E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Paraíso perdido

   No conto "La fin de Robinson Crusoé", de Michel Tournier, encontramos Robinson Crusoe embriagado, garantindo aos companheiros de mesa a existência de uma ilha por ele visitada, apesar de o mapa o desmentir. Os demais riem dele e não lhe dão grande importância, tomam-no como figura pitoresca do folclore local. Robinson fora encontrado depois de anos desaparecido, e retomara a vida junto dos compatriotas, mas agora, segundo a mulher, aborrece-se e sente a falta da sua ilha. Após a morte dela, Robinson parte de novo em viagem, mas volta anos depois, ainda mais mudado que no primeiro regresso, desesperado por não ter conseguido encontrar a ilha que continua certo de existir.
 
  A história é curta, mas, no seu drama de tons poéticos e no seu embalo delicodoce, oferece uma ilustração melancólica e contemplativa sobre o que perdemos e não podemos recuperar.
  Como se perde isso que nunca se recupera? Nas palavras do narrador, a ilha de Crusoe foi a sua juventude, a sua bela aventura, o seu jardim esplêndido e solitário ("sa jeunesse, sa belle aventure, son splendide et solitaire jardin"). Não pode lá voltar, segundo está convencido, porque a geografia não funciona como devia: o mapa desmente-lhe os olhos de outrora e as lembranças. Não há, contudo, uma desarrumação nos lugares, e sim no tempo, porque na verdade, a ilha que Crusoe procura não existia quando ele naufragou, foi criada somente depois de a abandonar. Fantasiou-a pelas recordações e deu-lhe força pelo desejo de regresso. Podemos aceitar como verdadeiro o seu relato, admitir que passou anos perdido num pedaço de terra sem história. Mas se não o reencontra quando embarca de novo, é porque não é verdadeiramente aí que pretende voltar, e sim à moradia onde, uma vez tornado à vida cidadã quotidiana, depositou o sonho do regresso impossível. Se tivesse visto o alegado esplendor do jardim quando lá morava, Robinson não teria querido sair de lá. Mas se é preciso afastarmo-nos do que brilha para, de longe, o vermos finalmente brilhar, é porque o brilho só existe na distância: só afastando-nos o suficiente para darmos conta da escuridão envolvente podemos perceber a luz brilhando. Crusoe passou os anos de regresso não a viver aonde tornou, mas a criar o jardim de onde partiu. Como se perde o que não se recupera? No caso de Robinson, ele não perdeu a sua ilha, antes a criou já perdida. Não pode voltar, porque nunca lá esteve, embora ela não existisse se nunca estivesse estado na ilha que lhe permitiu criá-la.
  São assim os lugares mágicos da infância, os jardins solitários a que ansiamos regressar: não nasceriam se não houvéssemos explorado lugares reais e vivido verdadeiras aventuras, mas só podem nascer depois de as abandonarmos. Por isso mesmo estarão sempre longe, exibidas em mapas que não podemos estender sobre mesas de madeira.
  A condenação de Crusoe pode ser cruel ao ponto de não o deixar habitar o sítio onde mora. O seu lugar de estacionamento existencial pode ser simplesmente "outro lugar" (que não aquele onde se encontra). Náufrago na ilha, terá ansiado por tornar à civilização, por rever rostos de pessoas, conversar, imergir na civilização. Prisioneiro na ilha deserta, teve de esperar pelo resgate longos dias, sem perceber que neles foi criando, pela erosão do tempo e pela inevitabilidade da perda, o seu perdido paraíso. Tornado à civilização, ei-lo incómodo, pouco à vontade, saudoso por fim. Liberto para viver de novo, acha-se, mais que nunca, prisioneiro: precisa voltar à ilha para ser livre. Livre de outras pessoas, de convenções e obrigações, de explicações e rituais urbanos? Livre, sobretudo, das saudades.
  Crusoe talvez nunca possa ser livre, por nunca poder voltar à ilha que criou. Quando encontrar aquela onde naufragou, como lhe explica um timoneiro, não a reconhecerá, por ela estar diferente. Mas estivera ela igual, ele não a reconheceria, pois é outra que procura. A sua única hipótese de regresso é, no entanto, ouvir as palavras do timoneiro e procurar a ilha mudada, o lugar físico que o acolheu, esse lugar onde esperou tantos anos que o encontrassem. Porque talvez aí regressando, possa libertar-se sentindo as saudades de um prisioneiro, imaginando como seria tornar à civilização. A única liberdade de que Robinson quiçá seja capaz pode ser essa a que se agarra o enjaulado: a da suposição da vida fora da jaula. Por isso, resta a Crusoe procurar a terra que o teve prisioneiro tantos anos para, no sonho de uma vida que, quando realizada, não o satisfaz, poder finalmente ser livre.
  Ele mesmo se condenou a esta distância da felicidade, porque ele mesmo remeteu para aquelas paragens os seus sonhos. Robinson só poderá ser feliz, porventura, voltando à ilha para ali poder sonhar uma vida quotidiana que não foi feita para ele, e sim para a sua imaginação. Agora com a consciência disso mesmo, poderá ser feliz. Mas para tornar a esse paraíso possível, precisa de abandonar primeiro o impossível que criou. Porque, como tantos outros, talvez todos, o seu mal é o de desesperar por um paraíso que optou por situar longe. Corre o risco de ser para sempre prisioneiro, porque, ao voltar da ilha deserta, esqueceu-se dela, i. e., não a trouxe consigo. Se tivesse carregado no interior o paraíso a que quer voltar, nem precisaria de viajar nunca mais, porque em todo o lado continuaria em casa. Nunca encontrará, no entanto, a ilha por que agora tanto anseia, não porque se tenha afastado dela, e sim porque a criou para estar longe e inatingível. Como se recupera o que nunca se perdeu? Descobrindo o que nunca se encontrou.

domingo, 29 de novembro de 2020

Caminhos esconsos


  Com os seus comportamentos chocantes frequentes, Donald Trump escandaliza o público habituado ao respeito pelas formalidades do discurso, regras do trato e convenções da educação. Mas não se trata somente de desrespeitar o meio, é o próprio conteúdo que se mostra não propriamente inaudito, senão deslocado: faz e diz o que esperaríamos descobrir feito e dito às ocultas, longe dos olhares. Trazendo o normalmente envolto em segredo para a praça onde todos vêem, exibindo o que se pensaria material esconso, traz o conteúdo para plano tão deslocado e inusitado que se torna difícil ao público acreditar no que vê e perceber como há-de reagir. Como explica Adam Gopnik, "[h]e has learned that, if you just do things, ordinary people with normal expectations about human behavior will have a hard time believing that you’re doing them. / Any one of a dozen things that Trump has done overtly would have resulted, if done clandestinely by another President, in near-universal cries for impeachment, if not for immediate resignation."
  A postura de Trump dá-lhe a liberdade do descaramento e a tranquilidade da impunidade. Na bolha do seu espectáculo de episódios caricatos e insólitos, governa a prazer, soberano munido de livre arbítrio a que só falta mesmo o arbítrio. Fora dela, os seus opositores encarniçam-se em frente de combate cerrada, intransponível. Perde ele algo por acabarmos fechados em muros tão apartados?
  
