E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 31 de dezembro de 2017

O amante sombrio

 No livro El amor en los tiempos del cólera (Gabriel García Márquez), Florentino Ariza apaixona-se por Fermina Daza. Apesar de chegarem a noivos, ela acaba por rejeitá-lo, tomando por ilusão errónea a afeição que lhe dedicara. Fermina casa com o médico Juvenal Urbino e vivem juntos até à morte deste. Florentino segue amando Fermina e, enquanto espera a morte de Urbino, deita-se com muitas centenas de mulheres ao longo dos anos. No fim da vida, consegue finalmente juntar-se à viúva Fermina.

  Quem é Florentino Ariza? Provavelmente, nada o captura tão bem como a expressão com que Fermina ganha consciência do motivo por que o rejeitou: ele não é bem uma pessoa, é mais uma sombra, a sombra de alguém que nunca ninguém conheceu (“«Es como si no fuera una persona sino una sombra». Así era: la sombra de alguien a quien nadie conoció nunca.”). E é como se ele passasse mais de 50 anos dedicando-se a provar a verdade da sentença.
  Nenhum dos participantes na conversa em que Fermina tem esta revelação consegue trazer à memória a imagem de Florentino. Ele parece transparente, ou no máximo translúcido, alguém que podemos ver, mas não podemos fixar. Mais de 600 amantes teve Florentino. Algumas – muito poucas – chegaram a gostar muito dele, mas nenhuma o conheceu. Nenhuma chegou a saber, nomeadamente, da sua paixão por Fermina Daza. Mesmo América Vicuña, a quem tenta convencer de que vai casar, não consegue acreditar no que ele diz. E não se deve tal incredulidade apenas à idade avançada de Florentino, mas precisamente ao facto de ela não conseguir associar-lhe um gesto daqueles. Tivera ele falado de outros afectos, noites de sexo com outras mulheres, e América – talvez desiludida ou enciumada – não teria tido grandes problemas em acreditar. Mas o casamento parece um projecto para outra pessoa que não Florentino, não, pelo menos, o Florentino que ela (não) conhece.
  Tarefa difícil, a de conhecer Florentino, ou mesmo a de ir ao seu encontro. Sempre encolhido, escondido em si mesmo, ele não se abre à descoberta. E, de resto, é legítimo duvidar que algo exista para ser encontrado. A dada altura, Florentino é contactado separadamente por um moço e uma moça, que lhe pedem que redija as cartas de amor que trocam entre si. Nenhum deles sabe que é Florentino quem escreve as cartas do outro. A relação progride, as cartas produzem o efeito pretendido. Os jovens vivem e desenvolvem assim o seu amor através de Florentino Ariza, mas isso não parece provar que este seja um elemento vital, que ele faça pulsar a relação dos outros; ao invés, demonstra que, para lá de transparente, ele é em certa medida imaterial: os jovens amam-se através dele e isso diz-nos que ele é, não um corpo, mas um mero lugar de passagem. Mais tarde, já casados, os correspondentes agradecem reconhecidamente ao autor das cartas que usaram para se apaixonarem. Mas é o agradecimento que dedicamos a um espírito, a uma entidade em que acreditamos, não pela experiência, mas por um acto de fé.
  Podemos fixar Florentino nalgum ponto? Sem dúvida, o único que se oferece é a sua paixão por Fermina Daza. Ele mesmo marca como momento decisivo da sua vida aquele em que a viu pela primeira vez e se apaixonou. Esse amor que brotou não chega, porém, a fazer florescer nele uma pessoa por inteiro, pois está décadas aguardando a oportunidade de se completar: Fermina rejeita-o e não o aceita senão mais de 50 anos depois. E é como se, não podendo o amador transformar-se na coisa amada – devido à rejeição –, ele se deixasse ficar à espera dela para poder transformar-se, para poder chegar a ser uma pessoa por completo, a pessoa que está destinado a ser. De cada vez que se deita com uma mulher pela primeira vez, ele não consegue, por impotência, consumar o acto sexual, porque em cada uma dessas vezes ele repete o projecto adiado de se deitar pela primeira vez com Fermina (“Le ocurrió siempre la primera vez, con todas, desde siempre, de modo que había aprendido a convivir con aquel fantasma: cada vez había tenido que aprender otra vez, como si fuera la primera.”). Veja-se, de resto, o contraste nas suas atitudes perante a morte: na fase em que ainda é correspondido no seu afecto por Fermina, o pai desta ameaça disparar sobre ele se ele persistir em perseguir a filha. Florentino não se perturba e oferece literalmente o peito às balas, assegurando que “no hay mayor gloria que morir por amor”. Anos mais tarde, ao invés, enquanto espera pela morte de Juvenal Urbino, assusta-se com a ideia de que Fermina, ou ele mesmo, poderiam morrer antes do médico. Pecaríamos por incompreensão se julgássemos que uma diferença simples de coragem e medo explica a mudança de postura: no primeiro momento, Florentino, correspondido, tem tudo (mesmo que ainda só em perspectiva) para se tornar um homem, uma pessoa em integralidade. No segundo momento, pelo contrário, privado do que o completa, é só um projecto adiado de pessoa e teme desvanecer-se sem ter oportunidade de se realizar.
  Enquanto isso não acontece, quem ou o que é Florentino? A melhor imagem daquilo em que ele se transforma é oferecida pela mulher que lhe leva a virgindade – e talvez não seja isto um acidente, se pensarmos que o amador, sem poder transformar-se na mulher amada, acabou por se tornar na mulher que primeiro lhe ofereceu um simulacro de amor. É essa figura fugidia – que o arrastou para uns lençóis fugazes e desapareceu de seguida sem mostrar o rosto – que lhe oferece a imagem que ele mostra às suas parceiras daí em diante: a de uma sombra, alguém que se lhes intromete na cama e desaparece sem elas nunca chegarem bem a saber quem é.
  Mas ser tal coisa é ser já alguma coisa. Florentino existe, tem uma presença e oferece histórias e casos a essas mulheres que se vão deitando com ele. Só que ele não é muito mais do que isso – não é muito mais que um amante da cabeça aos pés. Assume o papel de amante a tal ponto que não consegue sequer escrever cartas comerciais, transformando-as todas em cartas de amor (“... escribía cualquier cosa con tanta pasión, que hasta los documentos oficiales parecían de amor. Los manifiestos de embarque le salían rimados por mucho que se esforzara en evitarlo, y las cartas comerciales de rutina tenían un aliento lírico que les restaba autoridad.”). Amando mulheres sem rosto, mas nunca deixando de adorar o de Fermina, ele é um amante romântico na alma e ordinário no corpo, dramático no sofrimento e ridículo no prazer. Ou, nas palavras de uma das suas concubinas (Sara Noriega), “amor del alma de la cintura para arriba y amor del cuerpo de la cintura para abajo”.
  Resumido a um papel de amante, Florentino torna-se aquilo de que, no nosso desejo, gostamos (ou que gostamos de encontrar) na pessoa que amamos: precisamente o desejo dessa pessoa por nós, a dedicação que ela nos dirige; nas manifestações mais infantis ou patológicas, chegamos a ressentir a existência independente dessa pessoa, os caminhos de vida que ela se mostra capaz de percorrer sem nós. São esses caminhos que Florentino não tem: ele é um amante e nada mais, não é nada senão dedicação imediata às suas companheiras de leito e adoração fiel da sua amada distante. Quando sofremos com a independência do objecto amado, todavia, custando-nos o facto de não esgotarmos a subjectividade dessa pessoa, falhamos em perceber que é justamente essa subjectividade que nos transcende – essa pessoa que gosta de outras coisas, tem outras relações, vive para lá dos encontros connosco – a causa do nosso amor. Sem isso, não existiria verdadeiramente uma pessoa de quem gostar, pelo que é uma sombra o que desejamos quando desejamos alguém apaixonado por nós e nada mais. Daí a sugestão de que aquelas que mais desejam Florentino não desejam afinal mais do que a sombra de alguém que falta nas suas vidas. Assim acontece, por exemplo, com Olimpia Zuleta, a mulher que desejava um amante na sua vida que lhe permitisse escapar ao marido possessivo que acaba dando-lhe a morte: Florentino não foi mais que uma sombra para ela, a sombra onde ela deixou nascer escondida a liberdade que o marido lhe negava.
  Ainda nesta linha, é como se Juvenal fosse a outra parte, como se ele trouxesse afinal o conteúdo da pessoa que Fermina não pôde encontrar em Florentino. Quando se sugere que Juvenal é "el hombre contrario" em relação a Florentino, a ideia a reter é precisamente a de que aquele, sendo o inverso deste, tem tudo o que lhe falta. Ele não oferece a Fermina um amor apaixonado como o do seu primeiro pretendente – nem ela, aliás, tem a ilusão de amar o médico. Mas este é um homem cheio de feitos (e defeitos), cheio de realizações e de histórias, com uma carreira e um nome. Conhecido de todos e cheio de contactos e relações, Juvenal é a pessoa independente que actua como causa para o amor dedicado à pessoa amada. Só que não há amor apaixonado nele, e a mesma luz que nos mostra todos os seus predicados de homem grande permite-nos ao mesmo tempo perceber que ele não projecta a sombra de um amante.
  É essa sombra que encontramos na figura de Florentino. Não nos deve admirar que a única pessoa, para lá da mãe, a quem Florentino se propõe falar de Fermina seja Leona Cassiani. Pois esta é precisamente a única mulher de quem se tornou próximo sem sexo a juntá-los, e esta circunstância faz com que com ela ele esteja mais próximo de aparecer como pessoa independente, um homem para lá do papel de amante a que resume a sua vida em geral. Por isto ele quase se mostra a conhecer no que de mais essencial o constitui – a sua paixão por Fermina –, embora acabe por não conseguir fazê-lo, calando-se sobre o assunto. A sua mãe permanece, assim, a única mulher com quem falou sobre os sentimentos amorosos que o definem. Mas veja-se também o que sucede com ela: perde a razão e deixa de o reconhecer, indo ao ponto de deixar de se conhecer a si mesma. A crise de identidade é afinal um bom espelho da diluição da pessoa do filho no projecto adiado de pessoa em que ele se tornou.
  A dada altura, Florentino garante a Fermina que falou a sério toda a sua vida (“– Desde que nací -dijo Florentino Ariza -, no he dicho una sola cosa que no sea en serio.”). Se associarmos a seriedade e a gravidade ao peso, e este à presença – deixando o riso e a alegria para a descontracção, a leveza e o etéreo –, então fica sugerido o inverso do que vínhamos apontando. Pois vimos dizendo que Florentino peca por ausência e indefinição, mas ele de facto é grave, fúnebre até, com “su índole enigmática y su carácter sombrío”: é como se passasse o livro de luto pelo seu amor perdido, morto sem ter tido hipótese de nascer (e, de facto, no final vive-o como uma espécie de amor ressuscitado). Mas essa gravidade, esse peso, não se traduzem numa presença mais efectiva no reino da existência, e a razão é muito simples. É verdade que falta a Florentino o humor, a brincadeira, a leveza. Mas é erróneo pensar que estas vivem alimentando-se de si mesmas. O verdadeiro humor vive das coisas sérias: é com estas que se brinca. Só podemos tornar leve o que é pesado, porque só pode levantar voo o que tem os pés assentes na terra. Ora, é precisamente porque à seriedade de Florentino falta peso e presença que ele não pode chegar a ser leve e brincalhão: a sua leveza não é a da graça, mas sim a dos fantasmas. A única brincadeira de Florentino – ou, pelo menos, a única ocasião em que faz rir alguém – surge no momento em que se prepara para se deitar com Fermina e vai atirando para cima desta a roupa que vai despindo. Ora, isto é uma óptima confirmação do que acabamos de concluir: precisamente agora que ele ganha presença, que começa a completar-se ao encontrar Fermina, ganha peso verdadeiramente e pode, enfim, tornar-se leve: já pode brincar.
  Porque resolve agora Fermina aceitar Florentino? Que traz ele à sua vida? Lembremos o terrível medo da culpa que caracteriza Fermina desde criança: atormentada pelo “fantasma de la culpa”, sempre que este paira ameaçando-a (o que sucedia em situações em que algo mau acontecia e era preciso responsabilizar alguém), era de tal modo incapaz de suportar o sentimento que só se aliviava quando encontrava alguém a quem responsabilizar. Quando Florentino se apresenta diante dela depois da morte de Juvenal, ela explode numa censura furiosa contra ele. Talvez possamos explicar esta fúria sem razões precisamente através desse processo de descarga da culpa que ela não suporta sentir, de responsabilização pelos pensamentos que ela traz consigo e sente que não deveria. Quando finalmente se junta a ele, que faz ela, afinal, senão juntar-se a esse homem que pode culpar de tudo, que pode responsabilizar sem medos – o homem que, enfim, lhe há-de levar embora o fantasma da culpa? Ninguém melhor, com efeito, para carregar um fantasma do que alguém que foi um fantasma toda a vida. Fantasma para os outros, que dele pouco retinham, e fantasma até para si mesmo: lembre-se como teve de aprender a viver com “aquel fantasma” (o da impotência) que aparecia de cada vez que se deitava pela primeira vez com uma mulher.
  Feito um fantasma a maior parte da sua vida, Florentino tornou-se no fim o homem de que Fermina precisava. Esta não precisou de se tornar coisa nenhuma: foi sempre aquilo que lhe faltava para ele se completar. Nenhum deles evolui verdadeiramente até se encontrarem, mas o tempo que durou até esse momento foi afinal essencial para que a distância, tão grande, tornasse mais verdadeiro esse encontro tão adiado.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

