No episódio "The case of Mr. Pelham", da série Alfred Hitchcock Presents, Albert Pelham é um contabilista preocupado com a existência de um possível duplo que parece estar a querer tomar-lhe o lugar. Esse outro apodera-se dos seus hábitos e das suas rotinas e como que começa a levar a cabo o seu quotidiano por si. Em conversa com o seu psiquiatra, Pelham acaba por ter a ideia de fazer mudanças. Muda a assinatura, compra uma nova gravata. O outro não desaparece, porém, e, finalmente, Pelham e ele encontram-se frente a frente, perante o olhar espantado do seu mordomo. Quando este é instado por ambos a apontar qual deles é o verdadeiro, o duplo chama a atenção para a gravata que Pelham traz: uma gravata que o verdadeiro Albert Pelham nunca compraria. O mordomo dá-lhe razão e o "nosso" Albert Pelham perde, ao que tudo indica, a batalha.
Embora pareça haver simplesmente dois Pelhams, uma leitura mais cuidada poderá levar-nos a concluir que o duplo não é verdadeiramente um "outro". Albert Pelham é, como o psiquiatra o descreve (e o próprio confirma), uma criatura de rotinas, de hábitos regulares, etc. Através do seu quotidiano uniforme, Albert Pelham criou um personagem: o personagem de si mesmo. Este personagem é a encarnação do seu ser-em-si (v. Sartre, L'Être et le Néant). Com efeito, este outro Albert Pelham é o que é e não pode ser outra coisa - não tem outras roupas, não tem outros hábitos, porque só aqueles cabem ao seu papel.
Pela criação deste personagem, Pelham asfixiou-se como ser-para-si e, assim, afogou a sua liberdade. Identificou-se de tal modo com as suas rotinas que negou o nada que o separava de si mesmo, apagando-se como consciência capaz de se transcender a si próprio. Ele deixa assim de poder dizer que, como qualquer ser-para-si, é o que não é e não é o que é.
Quando Pelham começa a notar que alguém – que não ele – leva a cabo as suas rotinas no seu lugar, isto não é mais do que o despertar do seu para-si adormecido, o retorno da capacidade de transcendência que ele fizera desaparecer. Basta lembrar que a consciência de si mesmo é, afinal, uma instância da transcendência que nós somos: o simples facto de eu me poder ter a mim mesmo como objecto (da minha consciência) separa-me de mim próprio, pois eu sou a consciência de mim. Assim, o que acontece com Pelham não é mais do que a tradução física e geográfica dessa experiência: ele separa-se literalmente de si mesmo ao retomar a sua consciência, i. e., ao voltar a ser um ser-para-si. Essa separação é inevitável, pois nada pode ser em-si e para-si em simultâneo. Foi Pelham, portanto, que se condenou ao criar o seu personagem. A morte da liberdade de Pelham pelos hábitos traz assim uma confirmação existencialista da sentença kantiana (contra Aristóteles): os hábitos impossibilitam a liberdade.
É tarde demais para Pelham. Já não tem corpo, já não tem facticidade para poder concretizar a sua liberdade. Toda a facticidade que lhe poderia caber é agora do "outro", i. e., do seu em-si. Por isso, o gesto de liberdade (a mudança de gravata) está condenado ao fracasso. Se Hitchcock não fosse tudo menos moralista, esta história poderia ser um alerta para os perigos da má-fé: se insistirmos na identificação connosco mesmos e no desejo de nos tornarmos um em-si, corremos o risco de morrermos como liberdade. Não basta sermos livres: é preciso não esquecermos que o somos.
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