  Segundo conta Homero na Ilíada, devastado por transcendente fúria pela morte de Pátroclo, Aquiles vinga-se matando Heitor, assassino do companheiro. Leva depois consigo o cadáver do rival, negando-lhe as honras fúnebres. Não suportando o tratamento dado ao corpo do filho, Príamo vai junto de Aquiles pedir-lhe que lhe restitua o corpo.
  Como consegue Príamo chegar junto do pelida? Rei de Tróia, símbolo máximo da hierarquia inimiga e sumo governante da cidade resistente, é impensável aceitar que Príamo deixe simplesmente o seu reduto e visite o campo inimigo com pedido tão inútil para esforços de batalha. Mas assim o faz, e com sucesso. Consegue-o porque se esconde: não vai acompanhado de séquito ou escolta durante o dia, como fora próprio de monarca, antes chega sozinho (só com um velho) de noite, como viajante sem pátria, com pretensões de intruso clandestino. E vai guiado por Hermes, divindade das secretas passagens e dos caminhos esconsos. Tivera Príamo levado os seus guardas ou soldados, não teria podido entrar. Tivera exibido a coroa à entrada, os guardas não o deixariam passar. Foi despindo o manto real que pôde ser aceite. Sem coroa para dar comandos, usou pedido humilde de entrada para que lhe abrissem as portas.
  Para conseguir demover Aquiles e obter o corpo do filho, Príamo precisa de se aproximar do inimigo: diferenciam-se em tudo o que possamos imaginar, e Príamo, em rigor, não busca fazer-se parecido a ele. Começa antes por se aparentar a Peleu, pai do guerreiro: também ele há-de sofrer a agrura da velhice, com o consolo, porém, de ter o filho saudável e forte. Não assim o rei de Tróia, desprovido de quase toda a prole e deixado para chorar a perda dos filhos que corre o risco de nem enterrar. Depois, com todos os motivos para condenar Aquiles, beija a mão que deu a morte ao seu filho, e o pelida, condoído e emocionado, acede às súplicas do monarca prostrado.
  Para entrar nos acampamentos aqueus, Príamo precisou de se encolher e esconder no segredo das passagens esconsas. Para chegar ao coração de Aquiles, teve de baixar a cabeça para lhe beijar a mão. Não escondeu os sentimentos, mas o manto. Despiu a coroa para abdicar do espectáculo, e, mais humilde e despercebido, teve sucesso junto de quem tinha poder absoluto sobre ele. Nunca teria conseguido, se não se tivesse aventurado na noite. Não chegaria longe, se tivesse anunciado a chegada. Violou todas as formalidades e protocolos, ignorou todos os rogos e avisos, e assim chegou ao inimigo e conseguiu tréguas e empatia – mas só porque procedeu às ocultas.

  A coragem de Príamo qunado se esconde, arrojando-se contra todos os perigos e conselhos, é a que falta a Trump, sempre protegido pela abertura com que dispara as suas exigências. Por ignorar os protocolos durante o dia, Trump nunca poderá chegar onde os viajantes clandestinos ousam aventurar-se durante a noite, guiados por Hermes. Julga-se forte por se ver protegido pelos muros de que se orgulha, mas é a cegueira perante as conveniências que lhe fecha os caminhos que nos levam até aos verdadeiramente poderosos. Trump nunca chegará ao coração de Aquiles.  

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Por detrás do monstro


Ácis, Galateia e Polifemo (Pompeo Batoni)

  No Livro XIII das Metamorfoses, de Ovídio, Galateia fala da paixão que lhe tem o ciclope Polifemo, e de como este, esquecendo seus rebanhos e grutas, cuida do aspecto para se mostrar mais atraente para a nereide, penteando o cabelo com um ancinho e a barba com uma foice, e olvidando mesmo as emoções cruéis em geral. Senta-se depois numa colina e, tocando flauta, canta o seu amor pela ninfa.

  Porque é Polifemo um monstro? Na tradição clássica, as suas feições são tão horrendas como os ímpetos e os gestos. Polifemo é terrível de olhar e de sofrer: tem gosto por matar e comer pessoas, é feroz e sádico. É também feio e assustador.
  Mas os monstros também se apaixonam, e quando se enamora, Polifemo tem a preocupação, que só quem tem esperança pode sofrer, de se arranjar para a amada: espreita o reflexo na água e treina olhares, penteia-se e desbasta a barba. Parece ridícula, porque obviamente iludida, a sua pretensão de parecer bonito aos olhos de quem ama. Se se apaixonara por criatura similar, podíamos ver de fora e imaginá-los felizes, até compreendê-los, supondo-os iguais a ninfas e heróis, mas com outros rostos. Ele tem, contudo, o coração dos verdadeiros amantes – o que os leva a saltar limites –, e deseja não quem tem próximo, mas quem nunca pode alcançar: a ninfa que nunca o aceitará. Pelo contraste, surge disparatada a sua intenção, pois não nota a distância de opostos entre os desenhos da nereide e os rabiscos do seu rosto: dono de um só olho, conhece uma verdade apenas, a da beleza de Galateia, faltando-lhe o outro olho para se descobrir feio aos olhos dela. Não imaginando quão horrendo lhe aparece, supõe que ela o pode pensar bonito, talvez porque o amor é cego e não o deixa ver-se a si mesmo, ou porventura porque nos seus devaneios mora algo puro e inocente: a crença de que quem ama é bonito só por amar.
  Galateia tem aversão imensa ao ciclope e despreza-o, mas que superioridade é a sua? Será ela bonita para todos os amantes – homens e monstros –, mas só o ciclope, dono de um único olho, vê mais além, porque só ele consegue ver como pode ser bonito o que é diferente. É ele cego quando deixa escapar o ser tão feio, mas igualmente cega é ela quando não vê como pode ele para outros olhos ser bonito. Nenhum rosto merece ser condenado, nem amor nenhum desprezado, porque para crescermos em desprezo e superioridade, é preciso diminuirmos, encolhermo-nos para cabermos nos apertados limites do pouco que conhecemos. O ciclope é inconsciente, mas de universo vasto, porque salta fronteiras, e amando sem conhecer diferenças, abre-se a tudo que ama. Galateia tem toda a noção e sentido do ridículo, mas é tacanha de sensibilidade e mesquinha de sentimentos, porque pensa só haver miséria para lá do seu jardim.
  Verdadeiramente tudo vê o ciclope, ao ponto de podermos desconfiar se é mesmo amor que o move, pois na ninfa não descobre apenas a beleza dos atributos, senão igualmente os defeitos das inclinações: descreve-a casmurra, falsa, inconstante, soberba, espinhosa ou desapiedada. Porque em tudo isso fala a zanga de não a ter, mas também porque de tudo isso ela tem um pouco. Vê ainda a preferência por ela votada a Ácis, e dá largas a toda a violência bárbara do seu ciúme. Mas o canto pelo qual se declara amorosamente tem toda a riqueza possível de encontrar em qualquer coração humano: move-se pela adoração apalermada e embevecida dos normais apaixonados, chama cheio do desejo possessivo que faz os monstros, ameaça com a brutalidade dos gigantes. Mas na inocência da sua inconsciência tão ciente, na ousadia ridícula de falar à ninfa, na coragem desmesurada de mostrar o rosto aos olhos altivos mora também a fragilidade emocional dos donos de coração.
  Polifemo tem um coração, algo que, provavelmente, Galateia não possui, pois só deseja à superfície, dona de apetites, caprichos, prazeres e incómodos, mais que de sentimentos e empatia. É bela a ninfa, e não destrói nada, nem animais nem plantas, não magoa nem sequer pisa, talvez. Mas só porque não está viva, está distante, demasiado etérea para incomodar as ervas sob os pés. Está vivo o ciclope, os seus sentimentos pesam muito, são densos por serem verdadeiros, e não lhe é possível mostrá-los e deixá-los saírem sem deixarem pegadas. Polifemo não pode caminhar sem destruir, porque imperturbado queda o mundo só depois de ninguém passar: somente os fantasmas deixam a natureza intocada. Polifemo é demasiado verdadeiro para ser delicado, e o seu coração enche-o em excesso impossível de conter. Porque é Galateia uma ninfa, criatura de maravilhas e adorada? Porque não tem peso nos gestos, nem gravidade nos actos: sem coração que lhe desequilibre os movimentos, pode passear e amar pelo mundo passando despercebida entre respirações. Não assim o terrível ciclope, monstro nas formas e nas pegadas: o seu coração pesa em demasia para não balançar, e, incapaz de mentir nos gestos como nas palavras, usa-o em tudo o que diz e faz. É esse ente maldito que Galateia não tem e a deixa tão leve, mas que em Polifemo o prende tanto à terra, que nos revela o segredo mais humano por detrás do horror que nos inspira: é o seu coração que o faz um monstro.

domingo, 27 de setembro de 2020

Uma coisa pequena a brilhar no escuro

  No conto "A small, good thing", de Raymond Carver, no dia do seu oitavo aniversário, Scotty é atropelado e, horas depois, levado para o hospital. Nos dias seguintes, enquanto aguardam melhoras, os pais vão recebendo telefonemas de alguém avisando que há um bolo por levantar, ou nada dizendo. A criança acaba por morrer, e a mãe lembra-se de encomendar um bolo a um padeiro para o aniversário do filho, pelo que deve ser ele do outro lado do telefone. Furiosa, vai com o marido, durante a noite, ao encontro do padeiro, que, inicialmente, se mostra zangado por não ter sido recolhido o bolo, mas ao saber da morte do rapaz, pede perdão, fala da sua solidão e consequente inaptidão social, e oferece-lhes pães acabados de fazer, apresentando-os como uma coisa pequena, mas boa ("a small, good thing"). Os dois aceitam, ouvem o padeiro, acalmam-se e, já nascendo o dia, têm pouca vontade de partir.