O fantasma de capote


Krukiniksi

  No conto "O capote", de Nikolai Gógol, Akáki Akákievitch é um conselheiro titular de "um certo ministério" em Petersburgo. É um copista de processos, desprezado e gozado pelos colegas. O seu casaco velho e roto está já demasiado gasto para ser remendado, de modo que se vê obrigado a um grande esforço de poupança e privação para conseguir comprar um capote novo, o que consegue finalmente. O capote é-lhe, porém, roubado. O frio e as emoções nas tentativas de reavê-lo fazem com que Akáki adoeça gravemente e acabe por morrer. Volta, no entanto, como fantasma à procura do capote pelas ruas, não se satisfazendo até levar o da "personalidade influente" que recusara ajudá-lo e até o humilhara quando ele em vida lhe pedira auxílio.

  Quem é Akáki Akákievitch? A primeira resposta tem de ser a de que ele não é ninguém. Ignorado por todos os que não têm de conviver ou interagir com ele, passa facilmente despercebido em público. Apaga-se no seu trabalho a ponto de prosseguir com ele sem reagir às histórias inventadas sobre si que contam na sua presença, às perguntas trocistas que lhe dirigem ou às brincadeiras que o tomam por objecto. Só desperta quando as intervenções dos outros perturbam o seu labor – quando, por exemplo, lhe empurram a mão, impedindo-o de escrever. O que confirma o seu apagamento no trabalho mecânico que o satisfaz: sem conteúdo pessoal, identifica-se com a sua tarefa burocrática de tal modo que só se perturba quando é impedido de a prosseguir. Incapaz de aparecer à superfície da vida social, não consegue sequer entabular um discurso com frases propriamente ditas, limitando-o, na maioria dos casos, a preposições, advérbios e interjeições sem sentido. A criação não pode ter lugar no seu universo e mesmo o seu profissionalismo é limitado à cópia subserviente – sofre quando lhe atribuem alguma tarefa que vai para lá disso.
  Tão inexistente é Akáki que não nos deve admirar a sua habilidade para andar levemente na rua com o propósito de poupar a sola dos sapatos. Já em vida, com efeito, Akáki é um verdadeiro fantasma e, assim, é natural a sua capacidade de flutuar. Como também não surpreende a deambulação sem rumo que toma quando caminha no sentido oposto ao pretendido, distraído com o preço do capote que quer comprar, qual espírito inquieto sem rumo ou lugar de pouso para as suas preocupações.
  Mas Akáki não é um fantasma vivo apenas na ausência: também o é já nas assombrações. Quando finalmente reage a um colega que lhe perturba o trabalho, dirige-lhe uma censura ("Deixem-me, porque me fazem isso?") que persegue esse colega e lhe atormenta a consciência até ao fim da vida. Do mesmo modo, depois de o "homem influente" o despachar e humilhar, aquele sente remorsos e pesar pelo que fez, a ponto de buscar desligar-se das preocupações em distracções sociais que lhe esgotem a mente.
  Mesmo depois de ter o seu capote, Akáki não muda no essencial. Graças ao capote, aparece aos olhos dos outros, passa a ser visto. Mas continua a ser um fantasma dentro dele. A alegria por ter finalmente o que queria não é partilhada com ninguém nem tem qualquer exterioridade. Akáki solta apenas "risinhos de prazer íntimo". O seu júblio é puramente interior e mesmo quando os seus colegas o cercam para partilhar o seu contentamento pedindo-lhe uma festa, ele, envergonhado e atrapalhado, não é capaz de corresponder. É o chefe que finalmente se predispõe a organizar a celebração, mas Akáki começa até por recusar comparecer na festa em sua honra. Vê-se obrigado a ir, mas no meio da celebração não sabe o que dizer, onde pôr as mãos ou os pés: no seio das pessoas que conversam, riem e se divertem, ele não sabe o que deve fazer, porque não tem lugar no meio da gente.
  A arte de Gógol neste conto, tão simples e tão difícil de atingir, é a de revelar na comédia a tragédia. Akáki é patético na sua inépcia, miserável na sua humildade, inexistente nas suas limitações. Mas em tudo isso é digno, e é a nobreza que nunca o abandona que nos obriga a reconhecer-lhe o direito a ser levado a sério. Pensamos primeiro que Gógol nos propõe rir do ridículo Akákievitch, mas a aridez dos seus motivos, angústias e gestos leva-nos antes a sofrer a sua tragédia. Como lembra Nabokov (Lectures on Russian Literature), a diferença entre o cómico e o cósmico é de uma sílaba. Esta é a perspectiva com que Chesterton ("On running after one's hat") nos propõe olhar um homem a correr atrás do chapéu: à primeira vista, podemos achá-lo ridículo, mas tal correria não é mais humilhante do que perseguir a mulher amada. Muitas actividades humanas são cómicas e ridículas, mas tantas vezes são essas as mais valiosas ("...man is a very comic creature, and most of the things he does are comic—eating, for instance. And the most comic things of all are exactly the things that are most worth doing—such as making love. A man running after a hat is not half so ridiculous as a man running after a wife."). Dispomo-nos a rir do desgraçado Akáki a perseguir o seu capote – pela mesma razão por que achamos cómico um homem correr atrás do chapéu –, mas rir dele é troçar da dignidade frágil de quem combate o frio. Nada é tão frágil como uma criatura com frio e, por isso, um capote que nos aquece não nos torna mais humanos, apesar de nos fazer mais vistosos. Ao contrário, é precisamente quando perde o seu manto que Akákievitch mostra a sua dignidade – acordado pelo frio que o faz desesperar e pela injustiça do roubo que lhe leva o pouco que tinha. Akáki não se tornou uma pessoa por perder o capote; na verdade, é nos nossos olhos que a sua tragédia acorda a humanidade adormecida. Nabokov aventa que é como fantasma que Akáki aparece mais tangível, mais real ("his ghost seems to be the most tangible, the most real part of his being"). Mas é da fragilidade deste desgraçado que provém a força desse fantasma ("But Akaki Akakievich's ghost existed solely on the strength of his lacking a coat").
  O fantasma de Akáki volta porque a (in)justiça não morre e só os fantasmas podem castigar. Mas é na sua vida despojada e abandonada que encontramos aquilo que nos faz pulsar apesar do frio. Talvez Akákievitch tenha sido sempre um fantasma, mas é afinal por isso que ele pode cumprir tão bem o seu papel, o papel que cabe a todos os fantasmas: o de nos manterem acordados.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

O amor possível


  No livro The Age of Innocence, de Edith Wharton, Newland Archer está noivo de May Welland quando conhece a prima desta, a condessa Ellen Olenska. Ellen está de regresso a Nova Iorque, depois de uma escandalosa separação do seu marido, um conde polaco. A sua intenção de obter o divórcio ameaça cobrir de opóbrio toda a família e Newland é designado para a convencer a desistir do propósito, o que consegue. Newland acaba por dar por si apaixonado por Ellen e pretende deixar May, mas Ellen rejeita-o, por consideração pela prima, e aceita permanecer em Nova Iorque apenas na condição de os dois nunca consumarem sexualmente a atracção mútua. Newland acaba por casar com May, mas, preso no vazio de um casamento socialmente indicado e que vive apenas de convencionalismos, continua, mesmo anos depois, a desejar Ellen. Esta concorda finalmente com a consumação da relação, mas Newland vem a saber dias depois que a condessa pretende regressar à Europa. Decidido a deixar May para a seguir, Newland descobre que a mulher está grávida (motivo que levou Ellen a partir) e recua no seu propósito, ficando com May e o bebé. Dezenas de anos mais tarde, já depois de May morrer, Newland e o filho estão em Paris, e o filho, sabendo que a condessa Olenska vive ali e que é uma velha conhecida do pai, promove um encontro entre eles, sem suspeitar do significado que isso tem para Newland. Chegados ao local, Newland envia o filho à sua frente e senta-se a olhar a janela da condessa. Acaba por decidir ir embora sem a ver.

