E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A armadilha - "El Soborno" (Jorge Luis Borges)

  No conto "El Soborno", de Jorge Luis Borges, Ezra Winthrop, um professor universitário, tem de escolher, entre dois candidatos (Herbert Locke e Eric Einarsson), quem vai ter a oportunidade de participar num congresso a realizar em pouco tempo. Einarsson publica então um artigo que, mais ou menos indirectamente, deixa Winthrop mal visto, impugnando aí o seu método pedagógico. Preocupado em ser imparcial, Winthrop escolhe Einarsson. Este visita depois o professor para lhe explicar que exagerou no seu artigo precisamente com a intenção de conseguir o voto de Winthrop, pois conhecia a preocupação deste com a imparcialidade e sabia que ele acabaria por escolhê-lo para ter a certeza de não tomar uma decisão motivada por vingança.
  
  Se Einarsson não tivesse publicado o artigo, a decisão de Winthrop teria sido outra? O conto não o esclarece, mas isso não é o mais importante, pois uma coisa é certa: diferente ou não no seu resultado, a decisão teria tido uma motivação diversa. Não é a mesma coisa, para usar um exemplo de Sartre (L'être et le néant), ficar em casa porque está a chover ou porque nos tentaram convencer a sair. A decisão de optar por Einarsson apenas e só porque este seria um candidato mais adequado teria sido também bastante diferente. De que modo?
  A questão obriga-nos a perceber porque acontece fazermos sem qualquer preocupação muitas coisas que, tivesse alguém tentado convencer-nos a fazê-las, teríamos resistido a levá-las a cabo, ou não as teríamos feito de todo. Segundo Sartre, a diferença está em que no primeiro caso eu decido agir de certo modo determinando-me a mim mesmo pela consideração das consequências dos meus actos. No segundo, as minhas possibilidades de agir assim ou de modo diverso apresentam-se-me como transcendidas e fixadas por uma liberdade que não é a minha, que as prevê e previne ao mesmo tempo. Experimentamos então aí a liberdade do outro através da nossa "escravatura": estamos definitivamente lançados no mundo como objectos perante o olhar do outro, pelo qual experimentamos esse outro como sujeito livre e consciente O outro não é, em suma, um qualquer obstáculo material (que eu poderia ultrapassar projectando-me em direcção a outros possíveis): é, isso sim, uma subjectividade inapreensível por mim, uma verdadeira liberdade.
  Parece assim que a nossa relutância em fazer aquilo que teríamos feito de boa vontade, não fora um outro ter aparecido e tentando convencer-nos a fazê-lo, não passa afinal de uma tentativa instintiva de recuperação da nossa (experiência de) liberdade; de uma vontade de assegurarmos a nós mesmos que as nossas possibilidades são ainda caminhos de verdadeira liberdade, não fixadas pela subjectividade de outrem. O que a história de Winthrop ilustra, porém, é que esta é uma armadilha inescapável e que o máximo que conseguimos é cair na ilusão de que conseguimos sair. A decisão de escolher Einarsson apesar do artigo pode ser simplificada como reacção a uma situação criada em que Winthrop dá por si num contexto em que é expectável que ele escolha Locke (em que ele se sente "empurrado" a fazê-lo). E daí a sua opção. O facto de esta ser afinal o resultado previsto e desejado por Einarsson apenas reforça, porém, a evidência: também esta reacção aparece, afinal, como fixada e transcendida pelo outro.
  Não havia assim escapatória para Winthrop, o que não quer dizer, todavia, que ele tenha ficado sem vingança. Depois da explicação de Einarsson, Winthrop riposta-lhe que, se é verdade que cedeu à vaidade da imparcialidade, também é verdade que Einarsson mostra vaidade ao relatar-lhe o seu plano e a respectiva execução. Que é isto senão uma exibição de liberdade perante Winthrop? E no entanto, como prova a apreciação de vaidade de Winthrop, Einarsson cai na mesma armadilha: pois não faz mais do que exibir-se como mero objecto perante o olhar do professor.
  Esta é a única vingança a que Winthrop poderia aspirar. E por ter tido a oportunidade de a concretizar, pôde despedir-se sem raiva de Einarsson, com um aperto de mão entre iguais.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.