  É precioso este momento para os conversadores. Perdidos no turbilhão das emoções que ameaçam, descobrem no meio da tragédia que não têm de cair, podem apoiar os pés em coisas boas, ainda que pequenas. O pão acabado de fazer não vale um filho, não é um projecto de vida, nem preenche de significado o quotidiano de ninguém, porque apesar de boa, é coisa pequena. Mas do mesmo modo, apesar de pequena, é boa. Podemos descortinar uma sabedoria rudimentar – escondida, porque profunda – neste padeiro simples que não conhece muito, mas tem consciência suficiente para observar e notar, na pintura negra que lhe invade a casa, que os pães acabados de fazer são, ainda assim, uma coisa boa, um pequeno prazer. Por isso, embora levando dias tristes e deprimentes, a sua vida não é de pobreza sem tesouros, porque a pobreza ainda permite pequenas riquezas, se tivermos olhos para as descobrir e engenho para as revelar.
  Ao mesmo tempo, curioso jogo de espelhos se joga entre estes deambuladores. Temos de um lado os pais vindos de perder o filho, o algo enorme que lhes enchia a vida, e que agora deixa um vazio gigante. E do outro o padeiro, cuja vida não conhece algos grandes, pois ele só possui coisas pequenas. O casal perdeu a coisa grande que tinha – nessa linha, perderam tudo, porquanto tudo perde sentido morto o filho. Para os consolar, o padeiro, que nada tem, oferece-lhes tudo: partilha o seu pequeno tesouro, e assim dá mais que todos, segundo a parábola de Cristo, pois dá tudo o que é seu. Com uma das coisas pequenas que lhe fazem os dias e nunca o farão rico, o padeiro enriquece a vida dos desesperados pais que não verão o filho de novo, e, por isso, serão pobres para sempre.
  Um vazio como o deixado pela morte do filho, buraco tão grande, não se preenche com coisa tão pequena, naturalmente, nem sequer com muitas delas acumuladas. O padeiro, contudo, não lhes dá somente o pão quente: também lhes chama a atenção para ele, fazendo-os notar que estão a receber uma coisa agradável. Perdidos e afogados na escuridão da dor, cegos no vazio do seu buraco, eles nada vêem, parecem condenados a levar o resto da vida mecanicamente, sem encontrarem significado para os actos ou perspectiva para os dias vindouros. Aparece, todavia, o padeiro para lhes notar que as coisas não continuam simplesmente aí, como pedras; tenham sentido ou não, elas ainda podem ser boas, e aí está um exemplo adequado para o demonstrar. Amostra pequena em exibição, mas incomensurável no salto que permite ao casal dar, possibilitando-lhes o serem de novo capazes de ver que no mundo, ainda há motivos para sorrisos, por mais vãos ou transitórios. Vãos e efémeros os sorrisos, nem por isso menos valiosos, porque no escuro brilham.

domingo, 30 de agosto de 2020

Abdicar de um rosto

  Na série Mahou Shoujo Madoka Magica (Magica Quartet), os incubadores são uma raça que procura evitar a morte térmica do universo. Para isso, valem-se da única forma de energia independente das leis da termodinâmica: a emocional. Oferecem a raparigas adolescentes com o maior potencial a oportunidade de terem qualquer desejo realizado e receberem poderes mágicos de combate, em troca do que passarão a combater bruxas, criaturas misteriosas e destrutivas. Na verdade, as bruxas foram em tempos raparigas mágicas como elas, que cederam a sentimentos negativos. É o espectro emocional entre a esperança e entusiasmo iniciais e o desespero e descrença crescentes das adolescentes transformadas em bruxas que os incubadores aproveitam para absorverem a energia de que precisam. No final, porém, Madoka usa o seu desejo para impedir o aparecimento de quaisquer bruxas, passadas, presentes ou futuras. A História é reescrita, Madoka desaparece do mundo e é apenas lembrada pela amiga Homura. As raparigas mágicas continuam a lutar contra espectros, mas quando fraquejam e caem, não mais se tornam bruxas, antes se purificando e desaparecendo. Madoka deixa de ser uma rapariga e torna-se um princípio implantado no mundo, um mecanismo que aparece no momento em que as raparigas caem, para impedir que se transformem. O balanço energético do contributo das raparigas para o universo deixa de ser zero, e assim, Madoka honra as esperanças delas, e os seus sacrifícios. A cada vez que alguém condenar a ousadia de ter esperança, Madoka aparecerá para lhe dizer que está errado.


  Na sua análise do ep. 2, Bobduh nota como o mundo em que Madoka vive é seguro, agradável e relativamente vazio, um mundo que exige pouco, mas não oferece a Madoka grande coisa quanto a identidade. Acrescenta que Madoka é demasiado nova para saber quem é. Perante a oportunidade de se tornar uma heroína com poderes mágicos e deveres, em troca da concretização de qualquer desejo, ela hesita e parece duvidar do seu valor por completo. Conhece Mami, rapariga mágica experiente, e vê-a como ser de infinita graça e beleza, a mulher forte que a mãe de Madoka gostaria que esta fosse. Vendo Mami entregando-se a salvar os outros, pensa que se "alguém como ela [Madoka] pudesse ajudar os outros, seria bom".
  Olhando à luz do aqui sugerido, como ler o sacrifício final de Madoka? É um gesto imenso, sem dúvida, o de se prestar a dar-se por toda a eternidade, em todos os tempos, mesmo os alternativos, para evitar o aparecimento de bruxas, ao mesmo tempo apagando a sua identidade e desaparecendo dos tempos e lugares concretos, particulares, não restando da sua imagem mais do que ecos, noções vagas, difusas, de pessoas que não a recordam verdadeiramente. Mas como podemos valorar esta atitude?
  Repare-se em como vê ela Mami: Madoka não tem a sua identidade formada, como é fácil apontar. As suas preferências e gostos não têm aprovação universal pelas amigas, e ainda que tivessem, são superficiais – vive num mundo seguro, mas que, como diz Bobduh, não oferece muito em termos de identidade. A oportunidade que recebe fá-la sentir-se culpada, porque envolve uma responsabilidade para a qual não se sente à altura: se responsabilidade é responder por alguma coisa, apresentar-se 'dando a cara por', temos que Madoka sente quão deficitária é a sua presença, quão pouco e indefinido é o que tem para responder. Na imagem de Mami a lutar contra bruxas e sacrificando-se para ajudar outros, cheia de graça e beleza, Madoka vê não apenas bondade e sentido ético louváveis, mas igualmente um quadro de completude e essência. Madoka tem um primeiro vislumbre de algo que pode abraçar e dar-lhe rumo, direcção.
  O seu sacrifício final, todavia, é um extremar deste percurso, a tal ponto exagerado que leva ao seu desaparecimento, rectius, da sua identidade. No quarto episódio, Madoka não suporta a ideia de que Mami não será lembrada, ninguém terá sequer conhecimento da sua história. Ora, se Mami, a imagem idealizada da identidade que Madoka gostaria de atingir, não só desapareceu com facilidade e crueldade como nem sequer fica nada dela para recordar, que pode Madoka esperar atingir prosseguindo um caminho individual para o qual não consegue sequer eleger um rumo? Resta-lhe a solução inversa de abdicar de construir uma identidade individual propriamente dita.