  Porque se foi Newland sem rever a condessa? À partida, tudo parece apontar a decisão de a visitar como óbvia. Num plano superficial, é uma velha conhecida, com quem não se zangou e que já não vê há muito tempo. Seria educado e simpático vê-la. Mesmo atendendo ao tipo de relacionamento que tiveram, a visita parece impor-se: os compromissos perante May e o filho impediram-nos de consumarem a relação amorosa que desejavam. Mas agora, com May morta e o filho independente, Newland está livre para ir ao encontro do amor da sua vida. Porque vai ele embora?
  É fácil ver a história de Newland como uma de privação. Preso a um casamento convencional e desprovido de paixão, viveu longe da mulher que o fazia sentir-se vivo e diferente daquilo que foi condenado a ser. A dada altura, conta-se como erigiu dentro de si mesmo uma espécie de santuário onde Ellen reinava ("he had built up within himself a kind of sanctuary in which she throned among his secret thoughts and longings. Little by little it became the scene of his real life"). É uma boa imagem da paixão; ele oferece-lhe um reino, o único que tem para poder dar: o seu mundo interior. Esse mundo que, por definição, lhe pertence, é na verdade dela, porque é ela que nele reina. Não obstante, é para lá que ele se muda. Porque uma vida de súbdito dentro de si mesmo é mais verdadeira que uma vida de senhor fora de si – desde que seja Ellen a rainha. E somos deixados a pensar que Newland está encurralado pela realidade de tal modo que só pode ser livre dentro de si mesmo: só em pensamentos, ideias e imaginação. Eis a prisão de Newland: sem qualquer espaço para viver segundo a sua vontade, vê-se obrigado a retirar-se para dentro de si próprio.
  Também Ellen se privou: convencida por Newland a desistir de se divorciar, manteve-se ligada a um marido que nenhum significado agradável tinha para ela. Também por convenções sociais, para não ferir os sentimentos de May nem prejudicar a posição social desta, e, finalmente, para não arruinar a possibilidade de uma educação convencional do filho de Newland, abdica de uma relação com este. Condenada a um permanente distanciamento que, nos seus momentos mais agradáveis, se traduziu num estranhamento, e, nos mais difíceis, num verdadeiro ostracismo, a condessa nunca foi verdadeiramente aceite pela sociedade – com a qual, de resto, verdadeiramente não se identificava – e nunca teve facilitado o caminho para realizar os seus desejos ou corresponder às suas paixões. Newland ofereceu-se, mas nunca pôde ser seu.
  É neste quadro que Newland e Ellen se apaixonam. Inconveniente e inoportuno amor, este, que nasce e insiste em crescer apesar das proibições e inconveniências. Nada o aconselha e tudo conspira contra ele, mas ele está lá e acomoda-se, apesar de sofrer com a impossibilidade de se realizar. Mas quando a possibilidade surge, Newland vai embora, e isto parece contradizer tudo o que foi dito.
  A explicação pode ser muito simples: talvez o amor entre os dois não tenha sido impedido de prosperar durante aqueles anos para agora ter a oportunidade de florescer; pode bem ser que, pelo contrário, esse amor já tenha prosperado nas condições adversas em que nasceu e viveu ao longo do tempo, condições que, afinal, o possibilitaram. O mundo em que eles viveram era puramente convencional, feito de acontecimentos que só o eram por referência a regras de etiqueta e comportamento socialmente definidas: grandes ocorrências como uma mulher levantar-se numa festa para ir falar a um homem em vez de esperar que este se deslocasse a ela, ou passear sozinha na sua carruagem, são exemplos de eventos sem qualquer significado que não o atribuído por aquelas regras. E essas regras convencionais definiam de tal modo o sentido dos actos de cada um dos membros da sociedade que mesmo a vontade de se rebelar contra elas estava logo à partida condenada a corresponder-lhes. Assim, por exemplo, quando Newland pede a May que apressem o casamento, insistindo em que o próprio facto de não ser habitual, de ser diferente, poderia servir como razão para o fazerem (“"As if the mere ‘differently’ didn’t account for it!" The wooer insisted.), ela recusa, bem disposta, realçando a sua "originalidade": "Newland! You’re so original!" she exulted. E perante esta resposta ele afunda-se desolado na consciência de que esta suposta originalidade é na verdade a confirmação da sua vulgaridade, visto ser o que é esperado de qualquer jovem na sua condição: His heart sank, for he saw that he was saying all the things that young men in the same situation were expected to say, and that she was making the answers that instinct and tradition taught her to make—even to the point of calling him original.” Quando tenta desesperadamente fazer algo efectivamente diferente, como fugirem para casar imediatamente, ela começa, pelo contrário, a aborrecer-se, sugerindo o carácter vulgar de tal empreendimento: “"We can’t behave like people in novels, though, can we?" / "Why not—why not—why not?" / She looked a little bored by his insistence. (...) [T]hat kind of thing is rather—vulgar, isn’t it?" she suggested”. Ou seja, enquanto pretende o mesmo que qualquer outro na sua posição, sendo, portanto, "vulgar", May nota-lhe a originalidade; quando, pelo contrário, Newland tenta algo verdadeiramente diferente, ela acha-o vulgar. A ironia é óbvia, e a sugestão essencial aqui é a de que a própria rebelião aparente contra as normas só é possível, afinal, ainda no quadro dessas mesmas normas, o seu significado só nasce a partir delas, são elas que a possibilitam.
  Assim é também, de certo modo, com a paixão entre Newland e Ellen. As normas sociais que a condicionam e sufocam são afinal o que constitui o seu quadro de possibilidade. Não se escolhe o lugar onde nascemos, os pais que nos educam ou o dinheiro que nos colocam à disposição. Crescemos nas condicionantes que nos moldam, nas "circunstâncias", como Ortega y Gasset lhes chamaria, que constituem as nossas hipóteses existenciais de actuação. Os nossos limites serão sempre também os das nossas circunstâncias. O amor entre Newland e Ellen teria existido se eles se tivessem encontrado num contexto social diverso? Talvez. Mas seria outro amor, não este que eles tiveram. As circunstâncias opressivas e conspiradoras que tanto o dificultaram e impediram deram-lhe a única possibilidade que ele teve de existir durante anos. Por isso ele foi só aquilo que foi e não outra coisa.
  Que aconteceu quando Newland se viu confrontado com a hipótese de ver a condessa de novo, agora livre de quaisquer freios sociais, de quaisquer compromissos maritais ou obrigações filiais? Achou-se perante um palco estranho, chamado a representar um papel que nunca foi o seu, que nunca poderia ser, porque desse papel ele não conhece fala alguma. O amor entre Newland e Ellen existiu nos limites apertados que tanto o constrangeram. Mas ele já não podia existir fora desses limites. Esta paixão que, sem saber, o filho lhe propunha, era outra coisa e não aquela que eles tiveram, uma história para outros personagens, para personagens sem a história destes dois. Newland e Ellen tiveram um amor que não pôde existir devido ao convencionalismo. Mas à janela da condessa ele percebe que é afinal fora desse convencionalismo que ele perde todo o sentido. Que enquanto esperou proibido de nascer viveu tudo o que poderia viver, sem nada mais para acontecer agora que poderia nascer finalmente.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

O outro jogo

  No conto "Ein Kampf", de Patrick Süskind, dois xadrezistas defrontam-se no parque perante o olhar atento de um conjunto de pessoas. Um dos jogadores, o mais jovem, é um desconhecido que atrai a curiosidade do público. Sem dizer ou fazer nada a não ser rolar o cigarro nos dedos e jogar, a sua serenidade, elegância e descontracção causam admiração nos espectadores. Algo de indefinível dá-lhe um magnetismo que deixa todos os outros seguros de que é um génio e vai sair vitorioso. O seu adversário – Jean –, pelo contrário, é conhecido dos presentes. Com cerca de setenta anos, provoca neles aversão, tanto pela aparência "medonha" como pelo facto de nunca ter sido derrotado. Todos estão seguros de que é chegada a hora. Mas a partida termina com a vitória de Jean, sem que ninguém tenha explicação clara sobre o que sucedeu. A verdade é que o estranho, que todos julgaram um génio, jogou como teria jogado um jogador muito fraco ou, pelo menos, muito inexperiente. A tal ponto que Jean – não fora a aura do desconhecido também o ter impressionado e o ter deixado ainda mais prudente –, em condições normais, teria acabado o jogo logo na primeira jogada, tal a inépcia do jovem. Mas depois da partida, quando volta sozinho para casa, Jean sente que nunca jogou tão mal e que sofreu uma derrota "terrível e definitiva". Convence-se disto de tal modo que resolve não voltar a jogar.

