pensar: "mas do mesmo modo que a posição de quem quer impôr um padrão de beleza é inadmissível – pois não podemos impor aos outros o nosso próprio padrão de beleza –, não será igualmente inadmissível impor aos outros o meu modelo liberal de tolerância e diversidade?"
Sirridge tenta resolver a questão dizendo que na verdade a posição liberal não é uma posição moral entre outras, que tal como todas as outras não pode ser imposta em absoluto, sob pena de tirania. Sirridge diz que se trata antes de uma perspectiva meta-moral, uma perspectiva, se quisermos, que não deve ser situada entre as outras no discurso moral, mas sim no estabelecimento das próprias condições do discurso.
Esta resposta, no entanto, falha, pois a posição liberal, na verdade, deve ser situada (mesmo que num lugar suis generis) dentro do discurso moral. Como já alertou Dworkin, o compromisso com valores como a liberdade de expressão ou a tolerância face à diversidade fazem com que a posição liberal não seja verdadeiramente neutra. Significa isto que tem razão aquele espectador temido por Sirridge, que conclui que não pode defender como universalmente válida a sua posição liberal e tem de aceitar as outras posições, incluindo as que querem impor um padrão estético? Nada disso. Isto apenas significa o que se disse: que a posição liberal é situada entre as outras no discurso moral. Mas esse discurso é construído argumentativamente; e a posição liberal poderá e deverá ser defendida contra as outras (ou seja, não poderá ser imposta a priori). E deverá porque, como se referiu, defender um valor implica propor a sua universalidade.
Onde nos deixa isto em relação à questão estética? À primeira vista, seríamos tentados a dizer o seguinte: a associação platónica entre o bom e o belo parece errada, pois afinal, como vimos, as perspectivas morais devem ser colocadas num plano de discussão argumentativa, enquanto as concepções estéticas, pelo contrário, não parecem passíveis de se adequar a esse plano. Não é imediatamente claro, porém, o que daqui resulta: com efeito, podemos pensar primeiro que isso significa que não há razões propriamente ditas para algo me parecer belo, pelo que a minha concepção estética não tem de ser justificada, por não ser sequer passível de justificação. O efeito perverso disto, no entanto, aparece inevitavelmente com a generalização de um dado padrão estético: a verdade é que certos modelos tendem a ser aceites por maiorias como paradigmas de beleza, que deste modo não carecem de ser explicados.
Não tem, porém, de ser assim: isto pode revelar-se apenas, afinal, uma perspectiva infantil, não educada, das concepções estéticas. O sentimento do belo não tem de traduzir simplesmente a contemplação ausente da imagem. Aquele que aprecia sem valorar é apenas um olho e nada mais. É possível uma apreciação justificada, valoradora, baseada nas experiências pessoais e em juízos sustentados nas concepções morais do observador e no que elas lhe dizem sobre a pessoa por detrás do rosto. Este observador mora atrás dos seus olhos (pois pensa, valora) e à frente deles (pensa e valora o que vê).
Nesta perspectiva, a expressão "beauty is in the eye of the beholder" mostra-se trágica e ironicamente contrariada: a beleza está em todo o lado, excepto nos olhos de quem a vê: está atrás dos olhos (explica-se pelas experiências de quem olha e pelos seus valores) e diante deles (esses elementos só existem na apreciação do que é visto e nas qualidades que aí se descobrem). Os olhos são, afinal, um não lugar, um filtro; são um lugar onde a beleza não existe, ainda que para nascer ela tenha de passar por eles. Se a beleza está nos olhos de quem a vê, então está apenas de passagem, pois não é aí que ela mora.
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