  Madoka não salva apenas outras pessoas, salva-se a si mesma da sua incompletude e indefinição, das deficiências de formação da sua identidade. Madoka espalha-se por todos os tempos e lugares, abraçando em bondade e sacrifício todas as escolhas e dramas das raparigas mágicas, passadas presentes e futuras, mas deste modo, não chega verdadeiramente a formar uma identidade propriamente dita: abarcando tudo, perde os contornos que só a finitude podia proporcionar; estendendo-se para sempre no tempo, perde a completude só possível com o fim trazido pela morte.
  Madoka salva-se dos traços rascunhados insuficientes para sentir um mínimo de segurança na edificação da sua pessoa, abdicando destarte do esforço mais dramático que nos confronta pela vida fora: o de nos tornarmos quem somos, de definirmos a nossa identidade, inventando-nos todos os dias, confirmando-nos a nós mesmos nos dias seguintes, renovando-nos e remodelando-nos na superação dos erros, das desilusões, das perdas. No seu altruísmo máximo, Madoka deita fora todo o egoísmo, e assim, a coragem bondosa do seu sacrifício é a cobardia de quem prescinde de continuar criatura frágil, obrigada a lutar todos os dias não tanto para sobreviver como para escrever a história de si mesma, criando-se como protagonista da mesma. Quase deus na omnipresença, mas sem arbítrio nem escolhas para ser pessoa, Madoka foge de se tornar mulher para se tornar anjo: ganha asas para voar onde ninguém a vê, perde pernas para caminhar onde talvez pudesse alguma mão amiga agarrá-la quando caísse.
  Debruçando-se sobre a última conversa de Madoka com a sua mãe, Bobduh aventa que depois de ter estabelecido laços com Kyouko, perdido a amiga Sayaka e percebido o quanto significa para Homura, Madoka já está consciente de ter valor e de a sua existência ser importante, porque há gente que a ama, e isto, por si só, traz responsabilidade. Madoka não precisa já de abraçar um grande desígnio ou propósito para dar sentido à sua vida, ou de sentir o reconhecimento dos demais, basta-lhe ligar-se aos outros, ser importante para eles e dar-lhes importância.
  Parece seguro que Madoka, nos últimos episódios, perdeu a insegurança de sentir não ter valor, e aprendeu que ligando-nos aos outros, ganhamos significado para eles. Mas isto não lhe oferece identidade, de modo que ainda precisa de um gesto definitivo que a ligue a todos. Esse gesto redunda, inevitavelmente, em não se ligar verdadeiramente a ninguém, já que enquanto seres humanos, estamos limitados nas conexões verdadeiras que conseguimos: elas serão tanto mais ricas de conteúdo, tanto mais profundas, quanto mais próximas, íntimas, sejam. Mas é disso que ela abdica. Dispensando os limites que a poderiam situar, Madoka dispersa-se; não ficando presa a um lugar, deixa de estar em lugar algum.

  Tem razão, por outro lado, Bobduh quando afirma que a força de Madoka mora na empatia, na ligação que sente com os demais. Mas deixando de ter rosto e individualidade, passa a definir-se identificando-se com o próprio gesto de dar, de se oferecer, de desaparecer em dádiva aos outros. Não se torna com isso uma pessoa (pelo contrário), mas realiza ao máximo o potencial de um dos traços mais humanos que temos, a empatia, dissolvendo-se no gesto de se entregar.

  Percebendo o sacrifício de Madoka, Homura chora a solidão do destino da amiga, e esta responde que nunca estará sozinha, todos estarão com ela. Estão ambas certas por um lado, erradas por outro. Homura tem razão, porque Madoka não mais fará parte integrante do mundo enquanto sujeito visível pelos outros, susceptível de entrar em interacções conscientes com eles. Mas engana-se ao imaginá-la sujeito separado, como se Madoka continuasse a ser a mesma pessoa, mas fechada num quarto à parte do mundo. Na realidade, ela deixa de todo de ser sujeito. Madoka, por sua vez, porquanto não fica afastada do mundo, permanece nele, e todos estarão, de feito, com ela. Mas ela não será mais uma consciência individual propriamente dita, não é uma pessoa, não é visível, nem tem rosto. Madoka não poderá nunca verdadeiramente beneficiar de companhia, porque lhe falta a base para isso ser possível: ser capaz de solidão.

sábado, 1 de agosto de 2020

Graça na derrota

  No Livro de Jonas, Deus chama por Jonas e ordena-lhe que vá a Nínive – cujo estridor pecaminoso chegara aos ouvidos divinos – avisar as gentes do castigo por vir. Jonas começa por caminhar na direcção oposta, mas quando Deus o persegue com tempestades e o salva das ondas mantendo-o na barriga de um grande peixe, Jonas, com uma oração, parece aceitar o seu papel, é libertado e desloca-se à cidade. Aí, o seu alerta recebe a atenção devida dos habitantes, que mudam de procedimentos. Deus então arrepende-se e revoga o seu decreto, e o profeta, enfurecido, protesta contra Ele, considerando melhor morrer que seguir vivendo. Sai de Nínive e detém-se a observá-la. Alegra-se com uma planta (talvez uma aboboreira) nascida a seu lado, mas breve ela decai, corroída por um verme, e o irado Jonas quer de novo morrer. Deus confronta a sua dor pela planta com a condenação a que quer votar as pessoas e animais da cidade.