  Ao longo da partida, os espectadores vão reagindo a cada jogada. Todos os períodos de reflexão de Jean são alvo de impaciência e todos os seus movimentos são recebidos com desdém, fastio e menosprezo. São sempre explicáveis segundo uma lógica que é comum à da assistência, são sempre expectáveis, mesmo quando não esperados, sempre razoáveis, mesmo que nunca lhe dêem razão. De facto, apesar de nunca o terem vencido, não conseguem admirá-lo: não o tomam como jogador brilhante, capaz de rasgos inesperados e empolgantes. Não o vêem como substancialmente diferente, como especial, apesar de ele ganhar sempre. Jean joga como eles, só que melhor. Se vence é porque não comete erros – ou comete menos. Mas o seu jogo – seguro, cauteloso e eficaz – não empolga nem emociona. Assim, o labor sério de Jean há-de dar-lhe sempre a vitória, mas nunca lhe dará o público.
  Tudo ao contrário se passa com o desconhecido. As suas jogadas são imprevisíveis e surpreendentes. Os riscos que corre em cada movimento empolgam a audiência. A indiferença perante o perigo provoca nela admiração. As suas jogadas podem ser as mesmas que teria qualquer inapto, mas a confiança que demonstra em cada gesto, a segurança que exibe em relação a cada lance e a prontidão com que responde a cada cálculo do oponente transformam completamente o significado dessas jogadas: joga como um louco, mas é um génio; decide como um inconsciente, mas nada lhe escapa; sofre perdas como quem é incapaz de antecipar seja o que for, mas nunca é surpreendido. Assim, o jovem nunca ganhará a partida, mas o público pertence-lhe.
  O desconhecido tem tudo para ser um génio – excepto a genialidade. Jean sente que perdeu. Há algo no seu adversário que ele não conseguiu vencer, que nunca poderá derrubar, porque não apreendeu sequer. Também ele, tal como o público, se impressionou com este indivíduo. Julgou que ia perder, foi mais cauteloso que nunca. Acabou por ganhar e, no fim de contas, sente-se derrotado. Esse algo que Jean não quebrou, não foi capaz de deitar abaixo, é indestrutível para ele, porque não consegue apreendê-lo. É algo que não pode captar, não pode agarrar e destruir ou guardar. Porque esse algo não é nada. O jovem não escondia o que quer que fosse: tudo o que tinha estava exibido, e, assim, Jean não pode ganhar este outro jogo, porque não há nada que ele possa verdadeiramente vencer. Jean disputou a partida como se o jovem fosse o génio que parecia. Se o caso fosse tão simples, se o seu oponente fosse um génio do xadrez, tudo teria corrido sem males de maior para Jean. Porque ele próprio, como confessa a si mesmo, já desejava perder, nem que fosse para acalmar a fúria do público invejoso contra si. Mas o que se passava era outra coisa: o jovem não era simplesmente um génio do xadrez capaz de jogadas brilhantes, lances arriscados e vitórias dramáticas. O seu jogo era outro, e nesse outro jogo Jean perdeu.
  Há de facto outro jogo disputado durante esta partida. Um jogo que toma a partida de xadrez por objecto, mas não se confunde com ela. Se pensarmos em jogos como o póquer, por exemplo, começamos por notar que em teoria, quem tem as melhores cartas deveria vencer. Há um jogo, no entanto, paralelo ao das cartas e que decorre em simultâneo: o do bluff. Um jogador com cartas piores pode mesmo vencer graças a um bluff eficaz. Ora, na história de Süskind, somos levados ainda mais longe nesta separação: no póquer, o bluff pode ser essencial para determinar o vencedor, mas a disputa paralela entre Jean e o estranho não está tão ligada ao que se passa no tabuleiro. Com efeito, apesar de copiosamente derrotado nesse plano alternativo, Jean ganha a partida de xadrez. Aquele outro jogo não é, como se vê, este jogo de xadrez, embora seja jogado através dele. A partida de xadrez funciona como pretexto para o verdadeiro jogo ser jogado. Que outro jogo é esse?
  Quando o jovem avança uma das suas peças num movimento arriscado, ninguém o toma por inconsciente ou inapto, mas por arrojado. À medida que vai sujeitando as suas peças a um massacre, ninguém o vê como suicida, mas sim como mestre brilhante. Quando sacrifica peças importantes sem aparentemente ganhar nada com isso, tomam-no, não por imbecil, mas sim genial. Se, no final, as pessoas ficam um pouco surpreendidas ao perceberem que nada de especial aconteceu no que respeita ao xadrez propriamente dito – o desconhecido sofreu uma derrota sem apelo nem agravo –, é porque acabaram por confundir os jogos. Para percebermos a confusão, notemos o modo como o seu adversário vive a situação.
  Normalmente, Jean percebe o que se passa durante o jogo. Compreende, não só o que acontece no tabuleiro, como também os raciocínios do outro xadrezista. Joga pela mesma lógica que guia os outros – tem, simplesmente, melhor domínio da mesma. Assim, se este estranho fosse realmente um xadrezista genial, Jean continuaria a compreender e a dominar os acontecimentos fora do tabuleiro. A racionalidade permaneceria a mesma e Jean teria simplesmente encontrado alguém melhor que ele a usá-la. Mas não é isto o que se passa. A lógica deste jovem é outra. Ele não sabe jogar, ou joga muito mal, mas isso não o preocupa. Ele não joga sequer como se estivesse seguro de vencer, mas sim como quem está seguro de vencer ou perder, sendo indiferente qual dos desenlaces se vem a produzir. Podia ser alguém que não compreende o jogo e acaba engolido por ele, mas, em vez disso, tudo indica que o compreende tão bem que a partida é para ele uma brincadeira – a ponto de não fazer sequer diferença ganhar ou perder. Esta é uma lógica que escapa completamente a Jean. A expectativa gerada em torno do desenlace da disputa só se percebe na óptica de quem julgava que este rapaz tinha algum segredo, alguma carta na manga que lhe permitiria ganhar o jogo ou, pelo menos, inventar uma jogada genial. Mas tal não teria sentido nesta história, porque o jogo do desconhecido é outro. E não se trata de perder uma peça porque secretamente se planeia ganhar outra – como faria um jogador habilidoso – ou porque se fracassou uma qualquer jogada tentada – como aconteceria com um simples mau jogador –, mas sim de perder uma peça com a confiança de quem a avança sem hesitações porque nada tem a perder, porque perder uma peça não é perder nada, porque perder o jogo não faz diferença nenhuma. O desconhecido joga com a descontracção de quem jogaria a vida tão facilmente como joga a sua dama no tabuleiro. Avança o peão em direcção ao perigo, sim. Mas não o faz apenas sem medo: fá-lo sem hesitações e, sobretudo, sem arrependimentos. Cada lance deste jovem é afirmado com a segurança de quem não se deixa afectar por efeitos ou consequências. Todos os seus gestos são seus – não partilha nenhum com o adversário.
  Não é assim com Jean. Ele não consegue captar a lógica do desconhecido que tem à frente e, assim, não pode controlá-lo. Joga com medo durante toda a partida e, por mais peças que conquiste, nunca está verdadeiramente por cima. A racionalidade de Jean é evidente. A lógica que o move está tão ligada às movimentações no tabuleiro – aos seus efeitos e implicações – que ele não consegue ir além disso. Ora, quem joga como quem brinca, com a descontracção de quem não se importaria de morrer, desde que por decisão própria, não pode temer um adversário como Jean. Pelo contrário, é fácil apreendê-lo e manietá-lo: todos os gestos de Jean pertencem ao seu adversário.
  Jean revelou, é bom notar, grande heroísmo em ter procurado manter-se fiel à sua maneira de jogar. Ainda que jogando muito pior que o habitual, não cedeu e aguentou até ganhar a partida. Mas, no fim de contas, no outro jogo – aquele que o público viu, mas não percebeu –, saiu derrotado. O seu voto de não voltar a jogar xadrez é a prova mais evidente disso mesmo. Jean abdica porque embora perceba perfeitamente porque ganhou a partida, não entende porque perdeu. Não pode entender, porque, embora o tenha sentido, não chegou a perceber que jogo foi esse que perdeu. Abdica do xadrez porque não conhece outro jogo. Nem mesmo aquele em que sofreu a derrota da sua vida.

sábado, 25 de novembro de 2017

Brincar com o fogo

  No livro Adventures of Huckleberry Finn, de Mark Twain, Tom Sawyer surge nos últimos capítulos para, supostamente, ajudar o amigo Huckleberry ("Huck") a libertar Jim, um escravo sequestrado numa cabana na quinta dos tios de Tom. Quando conversam sobre o plano de acção a adoptar, Huck Finn sugere que furtem a chave ao tio e a usem para deixar Jim sair e fugir na jangada. Mas Tom, não discutindo o provável sucesso do plano, acha-o demasiado simples e convence-o de que a melhor opção será a de cavarem um túnel de saída, o que, naturalmente, levará muito mais tempo e será claramente mais arriscado.

