quarta-feira, 30 de dezembro de 2020
Paraíso perdido
domingo, 29 de novembro de 2020
Caminhos esconsos
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
Por detrás do monstro
domingo, 27 de setembro de 2020
Uma coisa pequena a brilhar no escuro
domingo, 30 de agosto de 2020
Abdicar de um rosto
Na série Mahou Shoujo Madoka Magica (Magica Quartet), os incubadores são uma raça que procura evitar a morte térmica do universo. Para isso, valem-se da única forma de energia independente das leis da termodinâmica: a emocional. Oferecem a raparigas adolescentes com o maior potencial a oportunidade de terem qualquer desejo realizado e receberem poderes mágicos de combate, em troca do que passarão a combater bruxas, criaturas misteriosas e destrutivas. Na verdade, as bruxas foram em tempos raparigas mágicas como elas, que cederam a sentimentos negativos. É o espectro emocional entre a esperança e entusiasmo iniciais e o desespero e descrença crescentes das adolescentes transformadas em bruxas que os incubadores aproveitam para absorverem a energia de que precisam. No final, porém, Madoka usa o seu desejo para impedir o aparecimento de quaisquer bruxas, passadas, presentes ou futuras. A História é reescrita, Madoka desaparece do mundo e é apenas lembrada pela amiga Homura. As raparigas mágicas continuam a lutar contra espectros, mas quando fraquejam e caem, não mais se tornam bruxas, antes se purificando e desaparecendo. Madoka deixa de ser uma rapariga e torna-se um princípio implantado no mundo, um mecanismo que aparece no momento em que as raparigas caem, para impedir que se transformem. O balanço energético do contributo das raparigas para o universo deixa de ser zero, e assim, Madoka honra as esperanças delas, e os seus sacrifícios. A cada vez que alguém condenar a ousadia de ter esperança, Madoka aparecerá para lhe dizer que está errado.
Tem razão, por outro lado, Bobduh quando afirma que a força de Madoka mora na empatia, na ligação que sente com os demais. Mas deixando de ter rosto e individualidade, passa a definir-se identificando-se com o próprio gesto de dar, de se oferecer, de desaparecer em dádiva aos outros. Não se torna com isso uma pessoa (pelo contrário), mas realiza ao máximo o potencial de um dos traços mais humanos que temos, a empatia, dissolvendo-se no gesto de se entregar.
Percebendo o sacrifício de Madoka, Homura chora a solidão do destino da amiga, e esta responde que nunca estará sozinha, todos estarão com ela. Estão ambas certas por um lado, erradas por outro. Homura tem razão, porque Madoka não mais fará parte integrante do mundo enquanto sujeito visível pelos outros, susceptível de entrar em interacções conscientes com eles. Mas engana-se ao imaginá-la sujeito separado, como se Madoka continuasse a ser a mesma pessoa, mas fechada num quarto à parte do mundo. Na realidade, ela deixa de todo de ser sujeito. Madoka, por sua vez, porquanto não fica afastada do mundo, permanece nele, e todos estarão, de feito, com ela. Mas ela não será mais uma consciência individual propriamente dita, não é uma pessoa, não é visível, nem tem rosto. Madoka não poderá nunca verdadeiramente beneficiar de companhia, porque lhe falta a base para isso ser possível: ser capaz de solidão.
sábado, 1 de agosto de 2020
Graça na derrota
domingo, 28 de junho de 2020
O preço de encantar a noite
No livro A Fada Oriana, de Sophia de Mello Breyner Andresen, Oriana perde os poderes e as asas como castigo por negligenciar os deveres de fada.
Saltando dum precipício para salvar uma idosa que caíra, Oriana consegue recuperar as asas e a varinha. Quando visita novamente o poeta, este reconhece-a e pede-lhe que encante a noite, ao que ela acede. Mas Oriana vem voando: não tem os pés no chão. Chega mais etérea que nunca esta fada, e confirmamos o que já sabíamos: o que o poeta esperava era a Oriana exigida quando a moça se mostrou incapaz de encantar a noite, e não a pessoa que ele mandou embora.