  Muito arrastar é necessário para levar este profeta relutante a cumprir o dele esperado. A primeira reacção ao comando divino é partir para Oeste em vez de Este. O voo desta pomba (Ionà) não é simplesmente transviado, mas rebelde, pois ela quer fugir, demitir-se da viagem. Mas o mais recalcitrante e contrariado dos profetas não chega a dizer não – chegam-nos apenas, mais tarde e pela sua boca, os ecos de uma recusa por ele nunca expressada.  Em apenas uma das ocasiões em que é interpelado replica com palavras, e não é para dar a negativa. A resposta predominante de Jonas é a do silêncio, e não é somente o único dos profetas silenciosos perante o chamamento das alturas, repete ainda essa mudez em diversas ocasiões.
  Escapando numa embarcação, o profeta não parece assustar-se com a procela vinda dos céus. Os marinheiros atemorizam-se com a tempestade e invocam as suas divindades, como cabe, mas Jonas responde-lhe indo dormir, parecendo não apenas querer guardar silêncio, mas nem sequer ouvir. Ou não teme os ventos abanando o barco, ou quer engolir o temporal, transformando-o em pesadelo, coisa desaparecida pela manhã: prefere deixar passar o barulho e acordar à vinda da bonança. Quando os homens o confrontam, porém, responde-lhes, mostrando-nos ser afinal capaz de entender invocações e devolver respostas, dar explicações, oferecer motivos e até soluções. Se não responde a Deus, em definitivo, não é por não poder. Por sua indicação, é atirado às águas, e ainda aqui não quer responder ao chamamento divino, entregando-se, tudo o indica, para morrer afogado. O peixe salva-o e guarda-o, porém, e o prófugo Jonas não tem mais para onde fugir, pois o fugimento levou-o à escuridão dum beco. É tempo de aceitar a sua missão.
  Nem agora, contudo, tem ele afirmativa simples para entregar. Recita um salmo, com aparência de deslocado neste texto, comunicando assim sua disposição do modo mais indirecto, e, já devidamente acorrentado ao seu papel, o peixe solta-o. Como nota Erri de Luca (“Quattro passi con Ionà/Giona”), depois de engolir Jonas, o peixe liberta-o (vomitando-o) já pronto para, por sua vez, libertar a palavra de Deus que engolira.
  Ouvindo o alerta do profeta estrangeiro, os prevaricadores comedem seus hábitos e corrigem seus comportamentos, levando Deus a arrepender-se e a revogar a condenação. E aqui, Jonas lembra as palavras ditas quando morava ainda na sua terra (as tais que nunca ouvimos), bem avisado da mudança de ideias prometida pela misericórdia divina em caso de arrependimento, e pede para morrer, pois é isso preferível a seguir vivo: segundo Luca, é o mais amargurado dos homens, pois até Job, atingido no corpo, nos afectos e nas posses, pede explicação, coisa que Jonas dispensa. Só quer morrer.
  Em vez da morte, Deus dá-lhe uma pergunta, questionando a sua irritação, mas Jonas não quer diálogo nem reconciliação, quer desvanecer. Sai da cidade e senta-se à espera dos acontecimentos.
  Não obtém a morte, recebe antes uma aboboreira e respectiva sombra, e podemos imaginar o profeta amuado sorrindo agora em sua alegria. Mas logo a aboboreira morre destruída pelo verme enviado por Deus, e o sol escaldante queima o vidente. E então o pretenso servo responde directamente ao Senhor pela primeira e única vez, quando confrontado novamente com a sua ira: está irado até à morte. Responde dirigindo-se a quem pergunta, mas a resposta, vendo bem, não é directa, é a reafirmação do seu pedido, quer ainda falecer. E assim, não admira que o texto termine, não verdadeiramente com a questão-argumento divino sobre a possível incongruência na piedade de Jonas, mas sim com o silêncio por este devolvido.
  Endurecido em seu silêncio em oposição aos céus, Jonas é inalcançável. Aceita, a contragosto, levar a palavra divina aos gentios, fazendo-a assim sua, ou, mais ainda, identificando-se com ela: o desespero de Jonas é o de quem não aceita ser desmentido, não por simples teimosia, mas por perder a cara quando o prometido não é cumprido. Destarte, a sua justiça não é sequer propriamente retributiva, pois ele não luta por responder ao pecado com o castigo, senão para ver cumprida a palavra: não tanto punir o criminoso como aplicar a lei, i. e., quer ver castigados os assírios, não simplesmente por terem pecado (pois já o faziam quando ele fugia), mas sobretudo porque a lei assim o ditou já expressamente.
  A justiça divina joga, todavia, com regras menos lineares, abarcando o arrependimento (do prevaricador e do juiz) e o perdão. No percurso de Jonas, o caminho só se faz em frente, e a sua obstinação é a de não aceitar a meia volta divina por ele adivinhada a princípio. Deus tenta convencê-lo e argumentar, mas Jonas fecha-se. É orgulhoso, como Luca salienta? É fácil concedê-lo, mas não parece Deus reagir a isso quando faz cair a aboboreira, antes soa mais convincente encontrar aqui a lição a receber pelo profeta. Não a recebe, porque não a quer. Jonas não deseja razões, nem, muito menos, está disposto a questionar a sua posição. A sua lógica é limitada, porque incapaz de abarcar desvios ou imaginar evoluções, mas absoluta, porquanto se basta a si mesma e de nada precisa para se manter de pé. Jonas acampa perto da cidade por castigar, sem casa aonde voltar, ou pátria à sua espera, pois é um desterrado: desacreditado pelo seu mandante, não tem mais palavras a levá-lo em seus passos, nem rosto para exibir aos penitentes a quem prometeu a destruição e que agora vê salvos. Resta-lhe morrer, porque não vive.
  Depois de remir os pecadores, Deus pretende resgatar o profeta contrariado, questionando-lhe a ira, os motivos e a coerência. É o único caminho, perante lógica tão fechada: Jonas não está disponível para ouvir razões de outras configurações; por isso, é mister minar internamente a sua lógica. Sem sucesso: o silêncio de Jonas é indestrutível, e a criatura pequena, sujeita a todos os caprichos das alturas, moldável tal barro e manipulável tal marioneta, é afinal capaz de barreira infrangível pelo seu Senhor: a do seu querer. Pequeno em tamanho, limitado no tempo, frágil no corpo, este bicho faz-se infinito pela vontade, e contra ela, Deus nada pode.
  Diante da vontade indomável, podia Deus mostrar graça na derrota: incapaz de convencer Jonas, restava-lhe aceitar a impossibilidade do resgate, e deixá-lo desaparecer no lugar que o vidente obstinado não quer abandonar. Em vez disso, persiste a divindade em perguntar e argumentar, não aceitando desistir do servo. Como finda o texto afinal? Com o silêncio de Jonas, sem dúvida, mas também com a espera dos céus, a aguardar a resposta do mudo teimoso. Não virá, provavelmente nunca, mas é na derrota e no não saber admiti-la que afinal Deus mais se revela, aceitando esperar pela resposta de Jonas, mesmo prometendo durar a espera a eternidade. Tem tempo para isso.

domingo, 28 de junho de 2020

O preço de encantar a noite


Natividade Corrêa

  No livro A Fada Oriana, de Sophia de Mello Breyner Andresen, Oriana perde os poderes e as asas como castigo por negligenciar os deveres de fada.
  Numa das visitas que realiza pelo seu purgatório pessoal, encontra o poeta para quem costumava encantar a noite. Ele começa por reconhecer-lhe o rosto, mas logo duvida, não lhe vendo varinha nem asas. Diz-lhe então:
  - Se és Oriana, encanta a noite.
  Sem varinha, Oriana não pode aceder ao pedido, e o poeta, furibundo, expulsa-a como impostora.

  Mais que pedir à fada que encante a noite, o poeta impõe a condição: 'se és a mágica donzela que dizes ser, encanta a noite. Se não o fizeres, não és Oriana'.
  Condição terrível: pelo julgamento do homem, Oriana deixará de ser quem é se não cumprir o gesto que ele lhe demanda. Tirano poeta nos soa este, mas que faz ele senão absorver a identidade que a fada lhe ofereceu? Limita-se a reduzi-la à eficácia do gesto por ela prometido.
  Foi Oriana que prometeu encantar a noite; fê-lo quando a encantou em todas as ocasiões em que apareceu, mudando a noite consoante lhe era pedido. Eis, portanto, como se ofereceu prometendo: 'sou Oriana, sou uma fada, encanto a noite'. Prometeu e cumpriu. Ela própria, deste modo, se reduziu ao gesto de encantamento, e a tal ponto o fez que, aparecendo sem o fazer, deixa de ser quem era até aí.
  Tem assim razão o vate, e essa razão deu-lha a fada. Nem por isso deixa de ser tirano.
  É tirano, porque o seu pedido é demasiado violento. A exigência que apresenta é destruidora: 'não és tu, se não fores capaz de ser tu'. Afirmação tão lógica quanto violenta, tão redundante quanto aniquiladora.
  Que falta ao poeta? Misericórdia. O gesto de abertura de deixar que a fada seja não sendo fada. Quando Oriana lhe diz que não pode encantar a noite, falta ao poeta a bondade necessária para a abraçar na noite escura. Aceitar que a escuridão vai envolver ambos e que é o momento de se juntarem. Aceitar a fada que nessa noite, não é fada.
  Não é capaz de piedade o poeta, não aceita a fada incapaz de ser fada. Para ele, aquela não é Oriana. Contudo, não é cruel, senão tirânico. Não tem maldade, nem ódio (zanga sim, mas não mais), tem impiedade. Não é mefistofélico, mas frio.
  Também carece de imaginação (por isso precisa de Oriana). Se a tivera, podia imaginar uma noite encantada para os entreter. Mas então também não precisaria de fadas. A sua pobreza imaginativa é a dos poetas antigos, que chamavam por musas. Quando a musa surge, porém, dizendo que já não é capaz de o inspirar, ele demite-a do papel.
  Não é para entreter fadas que puxamos pela imaginação. O poeta é pobre, e isso faz dele o que é: um tirano. Não faltou ao encontro com a fada, porque continuou a ser o que sempre foi: cabaneiro, falho de chama, ditador. Pede e exige a Oriana, porque sempre fez isto: aceitar o que a fada lhe prometeu e foi dando até agora.
  Faltou a fada ao encontro com o poeta, porque quando compareceu, disse que não podia ser quem era. Quis continuar a ser quem fora até aí, mas não encontrou piedade. O poeta não a deixou ser Oriana, assim a castigando por não ser Oriana como sempre fora. A impiedade do poeta é a mais radical e cruel possível, é a de não lhe permitir não ser quem é, mesmo que só desta vez.
  Saltando dum precipício para salvar uma idosa que caíra, Oriana consegue recuperar as asas e a varinha. Quando visita novamente o poeta, este reconhece-a e pede-lhe que encante a noite, ao que ela acede. Mas Oriana vem voando: não tem os pés no chão. Chega mais etérea que nunca esta fada, e confirmamos o que já sabíamos: o que o poeta esperava era a Oriana exigida quando a moça se mostrou incapaz de encantar a noite, e não a pessoa que ele mandou embora.
  Onde ficou a rapariga que o poeta rejeitou, a quem foi negada a hipótese de não ser fada por uma noite, que estendeu a mão e não encontrou a do poeta, que ficou sozinha para se perder na escuridão? Podemos estar seguros de que não voltou do precipício a que se atirou. Porque não tinha asas para voar, nem condão para encontrar saídas. Voltou a magia, e o poeta sorriu, porque o encanto que esperava tornou. A noite encantou-se e ele pôde criar versos. Tornou a fada, mas foi-se a menina. Surgiu uma vez pedindo ajuda, mas o poeta não a esperava e não tinha espaço para ela. Foi embora, enfim, porque só assim podia a fada voltar. Desapareceu, porque é esse o preço de encantar a noite.