  Todas as propostas de Huckleberry – práticas e razoáveis –, desde o plano global de acção às questões técnicas mais concretas, são rejeitadas por Tom, que opta sempre por vias mais condizentes com o seu espírito romântico: prefere, por exemplo, usar pequenas navalhas para cavar o túnel de fuga (já de si desnecessário), em vez de pás e picaretas, bem como serrar a perna da cama à qual Jim está acorrentado, em vez de simplesmente levantarem a cama e passarem a corrente por baixo (chegando mesmo a lamentar não serem obrigados a serrar a perna do próprio Jim).
  Huck e Jim não percebem a necessidade dos procedimentos que Tom vai impondo. Querem apenas que a liberdade do escravo chegue do modo mais rápido e seguro possível. Mas para Tom a libertação de Jim não é um objectivo que tenha valor em si, ou não é o mais importante. Ela só vale pela aventura que possibilita. E a aventura será tanto maior e mais apaixonante quanto maior o perigo. Por isso Tom, lamentando o facto de a realidade levantar tão poucas dificuldades ao empreendimento, vê-se obrigado a criar ele próprio obstáculos e perigos (“Blame it, this whole thing is just as easy and awkard as it can be. And so it makes it so rotten difficult to get up a difficult plan. There ain’t no watchman to be drugged — now there ought to be a watchman. There ain’t even a dog to give a sleeping-mixture to. (...) You got to invent all the difficulties.”), tomando mesmo como óbvia a necessidade de deixar pistas para os perseguidores e indo ao ponto de avisar muita gente de quando iria ocorrer a libertação, atraindo assim ao local várias pessoas armadas e prontas a disparar.
  Os métodos de Huck e Jim são demasiado simples para Tom Sawyer: não envolvem risco e são desprovidos de estilo e aventura. Prefere os caminhos mais complicados e, no seu modo de ver, heróicos. Tom ama o drama e todo o empreendimento só tem para si sentido se seguir o modelo dos livros que leu. De que serve a liberdade se não for conseguida do modo com que Casanova ou o homem da máscara de ferro a alcançaram?
  A simplicidade de Jim e Huck parece adequada à racionalidade comum, mas Tom não a partilha: ele não avalia um plano ou um feito pela sua eficácia, nem sequer pelo seu sucesso, mas sim pela heroicidade da ousadia, pelo risco da aventura, pela emoção do perigo. Huck e Jim têm talvez bom senso, mas é em Tom que encontramos a consciência dramática. São Huck e Jim quem sofre, mas é Tom quem compreende a tragédia.
  Atendendo aos riscos desnecessários que cria, a paixão aventureira de Tom parece-nos absurda, prejudicial e dispensável. Mas só é assim porque falhamos o nosso compromisso de leitores: queremos ler sem partilhar o espírito literário. Se não hesitamos em censurá-lo por fazer de algo tão sério uma brincadeira, é porque não compreendemos o que é brincar.
  Como explica Miguel Esteves Cardoso ("Brincar"), "as crianças não são mais inconscientes que nós. Também sabem. Também têm medo". E não prejudica isso a falta de responsabilidades, já que estas só se inventam "para se poder atingir o prazer da irresponsabilidade". Se Tom faz deste assunto uma brincadeira, não é porque lhe retire importância, mas precisamente porque o assunto é muito importante. “Brincar com o fogo é supremo”: se as suas acções envolvem riscos desnecessários, não é porque ele esteja deles inconsciente, mas precisamente porque deseja esses riscos: é com o fogo que se brinca. “É por certas coisas serem genuinamente venerandas que é bom brincar com elas. É uma forma de respeito”. Se Tom brinca com a fuga de Jim, não é porque despreze a liberdade que ele procura, e sim por lhe querer oferecer o tratamento mais digno que conhece: quer dar-lhe uma história.
  É fácil tomar Tom Sawyer por mero representante caricatural das convenções sociais, das normas caducas de que os próprios Huck e Jim têm ainda dificuldade em libertar-se. Mas se observarmos com atenção poderemos ver como ele encarna aquele amor pelas histórias que nos ajuda a identificarmo-nos com personagens quando lemos, aquele espírito aventureiro que arranca da vida o que nos faz sentir vivos, aquela consciência dramática que nos faz reconhecer o heroísmo e a cobardia, aquele amor pela fantasia que nos ajuda a ter os pés assentes na realidade. As ideias de Tom são absurdas, desnecessárias, perigosas e fantasiosas. Mas são elas que nos permitem apreender a sua sensibilidade. Ele é sem dúvida uma criança que só quer brincar. Mas é brincando com as coisas sérias que ele se revela mais sábio que os adultos. Sem Tom, Huck e Jim teriam certamente alcançado a liberdade. Mas talvez não tivessem chegado a compreender o que ela é.

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

O pato com pathos


  Em nenhum pato há mais pathos que no pato Donald, personagem da Disney.
  Donald só vive manifestando emoções. O seu temperamento molda-lhe as decisões e os comportamentos: toda a sua racionalidade é emotiva.
  As emoções de Donald são sempre vividas ao extremo: apaixona-se até lhe nascerem corações nos olhos, enfurece-se até fumegar, enciuma-se até à violência. Nenhuma emoção pode nele durar muito – excepto, talvez, a irritação –, porque ele está sempre aberto a começar de novo: tudo o que lhe acontece provoca uma nova história de sensações, reacções e precipitações. À parte a maldade gratuita, está pronto para tudo: para a bondade e compadecimento diante de quem sofre; para a indignação perante a injustiça; para o amor com Margarida; para a vingança depois da afronta; para o arrependimento na culpa.
  É sobretudo nas pequenas coisas que Donald se desequilibra. As quotidianas escaramuças com o vizinho assumem proporções bélicas, a rivalidade com o primo Gladstone Gander (Gastão na versão portuguesa) ganha contornos shakespearianos, as disputas com os esquilos Chip e Dale (Tico e Teco em Portugal) tornam-se épicas na envolvência dramática que ele lhes dá. E, no entanto, a sua vida parece ter problemas bem mais significativos: condenado a ser pobre e endividado, não tem um emprego fixo e está, aliás, frequentemente desempregado. O seu tio milionário explora-o constantemente e sem hesitação, recorrendo para isso, sempre que necessário, às dívidas do sobrinho.
  Donald tem jeito para fazer bem algumas coisas, mas, mais que tudo, tem jeito para fazer disparates – para se meter em alhadas. Como dizem os seus sobrinhos, no entanto, ele é capaz de aprender: nunca repete um disparate. Arranja sempre um novo. E há sempre mais um erro para ele cometer, mais uma confusão para arranjar, mais uma trapalhada em que se enredar. Quando, por exemplo, encontra o diário de juventude do seu tio Scrooge McDuck (Tio Patinhas nas publicações portuguesas), decide fazer tudo o que ele fez, na esperança de enriquecer do mesmo modo. Incapaz de adaptar o projecto ao seu tempo e lugar – bem diferentes daqueles em que o tio viveu na juventude –, o empreendimento revela-se, naturalmente, um fiasco. É assim o pato Donald: as suas ideias são brilhantes e correm sempre bem. Mas só na sua cabeça. Nunca cá fora, onde ele não se adapta.
  Acima de tudo, Donald é um azarado. Tal como o desgraçado Akáki Akákievitch (o protagonista do conto "O capote", de Nikolai Gógol), ele tem "a arte especial de ir pela rua fora e chegar sempre a tempo de apanhar com alguma porcaria despejada naquele momento de uma janela". Tudo o que lhe pode correr mal no imediato vai certamente seguir o caminho errado. O seu azar tem impacto suficiente para nos fazer confundir dimensões ontológicas: tratando-se de guardar uma coisa frágil, por exemplo, e sendo certo que algo frágil é, por definição, algo que facilmente se parte, é seguro que, nas mãos de Donald, ela vai partir-se mais cedo ou mais tarde. Assim, nas histórias do pato Donald, os acontecimentos meramente possíveis – porque ainda futuros – são já eventos de verificação certa – como se fossem passados. A perspectiva de que algo pode correr mal está já confirmada de antemão.
  A sua posição é a inversa da do seu primo Gastão, um sortudo ímpar. A sorte de Gastão é tão ou mais inacreditável que o azar de Donald. O suficiente para transformar também a dignidade ontológica dos acontecimentos, pondo agora os termos do avesso: as coisas boas que lhe acontecem (encontra carteiras, recebe prémios ou promoções por ser o milésimo cliente de uma loja, etc.), em condições normais, seriam inesperadas. Por isso, não deveria haver perspectiva de elas poderem acontecer: de tão remota a possibilidade, a hipótese de terem lugar não é uma com que alguém minimamente realista possa contar. Só que ao primo Gastão elas acontecem sempre. Tal como correm sempre mal com Donald, com Gastão as coisas correm sempre bem. Se o azar do primeiro torna certos os eventos possíveis, precipitando no mundo do ser o que seria em condições normais mera ameaça, já a sorte do segundo faz nascer a própria possibilidade de ocorrer aquilo que normalmente seria inverosímil, torna expectável o que por norma ninguém espera, faz normal o que deveria ser extraordinário.
  É como se os primos fossem o reflexo invertido um do outro. No fim de contas, eles não se distinguem em termos estruturais. Donald começa uma das suas histórias partindo mais um dos muitos vidros que tem quebrado ao longo da vida. Desta vez, porém, na loja onde compra sempre vidros novos, avisam-no de que, tendo em conta o volume de gastos já feito, habilita-se a beneficiar de vidros grátis, oferecidos pela própria companhia numa promoção pensada para quem, no final desse mesmo dia, registar as despesas mais volumosas na loja. Entretanto, Gastão provoca um acidente de um camião que transportava precisamente vidros da mesma companhia. Os estragos provocados equivalem justamente à quantia gasta pelo primo. Para além de, logo de seguida, encontrar um bilhete premiado de lotaria que lhe permite pagar imediatamente os prejuízos, Gastão fica empatado com Donald na corrida aos vidros grátis. Ora, cada um deles precisa, segundo parece, do que o outro tem em abundância: Donald precisa de sorte para se adiantar ao primo e Gastão precisa de azar para partir vidros. A batalha desenrola-se precisamente em função desse pressuposto, cada um deles impingindo amuletos ao outro (patas de coelho, trevos de quatro folhas...) ou buscando provocar o destino (pisando riscos da calçada, passando por baixo de escadas...). Talvez nenhuma história mostre tão bem como, sendo tão diferentes na sorte que têm, eles são afinal tão iguais.
  A história permite também uma outra nota: a sorte não se limita a ficar longe de Donald, sem nunca o visitar. É mais cruel do que isso: por vezes aproxima-se, mas só para logo partir sem chegar a tocar-lhe. Assim numa história, por exemplo, em que um milionário o encontra na rua e, vendo o ar pobre que ele tem, se aproxima dele e lhe oferece uma ferradura, alegando que esse objecto o tornou rico e, uma vez que já não precisa dele, resolveu dá-lo a alguém que necessitasse. Donald não demora a perder a ferradura e ela é encontrada e perdida ou deitada fora por várias pessoas sucessivamente. Todas elas têm golpes de sorte significativos durante os breves momentos em que têm a ferradura na sua posse. A dada altura, esta acaba perdida num depósito enorme de ferraduras, todas iguais, com o desolado Donald a tentar encontrar aquela que lhe deveria trazer a felicidade. É assim o azar de Donald: torna-o impermeável contra a sorte.
  Por uma vez, no entanto, Donald conseguiu gozar de boa sorte. Nessa história, Donald parte em busca de uma ampulheta mágica que garante uma hora de sorte ao seu possuidor. O seu plano é usá-la num programa televisivo em que, durante uma hora, é suposto o participante responder a diversas perguntas; se responder com sucesso a todas, ganhará uma quantia avultada. Depois de muitas peripécias, Donald consegue encontrar a ampulheta. Para garantir que a não a perde, parte ou vira do avesso (desperdiçando a hora de sorte) no regresso, são os sobrinhos que trazem o objecto mágico no caminho de volta. Confiante, Donald atravessa praticamente todo o programa respondendo com sucesso (e muita sorte) a todas as questões colocadas, até faltar uma apenas. Quanto restam uns meros segundos de areia na ampulheta, Donald interrompe o apresentador para apanhar uma moeda que encontra no chão – a única moeda que teve a sorte de encontrar por acaso em toda a sua vida. É esse momento de sorte, porém, que o faz gastar o tempo que sobrava e, quando a última questão lhe é colocada, ele fracassa, ficando sem o prémio. No fim de contas, Donald só tem sorte quando isso se torna garantia de que vai ter azar.
  Donald perde sempre as suas batalhas, não tem sucesso nos seus empreendimentos, está condenado a uma vida de infortúnios. Comete sempre erros, faz sempre disparates, estraga sempre tudo. Por isso ele é aquela criatura dentro de nós a quem tememos sempre que as coisas corram mal. Se receamos partir algo, se lutamos contra a perspectiva de falharmos, é porque tememos esse Donald interior que atrai o azar até à inevitabilidade. Mas se olharmos com atenção e não nos deixarmos distrair pelos seus acessos de fúria, muitas vezes tão fugazes quanto repentinos, talvez possamos descobrir que esse pato que trazemos cá dentro é o mesmo que nos pode oferecer os tesouros mais valiosos. Porque embora não tenha a sorte do primo Gastão, é dele que Daisy (Margarida em Portugal) gosta. Ainda que sem jeito ou muitas vezes incompetente, é sempre a ele que o seu tio Patinhas recorre. Mesmo com as dificuldades financeiras, consegue cuidar dos sobrinhos. E apesar de não ser um modelo de virtudes ou de responsabilidade, eles não o trocavam por outro. Em suma, é fácil notar que o pato Donald não possui nada de valioso ou que mereça ser invejado. Mas é enganador: porque olhando melhor vemos bem que ele tem tudo. O Tio Patinhas tem o dinheiro, mas é Donald o pato mais rico. A sorte está com Gastão, mas é Donald o verdadeiro sortudo.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