Onde ficou a rapariga que o poeta rejeitou, a quem foi negada a hipótese de não ser fada por uma noite, que estendeu a mão e não encontrou a do poeta, que ficou sozinha para se perder na escuridão? Podemos estar seguros de que não voltou do precipício a que se atirou. Porque não tinha asas para voar, nem condão para encontrar saídas. Voltou a magia, e o poeta sorriu, porque o encanto que esperava tornou. A noite encantou-se e ele pôde criar versos. Tornou a fada, mas foi-se a menina. Surgiu uma vez pedindo ajuda, mas o poeta não a esperava e não tinha espaço para ela. Foi embora, enfim, porque só assim podia a fada voltar. Desapareceu, porque é esse o preço de encantar a noite.
sábado, 30 de maio de 2020
O lugar para nos perdermos
quinta-feira, 30 de abril de 2020
O preço dos fantasmas
domingo, 29 de março de 2020
Longe dos nossos sonhos
No episódio “Board Wages”, da série Upstairs, Downstairs, a família Bellamy encontra-se fora (na Escócia), tal como o mordomo e a cozinheira. A restante criadagem aproveita para beber e pavonear-se pela casa, dançando e jogando em imitação jocosa dos patrões, usando mesmo para isso roupas destes. São apanhados por James Bellamy, o filho e herdeiro, que chega inesperadamente e os obriga a continuar a farsa, fazendo o papel de mordomo e criando-lhes o embaraço de terem de beber e falar como se fossem os senhores que há pouco imitavam. Todos sentem a tortura da vergonha e do desconforto, excepto Sarah (representada por Pauline Collins), que segue representando o papel de senhora com altivez, e chega mesmo a falar a James com rispidez.
É isso que estes criados não chegarão a ser. Pela representação excessiva, fracassam: exageram e caricaturam, porque, no fim de contas, não são o que imitam. Fantocham e parodiam, porque não consegue mais que isso quem só assiste de fora. Bem podem vestir as roupas finas, empunhar as bengalas chiques e beber o champanhe caro, que nunca serão nobres por dentro: só sabem o que vêem do exterior.
Quando James adopta as vestes e atitudes de empregado, a farsa, que de burlesca passa a rondar o grotesca, prossegue. Mas é o criado que decide o que acontece, enquanto os senhores obedecem. Porque por dentro, o criado é senhor, e os senhores são criados. A lição chega com humilhação às avessas: de avental e a servir, James ordena, enquanto os demais, de vestidos e bebendo champanhe, obedecem.
Só não é assim com Sarah, que joga com o jovem patrão nos termos deste: não só aceita o papel, que começou por representar em brincadeira e agora lhe é imposto, como passa mesmo a dar ordens e até a falar rispidamente com o criado fingido. Não nos apressemos, todavia, a julgá-la verdadeira senhora por isso. O que explica a naturalidade da moça não é a verdade de quem ela é por dentro, mas por fora; porque Sarah não traz quem é no interior, e sim no que veste. Por isso é senhora enquanto traz o vestido da patroa, mas será criada quando voltar à farda. É tão forte quanto a armadura que traga, e tão frágil quanto a nudez que exiba: despindo-se, torna-se submissa perante James, ficando à mercê deste. Quando ele, finalmente, lhe rasga a farda, ela chora em desespero: quem é ela, se não puder vestir-se?
A um tempo, Sarah é menos que os criados, porque se estes são prisioneiros da sua natureza interior, Sarah parece vazia por dentro: o que a faz vem de fora. Mas a outro tempo, ela é mais livre até do que os senhores, porque está sempre aberta a definir-se novamente e de outro modo. Com a mesma desfaçatez e facilidade, tanto pode ser criada como senhora, desde que lhe dêem roupa adequada. Pode, no fim do episódio e apesar das dificuldades em arranjar emprego para que alerta Rose, abandonar a casa, porque não está presa a lugares, nem condenada a ser quem quer que seja. Nada a assusta, porque não tem destino, nem conhece etiquetas ou papéis; sabe todas as falas, e todos os vestidos lhe servem, porque é a actriz por excelência. Tem toda a liberdade que é possível desejar: a de quem não é ninguém no princípio, mas tem vocação para todos os papéis; de quem nada tem por que lutar ou perder-se, e portanto, pode conquistar tudo; de quem nada tem de seguro, e por isso, não conhece correntes.
Sarah é livre durante o dia, porque quando se deita, não é ninguém. Com a sua imaginação de riqueza shakespeareana, pode sonhar todas as personagens, porque quando acordar sem roupa, continuará não sendo nenhuma delas. Pode abrir todos os armários e vestir confiante todas as roupas, porque quando se deitar, nenhuma delas terá deixado marca. Devemos invejar o desprendimento de Sarah? A natureza que nos prende e condena dá-nos segurança na mesma medida. A liberdade que nos obriga a deitar e acordar não sendo ninguém, que nos separa dos nossos sonhos e gestos, exige a coragem de abandonarmos tudo o que não nos satisfaça por mero capricho, e de respondermos como cabe quando nos atribuírem um papel inesperado. Não é verdadeiramente a independência que devemos invejar, mas a coragem de viver a mais terrível e ousada e das liberdades: a que nos permite cumprir todos os sonhos, sem nunca podermos chegar a ser o que sonhamos.