sábado, 30 de maio de 2020

O lugar para nos perdermos

  Numa carta de 13-14 de outubro de 1927, Virginia Woolf pergunta a Vita Sackville-West, mulher que amava, se é verdade que ela range os dentes durante a noite: "Is it true you grind your teeth at night?"

  Como se ama alguém, e como se diferencia isso de conhecer quem se pretende amar?
  Woolf escrevia por então Orlando, inspirado em Vita e tido por um dos filhos desta como longa carta de amor em forma de literatura. As perguntas que lhe dirige são, portanto, pesquisa para o seu livro. Mas não apenas. Também quer conhecer quem ama – porque conhecer é afinal a única forma de possuir que pode ter quem não vive junto (e a mais eficaz para quem vive). Privada da intimidade prolongada de Vita, resta a Woolf buscá-la pelos dados e peculiaridades. Só conhecendo as curvas pode traçá-la de longe, tornando-a presente.
  Woolf quer então descobrir Vita à luz do candeeiro, para encontrar o que a luz distraída do dia não nota (“I want to see you in the lamplight (...) just to sit and look at you, and get you to talk, and then rapidly and secretly correct doubtful points”). Visa enriquecer o objecto de adoração com pormenores. Mas como se vê, ama sem idealizar, pois a idealização foge à minúcia, sofre horror a vincos e rasgões: tudo quer liso e sem manchas. Não idealiza Woolf, que ama buscando esgotar a realidade daquela a quem ama. Precisa de lhe conhecer as imperfeições, dar conta das particularidades que a situam pela precisão. Querendo ajustar o retrato, Woolf abdica de retratos, porque substituindo pelo conhecimento a distância, consegue enganá-la.
  Woolf não se assume, enfim, como criatura adorante, senão conhecedora: conhecer é amar, porque só conhecendo pode criar quem já existe, e a criação é o acto de amor mais genuíno e frutuoso, por dar fruto que nasce para ser amado. Conhecer é a única via que lhe resta para poder reinventar a mulher que não pode agarrar nem quer adorar.
  Curiosa resposta (não cronológica: consta de carta de 21 de janeiro de 1926) encontra então Woolf na correspondente: “I am reduced to a thing that wants Virginia”. Reduzida a coisa querente, a amada apaga os pormenores que a amante pedia. Transforma-se em amante a coisa amada, e logo o faz reduzindo-se ao sentido único de desejar e conhecer quem ama. Deita fora seus pormenores, seus erros e imperfeições, mostrando-se disponível para ser preenchida com as particularidades de quem abraça.
  Escreve ainda Vita: “I miss you even more than I could have believed; and I was prepared to miss you a good deal”. Preparada para sentir a falta até dado ponto, descobre senti-la além do esperado. Em pureza de sentimento, não é no conhecimento do que se procura, na intelecção do que se toca, que mora o amor, mas neste excesso, nesta deriva delirante que sempre surpreende retirando o chão ao pé que julgávamos poder pousar com segurança.
  Sem este excesso, sem esta surpresa e este andar perdido, nada move o desejo de abraçar ou de saber. Só transviado se pode amar conhecendo. De pés assentes na terra, aprende-se como cientista, não como amante. Nem Woolf, nem Vita são cientistas. Ambas escritoras, não puderam deixar de pensar, de querer conhecer e abraçar como quem sabe. O que parece transpirar, entre as linhas usadas para se adivinharem, é o desejo derradeiro de se perderem – mas perderem-se nos corredores do palácio último que sonham habitar: no coração que, tão distante, trazem no peito.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

O preço dos fantasmas

  Lucius Tarquinius Priscus (616-578 a. C.) foi o quinto rei de Roma.
  Grego, viu em Roma terra de oportunidades, e para lá migrou. Rapidamente se fez conhecido: rico, deu dinheiro para projectos públicos, caridade e outros destinos, e assim o seu nome se foi tornando familiar. Por aqui se indicia a linha paradoxal que lhe marca a figura: a sua presença parece crescer na exacta medida da sua ausência. Assim é com a fama: o famoso está em muitos sítios sem precisar de estar fisicamente em nenhum deles.
  Subindo na escala social, Priscus acabou por se fazer amigo do rei, tão próximo que, com a morte do monarca, ficou guardião dos dois filhos que ele deixou. Guardou-os, mas sem os servir: não demorou a enviá-los numa expedição, e logo convenceu o Senado a realizar eleições para ser escolhido novo rei o mais depressa possível. Os amigos que já fizera por ali garantiram-lhe, como previa, a eleição. Que nos diz este momento da figura? Tarquinius fez-se eleger aparecendo. E apareceu bem ciente de que para o fazer não basta, nem é sequer preciso, estar presente: essencial é ser visto, seja com os olhos da cara ou com os da mente. Tarquinius notou aos demais que o rei desaparecera e o trono estava vazio. Mestre na arte política da imagem e da oportunidade, fez-se necessário inventando uma crise, e soube mostrar-se providencial a todos os holofotes. Assegurou a ausência dos sucessores e disse presente quando todos o pudessem ver. Viram, votaram, e aí estava ele, feito rei.
  Aumentando o Senado com mais uma centena de homens, todos a ele obrigados, Priscus fez sua a vontade deste órgão, crescendo ainda mais em presença. Tão grande se fez esta que, para celebrar as suas vitórias militares, não havia teatro ou estádio de tamanho que bondasse: fez então construir o hipódromo que viria a ser o Circo Máximo, um dos grandes estádios desportivos da Antiguidade, que havia de durar pelos séculos do império romano. Priscus estendia-se no espaço pelas consciências, e no tempo pelas obras.
  Não era bastante ter um lugar para celebração. Era preciso um ritual: é pelos rituais que perpetuamos as nossas verdades e inventamos a perenidade. Tarquinius inaugurou um dos mais famosos da Roma Antiga: o Triunfo. Neste, o líder militar desfila pela cidade exibindo os espólios das suas vitórias, seguido pelas tropas e pelos vencidos, humilhados. O Triunfo é, sem dúvida, o momento da exibição mais ostensiva de Priscus: mostra-se e projecta-se de tal modo que é como se propusesse estar em todo o lado – como, de certo modo, estava. Mas a presença, em Tarquinius, tem sempre a sombra da ausência: diz-se que um escravo acompanhava o líder militar ao longo da celebração, lembrando-lhe ao ouvido que era apenas humano e que um dia morreria (memento mori). É possível que este escravo nunca tenha existido, mas a imagem cola bem na verdade da figura de Tarquinius. Aí está a natureza do que dele conhecemos: quando aparece estendido ao máximo, no instante da sua omnipresença, aí está por detrás uma voz a lembrar que ele é efémero, que vai desaparecer e não estará mais em lugar algum. Em todo o lado no espaço, mas só por um instante no tempo, o homem todo-poderoso não é nada, porque depois do seu breve momento, desaparecerá. A imagem mais paradigmática deste ritual talvez seja, por isso, o Triunfo póstumo do imperador Trajano: já estava morto, pelo que teve de ser usado um boneco no seu lugar. Já desaparecera, mas isso não o impediu de aparecer. Também disso foi capaz Tarquinius.
  Só desaparecem os que primeiro apareceram, mas em Priscus, a lógica inverte-se: desaparece para poder aparecer, para poder continuar. Isso mesmo se comprova com a sua morte.
  Os filhos do rei anterior guardaram rancor contra Tarquinius, e usando um esquema de engano, conseguiram matá-lo à traição. Não lhes serviu de muito, já que foram capturados de imediato. Mas Tanaquil, mulher de Priscus, temendo que com o rei morto, os assassinos, filhos do antigo rei, clamariam pelo trono, convenceu Servius, filho adoptado de Priscus, a alinhar numa fraude ainda maior que a que dera morte ao seu pai. Veio à janela informar a multidão expectante de que a ferida de Priscus era superficial e ele não tardaria a restabelecer-se. No entretanto, deviam obedecer a Servius, que faria de rei até Tarquinius voltar. Servius governou então sempre alegando que cumpria as indicações do seu pai.
  Prestigitador de excelência, capaz de se estender no espaço e de enganar o tempo, Priscus soube pagar o preço para poder conitnuar presente: desaparecer. Assim o fazem os fantasmas desde sempre.