O prisioneiro

  No livro Capitães da Areia, de Jorge Amado, conta-se a história de um bando de rapazes abandonados que vivem num trapiche e sobrevivem praticando roubos. Um deles é chamado "Sem Pernas" por ser coxo; usa a deficiência para ganhar a comiseração de famílias ricas que o acolhem nas suas casas, aproveitando para as estudar e mais tarde facilitar o acesso dos amigos ladrões.

  Apesar da traição com que paga a piedade das famílias, o Sem Pernas não sente qualquer remorso; bem pelo contrário. Movido pelo ódio que o empurra contra o mundo em geral, ele vive fazendo piadas maldosas sobre os companheiros e não parece capaz de sentimentos de ternura ou fraternidade. A raiva que o habita nasceu num noite em que um grupo de polícias o apanhou, espancou e humilhou, obrigando-o a coxear de um lado para o outro enquanto se riam dele.
  O seu ressentimento não poupa as famílias que o recebem. Ele sabe que é por caridade que o ajudam e percebe a saturação que rapidamente toma conta delas, o fardo que para elas ele representa. A situação é diferente, porém, na casa de uma senhora a quem um filho morrera. A senhora acredita ter encontrado no Sem Pernas um novo filho, uma criança que ela pode amar: quer tratar dele, dar-lhe o carinho que ele nunca recebeu e que ficou por entregar ao menino que morrera. O Sem Pernas chega mesmo a gostar dela e a beijá-la, reconhecendo-lhe a bondade. Mas, depois procrastinar a decisão por algum tempo, acaba por fazer o seu trabalho e dá aos Capitães da Areia a informação necessária para eles assaltarem a casa. Nesta ocasião, contudo, o Sem Pernas não quer o dinheiro nem a roupa que de lá trouxe. E chora.
  O mal-estar do Sem Pernas começa logo na própria casa onde se sente bem. Quando percebe que a bondade daquela gente não é postiça como outras, não aparece por ser esperada ou suposta, mas por ser a única coisa que aquelas pessoas conhecem, ele assusta-se, sente "um grande medo de que sejam bons para ele". O seu ódio fá-lo forte contra todos os polícias, a sua raiva permite-lhe crescer entre os Capitães, o seu ressentimento dá-lhe ânimo para desdenhar todas as famílias que não o querem verdadeiramente. Consegue mesmo ser alegre, ao sentir a "alegria da vingança" contra toda essa gente que o humilha ou o ajuda por obrigação ou remorso. Na violência contra as meninas que o atraem, desforra-se da repulsa que elas sentem por ele, coxo, feio e antipático. Contra a bondade e o amor, porém, ele está desarmado.
  O ódio é tudo o que o Sem Pernas conheceu desde pequeno. Por isso, convence-se de que "se esse ódio desaparecer, ele morrerá, não terá nenhum motivo para viver". Estando preenchido inteiramente por este sentimento, a perspectiva de ele perder o seu objecto e o seu sentido, e, desse modo, desaparecer, é aterradora. É o ódio que o move e, sem ele, deixará de coxear para cair de vez. A alternativa de no lugar desse elemento aparecer algo novo não é evidente e surge demasiado arriscada. Face a ele, o amor é uma hipótese longínqua, talvez ilusória: o amor não passa, neste panorama e no melhor dos cenários, do risco de acabar vazio; no pior deles, é o risco de ser magoado de novo.
  O ódio do Sem Pernas salvou-o. Fê-lo sentir que não voltaria a ser fraco depois dos polícias, que só coxearia por vontade própria e para os olhos de quem ele pudesse magoar ou trair. A raiva que o consumiu e o alimentou deu-lhe a segurança de pensar que não tornaria a encontrar-se vulnerável. E assim o coxo Sem Pernas ousou acreditar que, definitivamente, já não era frágil.
  Sucedendo em proteger-se contra todos os perigos de que tinha ideia, o Sem Pernas não contou com aquele que nunca conhecera: o da bondade. O amor nunca foi uma hipótese de vida para ele. Só o ódio pôde salvá-lo dos polícias cruéis, das mulatas frias e das famílias hipócritas. Perante a maldade, o amor deixá-lo-ia vulnerável: um pouco de meiguice ou inocência e ele estaria perdido. Morte certa para o aleijado, feio e diferente. Por isso o Sem Pernas muniu-se de ódio contra o ódio para ser forte – se bem que também para fazer fortes os seus inimigos, já que com a sua irascibilidade e animosidade acabou por fomentar nos outros maus sentimentos contra si.
  O amor é um ataque novo contra o Sem Pernas, um que ele não conhece e com o qual não contava. Perante a bondade verdadeira – a gratuita, a que não passa por fazer favores a si ou a outros na esperança de conseguir qualquer coisa que não mais bondade ou mais amor –, perante essa bondade que o deixa fraco e vulnerável, a sua única arma é aquele ódio que sempre o fez forte, mas que agora se mostra inadequado. A raiva que o tornou tão seguro contra inimigos deixa-o desajeitado novamente: perante esta bondade, ele não tem armadura, não sabe sequer como combater. A estadia na casa da senhora bondosa é obviamente o inverso da experiência com os polícias: ela gosta dele, quer dar-lhe carinho, aceitá-lo e fazê-lo um dos seus. Mas nesta inversão, a vulnerabilidade em que ele é situado é a mesma: ele não tem armas perante aquela pessoa grande que o trata de um modo que ele não entende e não sabe sequer aceitar. Habituado a odiar toda a vida, o Sem Pernas não sabe fazer outra coisa porque não tem outras armas, muito menos aquelas com que se combate em tempos de tréguas. Assim, a bondade da senhora é para ele tão perigosa como a maldade dos polícias, porque ele se descobre igualmente vulnerável perante ambas. Se ao longo da vida aprendeu a combater com o seu ressentimento a animosidade dos outros, o carinho da senhora deixa-o desamparado e sem saber o que fazer. O Sem Pernas abandona a senhora e trai-a, fiel aos Capitães à superfície, mas no seu íntimo fiel ao seu ódio, à sua raiva. Essa armadura não o faz forte agora, porém, e ele chora de amargura. É frágil de novo.
  O Sem Pernas termina a sua vida fugindo da polícia. Encurralado entre os seus inimigos fardados e o precipício, ele escolhe lançar-se para o suicídio, para não deixar que o apanhem e o torturem de novo. É uma fuga ilusória. O episódio da casa da senhora bondosa mostra-nos que ele nunca escapou verdadeiramente àqueles que o maltrataram. Prisioneiro do seu ressentimento contra eles, o Sem Pernas foi incapaz de se libertar desse mundo de vingança e retribuição para habitar uma casa nova. Ainda assim, na amargura com que sofreu a traição que ele próprio praticou contra essa senhora que quis gostar dele, podemos descobrir que, no fim de contas, ele já se deixara apanhar, por um pouco que fosse, pelos bons sentimentos que nunca conheceu nem compreendeu. O drama do Sem Pernas, em suma, é o de ter sido sempre um prisioneiro: durante a maior parte da sua vida, prisioneiro dos seus inimigos e do seu próprio ódio. Mas num breve momento, prisioneiro também do amor e de quem apenas quis gostar dele.

domingo, 22 de outubro de 2017

Humano, demasiado humano

  No livro Frankenstein, or The Modern Prometheus, de Mary Shelly, Victor Frankenstein é um cientista que consegue dar vida a um humanóide que ele próprio fabrica. De proporções enormes, com olhos amarelos e pele que mal esconde os músculos e veias, a criatura tem uma aparência monstruosa e é rejeitada com horror por todos os que a encontram (excepto pelo cego De Lacey, com quem fala por pouco tempo).