domingo, 29 de março de 2020

Longe dos nossos sonhos


  No episódio “Board Wages”, da série Upstairs, Downstairs, a família Bellamy encontra-se fora (na Escócia), tal como o mordomo e a cozinheira. A restante criadagem aproveita para beber e pavonear-se pela casa, dançando e jogando em imitação jocosa dos patrões, usando mesmo para isso roupas destes. São apanhados por James Bellamy, o filho e herdeiro, que chega inesperadamente e os obriga a continuar a farsa, fazendo o papel de mordomo e criando-lhes o embaraço de terem de beber e falar como se fossem os senhores que há pouco imitavam. Todos sentem a tortura da vergonha e do desconforto, excepto Sarah (representada por Pauline Collins), que segue representando o papel de senhora com altivez, e chega mesmo a falar a James com rispidez.

  A cena é clássica: com os patrões fora, os criados tomam-lhes o lugar e gozam-lhes os confortos; imitam-lhes os jeitos, acentuam-lhes os traços e riem das suas pantominices. Se os donos da casa forem realmente senhores e senhoras, porém, nunca poderão perturbar-se verdadeiramente no caso de descobrirem a farsa – i. e., poderá incomodá-los a falta de nível, ou até o desrespeito, mas não se sentirão questionados na integridade do que os faz nobres.
  É isso que estes criados não chegarão a ser. Pela representação excessiva, fracassam: exageram e caricaturam, porque, no fim de contas, não são o que imitam. Fantocham e parodiam, porque não consegue mais que isso quem só assiste de fora. Bem podem vestir as roupas finas, empunhar as bengalas chiques e beber o champanhe caro, que nunca serão nobres por dentro: só sabem o que vêem do exterior.
  Quando James adopta as vestes e atitudes de empregado, a farsa, que de burlesca passa a rondar o grotesca, prossegue. Mas é o criado que decide o que acontece, enquanto os senhores obedecem. Porque por dentro, o criado é senhor, e os senhores são criados. A lição chega com humilhação às avessas: de avental e a servir, James ordena, enquanto os demais, de vestidos e bebendo champanhe, obedecem.
  Só não é assim com Sarah, que joga com o jovem patrão nos termos deste: não só aceita o papel, que começou por representar em brincadeira e agora lhe é imposto, como passa mesmo a dar ordens e até a falar rispidamente com o criado fingido. Não nos apressemos, todavia, a julgá-la verdadeira senhora por isso. O que explica a naturalidade da moça não é a verdade de quem ela é por dentro, mas por fora; porque Sarah não traz quem é no interior, e sim no que veste. Por isso é senhora enquanto traz o vestido da patroa, mas será criada quando voltar à farda. É tão forte quanto a armadura que traga, e tão frágil quanto a nudez que exiba: despindo-se, torna-se submissa perante James, ficando à mercê deste. Quando ele, finalmente, lhe rasga a farda, ela chora em desespero: quem é ela, se não puder vestir-se?
  A um tempo, Sarah é menos que os criados, porque se estes são prisioneiros da sua natureza interior, Sarah parece vazia por dentro: o que a faz vem de fora. Mas a outro tempo, ela é mais livre até do que os senhores, porque está sempre aberta a definir-se novamente e de outro modo. Com a mesma desfaçatez e facilidade, tanto pode ser criada como senhora, desde que lhe dêem roupa adequada. Pode, no fim do episódio e apesar das dificuldades em arranjar emprego para que alerta Rose, abandonar a casa, porque não está presa a lugares, nem condenada a ser quem quer que seja. Nada a assusta, porque não tem destino, nem conhece etiquetas ou papéis; sabe todas as falas, e todos os vestidos lhe servem, porque é a actriz por excelência. Tem toda a liberdade que é possível desejar: a de quem não é ninguém no princípio, mas tem vocação para todos os papéis; de quem nada tem por que lutar ou perder-se, e portanto, pode conquistar tudo; de quem nada tem de seguro, e por isso, não conhece correntes.
  Sarah é livre durante o dia, porque quando se deita, não é ninguém. Com a sua imaginação de riqueza shakespeareana, pode sonhar todas as personagens, porque quando acordar sem roupa, continuará não sendo nenhuma delas. Pode abrir todos os armários e vestir confiante todas as roupas, porque quando se deitar, nenhuma delas terá deixado marca. Devemos invejar o desprendimento de Sarah? A natureza que nos prende e condena dá-nos segurança na mesma medida. A liberdade que nos obriga a deitar e acordar não sendo ninguém, que nos separa dos nossos sonhos e gestos, exige a coragem de abandonarmos tudo o que não nos satisfaça por mero capricho, e de respondermos como cabe quando nos atribuírem um papel inesperado. Não é verdadeiramente a independência que devemos invejar, mas a coragem de viver a mais terrível e ousada e das liberdades: a que nos permite cumprir todos os sonhos, sem nunca podermos chegar a ser o que sonhamos.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

O segredo dos pelicanos


Edward Lear

  No poema “The Pelican Chorus”, de Edward Lear, o rei e a rainha dos pelicanos falam de si, dos seus hábitos e da sua história, na qual destacam o aparecimento da filha, Dell, e o casamento desta com o rei grou, que a levou para longe do Nilo, onde os pais ainda vivem. Ao longo do poema, ambos garantem ser mais felizes que qualquer outro pássaro, e que assim continuam, apesar da partida de Dell e das noites que passam a ver a lua e a pensar que nunca mais verão a filha.