  O humanóide é um monstro para os olhos humanos, se bem que nunca comece por sê-lo por outra razão que não a sua aparência. Com efeito, ninguém parece disposto a dar uma oportunidade à bondade potencial que ele traz dentro de si. Pronta a oferecer afecto, amizade ou amor em troca do carinho de que precisa, a criatura encontra somente rejeição, medo e ódio. O próprio Frankenstein, seu criador, mesmo depois de alguma comoção ao ouvir o seu trágico relato, recua na intenção de lhe oferecer uma companheira, temendo que ela se revelasse tão maligna como ele.
  É óbvia a ironia aqui presente: as pessoas horrorizam-se porque a composição física do monstro, entre outras coisas, lhes mostra em parte o interior deste, mas afinal limitam-se a julgá-lo pela aparência e nunca pelos sentimentos, pensamentos ou emoções que ele tenta mostrar-lhes. E isto apesar de o monstro revelar uma inegável riqueza intelectual e emocional, e de toda essa vida interior estar completamente à mostra em todas as suas conversas, atitudes e relatos: sem rosto para se mostrar pessoa, o monstro exibe a sua personalidade fazendo exterior o que traz dentro de si. As pessoas que encontra, contudo, limitadas pelas aparências, não vêem nada, porque não o vêem a ele. O único com quem estabelece um breve diálogo com simpatia é precisamente o cego que não lhe vê o rosto e, por isso, pode ver mais que os outros.
  O monstro exibe a pessoa, mas ninguém a vê. A hipótese de descobrirem a pessoa que (não) se esconde na criatura está condenada à partida: a monstruosidade aparente impossibilita o reconhecimento de qualquer traço de humanidade, de tal modo que a criatura é sempre um completo outro, algo não-humano, que não merece sequer um nome: "knowing the name of something has traditionally conferred magical control over it, as well as giving it a place in an ordered universe. Frankenstein’s creation is simply 'the Monster' — aptly communicating its total otherness and man’s impotence before it." (Martin Tropp, "The Monster"). A esta luz, mais curioso se torna notar que o monstro é, no fim de contas, mais humano do que qualquer uma das pessoas que vai encontrando, incluindo o seu criador: "The greatest paradox and most astonishing achievement of Mary Shelley’s novel is that the monster is more human than his creator. This nameless being, as much a Modern Adam as his creator is a Modern Prometheus, is more lovable than his creator and more hateful, more to be pitied and more to be feared" (Harold Bloom, na introdução à obra que edita sobre o livro de Mary Shelley).
  Em Frankenstein, ninguém é mais humano do que o monstro, porque ninguém possui a sua riqueza imaginativa intelectual e emocional, nem a consciência que ele demonstra em toda a sua sensibilidade, além de que ninguém vive a variedade de situações que o encurralam. Capaz de aprender, de julgar e de se indignar, ele tem o mais profundo, ainda que nem sempre apurado, sentido de justiça. Vive ao limite todas as emoções e sentimentos que uma pessoa pode experimentar: revela uma propensão natural para a bondade e o amor, depositando esperança na idealizada família pela qual ansiava ser acolhido. Escorraçado por todos, conhece a solidão e o abandono, bem como o isolamento, quando sabe que nunca fará parte da comunidade. O que não o impede de ser paciente com os impacientes que deseja que o oiçam. É capaz de altruísmo nos gestos gratuitos de ajuda a necessitados que encontra, mas também de egoísmo e pura maldade quando, por exemplo, descarrega as suas frustrações em inocentes. Sente inveja e raiva contra o seu criador pela felicidade que este pretendia prosseguir depois de negar ao monstro a única possibilidade de obter a sua, o que o leva a experimentar a vingança contra Victor. Mas depois dessa vingança descobre o arrependimento e o perdão. E, claro, o tratamento desigual que recebe, sempre moldado pelo seu rosto e não pelas suas acções ou palavras, leva-o a vivenciar o mais desperto dos sentimentos humanos: o da injustiça.
  O monstro não é mais humano apenas na abrangência da sua consciência, mas também na intensidade e profundidade de cada um dos momentos que povoam essa consciência. A sua racionalidade é mais sólida que a de Frankenstein, e a sua argumentação mais sustentada e ponderada. A sua bondade é talvez mais valiosa que a de Justine, porque mais inesperada. A sua inocência é mais credível que a do pequeno William, que também o julga e maltrata pela aparência, mas a quem supera também na infantilidade da sua maldade, que o leva a matar a criança tanto para a calar como para se vingar do seu criador. O seu sentido de responsabilidade é também o mais apurado: por contraposição ao de Frankenstein, que por diversas vezes foge das suas responsabilidades e demora a assumir que os seus actos têm consequências, a criatura mostra sempre consciência e é sempre senhora dos seus actos, indo ao ponto de assumir a final a condenação e castigo que entende merecerem.
  Acima de tudo, o monstro é humano na procura constante dos outros: não apenas no desespero por ser aceite e na necessidade de acolhimento, mas também na empatia extrema de que é capaz. Como refere Harold Bloom, o fim de Frankenstein (imolado num túmulo de gelo) é perfeitamente adequado a alguém que nunca atingiu por completo um sentido da existência dos outros ("a fit end for a being who has never achieved a full sense of another’s existence"). O monstro, ao invés, vive virado para o exterior, o seu percurso é uma busca constante de compreender e ser compreendido, a sua humanização faz-se no confronto com outros seres (ainda com Bloom: "Frankenstein is the mind and emotions turned in upon themselves, and his creature is the mind and emotions turned imaginatively outward, seeking a greater humanization through a confrontation of other selves"). O monstro é, enfim, o único verdadeiramente capaz de uma empatia radical, de se colocar completamente no lugar do outro, de assumir o ponto de vista daqueles que o rejeitam: quando encontra o seu reflexo na água, o monstro descobre-se repulsivo e horroriza-se com a sua própria aparência. Como diz Tropp, olha-se como um humano a olhar uma coisa hedionda ("The Monster (...) looks at the reflection as if it were a man looking at some hideous thing"). A humanidade da sua empatia vai assim ao ponto de lhe permitir situar-se no lugar de um humano que olha outra criatura como uma coisa que, apesar de pensar e de sentir, é só uma coisa. A empatia do monstro, por outras palavras, deixa-o por uns instantes na posição de um humano que é incapaz de empatia e se revela assim menos humano. Se o monstro continua humano apesar disso – ou é-o ainda mais desse modo –, é precisamente porque ele mesmo é a coisa inumana rejeitada.
  Segundo o relato de Nietzsche (Also sprach Zarathustra), quando Zaratustra encontra o "homem mais feio", este explica que matou Deus por não suportar que Ele o olhasse e tivesse pena de si. O homem afirma-se rico na sua fealdade, confortando-se a si mesmo na ausência do seu criador. Também o monstro do livro de Shelley mata o seu criador (ou pelo menos reclama para si a autoria da morte de Frankenstein), mas com os motivos inversos. O drama do monstro é precisamente o de ser tão horrendo que os outros, incluindo o seu criador, não suportam olhar para ele nem se mostram dispostos a compreendê-lo. Se o homem mais feio mata Deus por ir ao seu encontro, o monstro, feio e pobre, mata o seu pai por fugir de si.
  O horror e a aversão que as diversas pessoas sentem pelo monstro indiciam que ele é demasiado feio para ser humano. Mas o drama emocional da sua história, o isolamento radical a que parece condenado e a nobre empatia de que se mostra capaz revelam-nos uma outra verdade, mais profunda e cheia de significado: a de que ele é demasiado humano para ser verdadeiramente feio.

domingo, 8 de outubro de 2017

O mestre da fuga



The Artful Dodger  (Joseph Clayton Clarke - "Kyd")

  No livro  Oliver Twist  (Charles Dickens), Jack Dawkins, ou "Artful Dodger", é um carteirista, líder do bando de crianças criminosas treinadas pelo velho Fagin.