  Estranha felicidade a dos pelicanos, porque mais do que sem motivo, parece surgir entre motivos que a contrariam. Apesar das razões para a tristeza e do quadro melancólico, seguem dizendo-se felizes. Perante tal contraste, surge facilmente a suspeita de que querem enganar-nos, ou até a si mesmos, convencendo da sua felicidade quem se disponha a ouvi-los. Tão duvidosa é a asserção, aliás, que nem parecem capazes de a formular em termos devidos, trocando os tempos verbais ao que se esperaria ("We think so then, and we thought so still!").
  Parece natural arrumar a postura dos pelicanos como exibição de comportamento e atitude absurdas, entre tantos exemplos em que a escrita de Lear é rica – nem será outra a proposta do autor. Como Chesterton destaca (“A defence of nonsense”), o absurdo de Lewis Carroll vive da escapatória que veicula: pela inversão ou desprezo das regras lógicas, gramaticais, judiciais, etc., proporciona libertação do mundo onde as coisas estão sempre fixas, arrumadas com toda a propriedade e decoro. É como se as suas personagens fossem os senhores e senhoras muito formais, educados e respeitadores com que lidamos no dia-a-dia, mas virados do avesso. Diferentemente, as palavras inventadas por Lear são introduzidas e usadas de tal modo que parecem naturais, familiares – quase queremos dizer que lhes percebemos o significado. Porque o absurdo de Lear não vive nas costas do mundo, para onde fugimos quando queremos escapar às regras do labor quotidiano. A arte de Lear é realmente muito a de, introduzindo o absurdo no normal com tanta naturalidade, mostrar que se ele aí cabe tão bem, é porque o que nos é natural e normal já carrega em si muito de absurdo. O absurdo de Carroll dá voz a quem está preso pelas formalidades do dia-a-dia, a gritar para se libertar, explodir, escapar à asfixia das regras. Diferentemente, o absurdo de Lear respira tranquilamente nos gestos da habitualidade; vive nas próprias regras, que são, afinal, o que de mais absurdo existe.
  Talvez seja precipitado, porém, concluir que, por ser absurda, não há sentido na felicidade dos pelicanos. Na sua leitura do poema ("On rationality and nonsense"), Matthew Bevis sugere que atentemos na própria irracionalidade do estado de felicidade. A pergunta pelos motivos para a mesma parece sempre deslocada à criança que a receba. Bevis regista a evolução do conceito, que de associado a um estado (de abençoamento, de graça) passou a ligar-se mais a uma disposição (de alegria, de bom humor). A formulação dos pelicanos ("We think no birds so happy as we!") não é a de que não pensam que não haja outros pássaros tão felizes; é antes a de que não pensam outros pássaros tão felizes. Com a sua insistência em pensarem-se felizes, em vez de se saberem tal, vivem o que na felicidade é sentimento, inebriamento, não razão ou lógica.
  A felicidade é irracional, e assim, os pelicanos podem não apenas dizer-se, mas estar verdadeiramente felizes. São um pouco loucos? Talvez. Mas se racionalizarmos demasiado os nossos processos internos, se percebermos demasiado bem como funcionamos e desse modo adquirirmos uma consciência permanente sobre o que acontece em nós, vivendo cada estado de espírito na explicação que para ele fabricamos, acabamos por emperrar, deixamos de sentir simplesmente as coisas. Por isto, precisamos de um pouco de loucura para deixar entrar (ou sair) a alegria. Demais, tendemos a ver os felizes como algo inconscientes: se percebessem o que se passa à sua volta, o drama de tudo o que os rodeia, não ririam, não poderiam rir perante as ameaças, os perigos, as tragédias... Daí que soem tão loucos os pelicanos: pelo que vão contando, percebem tudo o que se passa, têm noção correcta de todos os dramas; ainda assim, dizem-se felizes. Só resta a possibilidade de serem loucos. Não cometamos, contudo, o erro de por esta via lhes reduzirmos o tamanho da ousadia: o seu admirável desafio é o de continuarem a ser felizes, mesmo sem inconsciência dos livres. Talvez sejam loucos para isso, mas nem sendo doido fica necessariamente mais fácil cair na alegria. A ousadia dos pelicanos é sem dúvida admirável: como nos aconselha Camus (Le Mythe de Sysiphe), pensando em Sísifo e na sua tarefa infindável, talvez devamos imaginar felizes os pelicanos, mesmo contra todas as evidências. Se Sísifo pode continuar a sorrir depois de ter compreendido que a pedra nunca ficará onde ele a arruma e que não há motivos para alegria, é porque aprendeu o segredo dos pelicanosNão dependem dos motivos, nem das causas; sorriem porque não os algemam a razão nem a lógica. São felizes porque são loucos? Sim, mas só perceberemos o valor dessa felicidade se traduzirmos a explicação dizendo que são felizes porque são livres.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Milagres





  Como os antigos aristocratas em relação ao povo rude, Zidane destacava-se dos demais jogadores – brutos na abordagem e rudimentares nas possibilidades – pelo toque. Tornava divino o gesto banal: um passe ou domínio de bola, que nos efeitos e importância prática passariam despercebidos quando realizados por outrem, pareciam iluminar-se nos pés do argelino, porque feitos com graça e delicadeza. O segredo de Zidane era a elegância.
  Messi trabalha com o processo inverso: em vez de divinizar o gesto banal, banaliza o gesto divino. Um passe, domínio ou jogo de cintura, que, pela dificuldade ou improbabilidade de sucesso, seriam extraordinários quando feitos por outrem, surgem nele normais, corriqueiros, até fáceis, porque levados a cabo com naturalidade. O que actua no argentino é a distância, porque mesmo no meio do campo entre tantos transeuntes, parece jogar noutro sítio, a tal ponto que quase sentimos que os demais nada têm que fazer por ali: o campeonato de Messi é outro, e, quando festeja um golo a apontar para o céu, é como se o víssemos dizer "foi ali, não aqui, que isto aconteceu".
  Com as suas maravilhas, Messi traz para a discussão o extraordinário, o que parece desafiar as leis da natureza. É isso que, para Hume (Enquiry Concerning Human Understanding), define o milagre: a violação das leis naturais por vontade dum agente divino ou invisível. Algo de comum se esconde entre esta posição e a de quem, como Espinosa (Tratado Teológico-Político), defende que a violação das leis naturais não pode explicar-se pela vontade divina, já que esta, por dar origem às próprias leis violadas, entraria então em contradição. Assim, os milagres não contrariam aquelas leis, mas sim o limitado entendimento que delas fazemos: revelam os limites do nosso conhecimento sobre o seu funcionamento. Nesta linha, podemos rematar com a ideia de que a maravilha milagrosa não é a da impossibilidade, mas a do segredo: por mais familiar e rotineira que a natureza nos surja, ainda há coisas nela por descobrir, grutas escuras por explorar.
  A olhos relaxados, o milagre é extraordinário porque parece excepção, por não admitir explicação à luz das leis a que escapa. Mas com as suas maravilhas, Messi parece inverter esta lógica: repetindo o improvável, dá impressão de criar as suas próprias leis, se não como agente invisível, pois o desenho realiza-se à vista de todos, ao menos com divinas mãos (ou pés). Insistindo em trazer uma e outra vez o extraordinário, torna expectável o irrepetível, ou mesmo devido, fá-lo regra (retomando a transformação do ritual em direito). O cariz milagroso desaparece pela habituação, e aceitamos finalmente que as coisas incríveis acontecem nos seus pés porque devem acontecer – a ponto de o julgarmos e condenarmos por falhar quando elas não surgem.
  Nunca deixamos, ainda assim, de nos admirar. Talvez não seja já notícia o gesto incrível, mas ainda abrimos a boca quando assistimos. Porque continuamos presos às leis com que estamos familiarizados. Se já sabemos da existência dessas outras que o argentino exibe, não as conhecemos verdadeiramente, porque, ao contrário dele, não as sabemos pôr em prática. Por aí se mantém o segredo dessas regras. Messi exibe e repete o extraordinário para dar razão à teoria epistémica dos milagres, garantindo que na natureza nada se viola, mas algumas coisas se escondem. Continuamos, porém, sem ver tudo, porque quando olhamos, não compreendemos. O argentino faz à nossa frente e acreditamos, mas não sabemos repetir, nem esperamos que se repita. E por isso ainda é milagre, porque acontece e se vê, mas não se compreende nem se explica.