   Dawkins é um personagem feito de contrastes. Começa por sê-lo em comparação com Oliver: enquanto este é naturalmente bom e passa o livro numa sentimentalidade passiva que, em última análise, acaba por salvá-lo, o corrompido dodger age sempre cheio de energia e descaramento. Nas palavras de Hillis Miller ["What the lonley child saw: Charles Dickens's  Oliver Twist"], "...the Artful Dodger, with his irrepressible energy, his resolute (and witty) defiance of all constituted authority, represents the other possibility. (...) He has begun in Oliver's situation, but he has reacted in exactly the opposite way." Mas faz-se também de contrastes em si mesmo: é uma criança vestida de adulto; é o amigo de Oliver, a quem tira da rua, mas trai-o na primeira ocasião para tal; a sua manha e habilidade para enganar obrigam quem quer que o conheça a desconfiar sempre dele, mas é ao mesmo tempo o mais confiável e fiel dos discípulos de Fagin, a quem entrega os ganhos dos seus truques; capaz de grandes golpes sem ser notado, acaba apanhado por um furto de pequena monta.
    É de resto esta habilidade de se escapar que dá a outra nota fundamental à sua personalidade. Ele não é apenas astuto ("artful"): domina também a arte de se escapulir ("to dodge": esquivar-se). E o próprio contraste que marca os traços fundamentais que o desenham ajuda a intuir essa mesma arte: ele parece escapar-se sempre que julgamos apreendê-lo – no momento em que pensamos tê-lo fixado, descobrimo-lo no pólo oposto àquele em que o procurávamos.
    Note-se, todavia, que a sua técnica não é a do comum prestidigitador que desaparece simplesmente de onde estava, obrigando-nos a descobrir para onde foi. Pelo contrário, Dawkins está sempre presente, nunca deixa completamente de estar aí onde o encontrámos. Simplesmente, ele apenas fica para nos informar, com um sorriso zombeteiro, que já fugiu para outro sítio. Ele nunca desaparece na sua cartola: no instante em que esta ameaça engoli-lo, ele dá-lhe um piparote e, com um sorriso nos olhos, diz-nos que já partiu.
    Exemplo disto é o episódio do seu julgamento. As autoridades conseguiram detê-lo e colocá-lo perante o tribunal. Mas nunca conseguirão verdadeiramente prendê-lo. É ele mesmo que o demonstra zombando de quem o julga. Ninguém pode julgar o artful dodger – a não ser ele próprio –, já que ele se ri de qualquer juiz. Se aceitarmos a sentença de Camus (Le Mythe de Sysiphe) segundo a qual todo o destino pode ser superado pelo desprezo, então veremos como Jack Dawkins triunfa completamente sobre a sentença que o condena: perfeitamente consciente da inevitabilidade da sua condenação e da pena que lhe caberá, ele transforma o processo numa farsa da justiça. Quando lhe perguntam se tem algo a declarar, ele responde que não (embora depois fale tanto que o juiz tem de o interromper), porque não é ali que encontrará justiça ("“No,” replied the Dodger, “not here, for this ain’t the shop for justice”"). Mas é ele mesmo que esvazia de sentido a justiça legal – aquela que o condena sem conseguir atingi-lo, já que ele se ri da condenação. O juiz ouve-o e julga que ele apenas troça, fingindo-se indignado por não encontrar ali justiça. Falha assim em perceber que, por debaixo dessa troça, Dawkins lhe transmite uma verdade profunda: é antes a justiça que falha em encontrar o dodger.
    O dodger despreza o tribunal, despreza a justiça e despreza a lei. Quando Oliver lhe pergunta se ele não é um “prig”, ele garante que desdenharia ser qualquer outra coisa  ("“I’d scorn to be anything else.”"). É curioso registar a este propósito a evolução do termo em questão: se inicialmente “prig” designava um ladrão ou bandido, passou, com o tempo, a identificar um snob, alguém que observa as regras de bom comportamento ou de discurso adoptando uma postura de superioridade em virtude disso mesmo. Dawkins é, claro, um bandido, está na sua natureza o hábito do furto. E é um snob perante o tribunal, apresentando-se como um cavalheiro, exigindo, com sobranceria trocista, respeito pelos seus direitos, e questionando a legitimidade do tribunal para o julgar. De resto, ele é já um pouco snob entre os próprios bandidos: sempre zeloso no seu trabalho, aceita com naturalidade a primazia em habilidade que lhe atribuem.
    Snob como poucos, mas pronto a dar a mão aos mais necessitados (lamentando a dada altura que Oliver não possa vir a ser também um “prig”), o dodger desdenha ser qualquer outra coisa que não aquilo que é. Desdenharia, provavelmente, ser um cavalheiro. Descobrimos assim a profundidade da ironia com que ele se afirma um gentleman diante do tribunal. Não se trata apenas de ridicularizar a realidade evidente de não ser o que diz que é. Ele já é, no fim de contas, o cavalheiro que desejaria ser. É um cavalheiro, por assim dizer, invertido; um cavalheiro à sua imagem. Espelhando o gentleman que é uma pessoa de bem, cumpre as normas, é honesto e olha com desdém a plebe abaixo de si, Dawkins, gentleman às avessas, reflexo insubordinado do primeiro, é um cavalheiro bandido e desonesto, que viola as normas e olha com desdém os senhores acima de si. E o triunfo aqui é sem dúvida seu – porque quem olha para baixo estando em cima fracassa, pois falha em descer. Quem, ao invés, olha de cima quando tudo apontava que estivesse em baixo triunfa, porque pela ironia e pelo desprezo pode pisar o que bem entender. O desprezo de Dawkins não nasce da frustração disfarçada de quem se sente pisado, é antes o desprezo de quem gosta de viver abaixo porque sabe que é por aí que consegue ficar por cima.
    Dawkins parece desprezar até o dinheiro que ganha com tanta habilidade e que, na sua inegociável lealdade, entrega a Fagin. É como se para ele o importante não fossem o lenço ou a carteira, mas a arte de os surripiar sem ser apanhado. Nesta medida, ele é um parente afastado do burlão Jeff Peters, personagem da história "Innocents on Broadway" (O. Henry), que, encontrando um simplório que lhe entrega a ele e ao seu amigo Andy Tucker uma quantia de dinheiro para guardarem, vê-se obrigado a explicar ao colega que eles não podem simplesmente apoderar-se daquele dinheiro, assim sem mais. Não tanto porque seria demasiado fácil, mas porque não fizeram nada por isso – leia-se, não prepararam qualquer engodo, não orquestraram nenhuma armadilha – e tal faz com que não mereçam o dinheiro. Tucker riposta deliciosamente que os argumentos de Peters estão para lá de crítica ou de compreensão ("your arguments are past criticism or comprehension"). Também o dodger rejeitaria certamente apoderar-se do dinheiro que algum crédulo inconsciente lhe desse a guardar – faltaria o perigo, o desafio, a arte. É exactamente isso que, depois de condenado, o leva a garantir que não sairia da prisão, mesmo que o juiz e os guardas lho pedissem: mais uma vez, há sinceridade por detrás desta zombaria. Porque ele nunca aceitaria simplesmente sair por lhe abrirem a porta. O artful dodger sai pelos seus próprios meios, isto é, evade-se. Porque também ele, em suma, está para lá de crítica ou compreensão.
    Dawkins é o melhor aluno de Fagin no livro de Dickens, mas, se ousarmos transpor os limites daquele universo, podemos perguntar se ele não é também discípulo de Falstaff (Shakespeare, Henry IV), rei da subversão, mestre da representação, patrono dos zombadores. Como qualquer bom discípulo, também Dawkins transforma as lições do seu mestre. De acordo com Harold Bloom (Shakespeare – The Invention of the Human), o livre Fasltaff instrui-nos na liberdade em relação à sociedade ("Falstaff, who is free, instructs us in freedom – not a freedom in society, but from society"). A liberdade do dodger não é tão radical e, por outro lado, ele não aparenta possuir a vocação de Falstaff para ensinar,  falhando em doutrinar Oliver e tendo mais admiradores (como Charley Bates) do que propriamente seguidores. Mais do que professor, Dawkins parece um aluno genial, dos que já dominam tão bem qualquer lição que se lhes queira ensinar que vai inevitavelmente subvertê-la e expô-la ao ridículo. Se, ainda com Bloom, Falstaff brinca como as crianças porque não é verdadeiramente imoral nem amoral, habitando um outro reino, já Dawkins, criança que age e se veste como um adulto, habita o mundo muito real da moralidade. Ele é um verdadeiro imoral, mas não aquele simples que não consegue ou não quer cumprir as normas, e sim o que as domina e despreza porque para ele só fazem sentido quando viradas do avesso. Superior a quaisquer regras que a boa sociedade pretenda impor-lhe, o dodger precisa, ainda assim, dessas regras, mesmo que apenas para as subverter, já que é da e na subversão que ele vive. Deste modo, ele não está livre da sociedade, mas é livre dentro dela. Mestre da escapadela, o dodger não precisa de fugir da jaula em que o prendem para ser livre: quando garante às autoridades que não aceitaria a liberdade, mesmo que lha oferecessem, há uma outra verdade por detrás desta pretensa honra ofendida: ele já é livre, por mais enjaulado que pareça. Mais: é precisamente nesse momento em que as regras e as algemas parecem tê-lo seguro que ele se mostra mais livre que nunca.
   Apesar da barba branca, da barriga crescente ou da pele seca, Falstaff apresenta-se como um jovem. Nas palavras do próprio, nasceu já com cabelos brancos e barriga redonda ("I was born about three of the clock in the afternoon, with a white head, and something a round belly"). Velho desde o início no corpo e no conhecimento, mas criança eterna na propensão para o jogo e na liberdade, Falstaff desafia o tempo com seu espírito indomável. Já Jack Dawkins tem corpo de criança e as roupas de adulto estão-lhe desajustadas. Mas ele não é criança nenhuma, e é como verdadeiro adulto que acolhe todas as regras para delas troçar como se fosse uma criança. O  desafio ao tempo do artful dodger é feito mais uma vez às avessas: ele não é nenhum Peter Pan que se recusa a crescer apesar da idade ou do corpo; é sim um adulto que abdica de ser criança apesar do tamanho. Assim, se o tribunal não o trata como menor nem o deixa sair em liberdade apesar da idade, tal é apenas a mostra do respeito que ele merece.
   Dawkins também não tem, obviamente, o magistério da língua que demonstra Falstaff (a quem Bloom chama o "monarca da linguagem"), nem parece capaz de contagiar ninguém com a sua inegável espirituosidade (enquanto Falstaff gera espírito nos outros, como o próprio afiança: "I am not only witty in myself, but the cause that wit is in other men"). Ainda assim, tal como Falstaff vencerá sempre na espirituosidade do diálogo, o dodger ganhará sempre na astúcia do jogo. Quando Fagin alerta que é preciso acordar muito cedo para bater Dawkins ("you must get up very early in the morning, to win against the Dodger"), Bates acha que isso é um eufemismo: "Morning! (...) [Y]ou must put your boots on over-night, and have a telescope at each eye, and a opera-glass between your shoulders, if you want to come over him." Não adianta acordar cedo, porque o dodger levanta-se antes de todas as madrugadas. Aluno na habilidade e na representação, Dawkins revela-se perante o tribunal um actor tão capaz de transformar o seu papel como Falstaff a fazer de rei diante do príncipe Hal; tem perante as autoridades o mesmo descaramento que Falstaff revela quando garante ter sido ele a matar Harry Hotspur; e demonstra um toque do génio cómico de Falstaff na distância consciente que assume em relação ao papel de cavalheiro que representa e ridiculariza.
   Acima de tudo, a mestria do dodger nunca deve ser subestimada quando lidamos com ele. Quando Fagin oferece a Bill Sykes os serviços de Dawkins para este lhe trazer o dinheiro que Sykes pede, este rejeita, desconfiado, porque o astuto Dawkins é astuto em demasia (“The Artful’s a deal too artful”) e provavelmente desapareceria com o dinheiro. É assim Dawkins: a sua manha obriga-nos a permanecer alerta, porque nunca poderemos estar seguros de ter apreendido o mestre da fuga. Na famosa rejeição de Falstaff por Henry V, este afirma que não o conhece, apesar de o conhecer melhor que ninguém ("I know thee not, old man"). Mais uma vez, a inversão no caso do dodger serve para nos confirmar a sua natureza: quando o apresenta diante do juiz, o guarda garante que o conhece bem (“I know him well”), quando é óbvio que, apesar de perceber que se trata de um criminoso, ele não lhe apreende minimamente o espírito.
   Nem nós podemos ficar seguros de que já conhecemos por completo Jack Dawkins, ou de que, por conhecê-lo, ele não nos poderá mais apanhar em nenhum truque. Como Sykes avisa, o astuto dodger é demasiado astuto para nos fiarmos nele. Apesar do que sugere Fagin, não há hora a que possamos acordar, por mais cedo que seja, que nos permita apanhá-lo, porque o dodger é um peixe que não dorme. Se Falstaff é demasiado livre para conhecer limites ou barreiras, a liberdade de Dawkins é esguia e por isso, em vez de morrer dentro de grades, vive delas para se exibir.
   O dodger afirma que o tribunal que o julga não é a loja onde ele encontrará justiça. Isto é, a um tempo, mentira e verdade. É mentira porque é afinal este tribunal, povoado de oficiais e cavalheiros incapazes de lhe acompanhar o espírito – muito menos de disputar com ele –, que lhe permite brilhar na mestria da representação, no domínio da ironia. E assim, as autoridades que não querem ou não podem reconhecer-lhe o virtuosismo acabam por permitir-lhe obter justiça da única maneira que ele desejaria: furtando-a sem que eles dêem por isso. Mas é também verdade porque, obviamente, nunca tribunal tão terreno, tão desprovido de espírito, poderá fazer jus ao mestre da fuga. Que tribunal capaz de o fazer seria esse, tal não sabemos.