E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Cabeça perdida


John Quidor

  Em "The legend of Sleepy Hollow", Washington Irving conta como Ichabod Crane é perseguido por uma figura espectral que parece corresponder ao protagonista de vários contos de terror: o fantasma de um cavaleiro sem cabeça que aparece para procurar a cabeça perdida numa batalha.

 Em Monstros, José Gil explica que o fascínio exercido pelos monstros se deve desde logo à superabundância da realidade que eles oferecem. O monstro é sempre um excesso de presença, mesmo que a sua anomalia passe por lhe faltar alguma parte de um corpo normal. Não manifesta privações ou faltas enquanto entidade, nem é apreendido como menos que um homem ou que um corpo, quando aparece, por exemplo, sem cabeça, ou com um único olho. Fazem-se uma categoria à parte tornando um traço presente a falta de órgãos: um ciclope não é uma criatura a que falta um olho, mas sim uma com um olho na testa.
  Como compreender a esta luz o cavaleiro do conto de  Irving? 
  Ele parece um monstro, criatura de história de terror, reforçando-se isto na impressão causada: Ichabod, ao vê-lo, não sente compaixão por lhe faltar a cabeça, antes se assusta com aquela presença excessiva e foge dela. A suposta privação apenas confirma a completude da entidade avistada, já anunciada pelo nome: ele é o cavaleiro sem cabeça, precisa, portanto, de não ter cabeça para o ser, para ser quem (e o que) é.
  Estranho parece, no entanto, o seu propósito: não está ali simplesmente para ser olhado; faz parte da sua figura o seu objectivo, o seu intento de cortar a cabeça a quem passa; quer uma cabeça para si. Esta fome que o move denuncia porventura que ele afinal não está tão instalado na monstruosidade como nos apressamos a pensar: o cavaleiro mostra-se insatisfeito com a sua privação. Procurando a cabeça que lhe falta, talvez queira ser humano.
  Conseguirá? Na verdade, ele parece não somente vir do plano espectral como estar preso ali. Deste modo, não adianta quantas cabeças corte, seguirá faltando-lhe a sua, continuará sendo monstro. Mas também seguirá faminto. E uma fome que se sacia por umas horas, mas sempre volta, uma privação que só é iludida por instantes, para tornar a confirmar a sua realidade, não é o sinal mais ilustrativo do que é ser humano?

sábado, 30 de outubro de 2021

Brincadeiras valiosas


  Na animação Karakai Jōsu no Takagi-san (Sōichirō Yamamoto), Takagi e Nishikata são dois colegas de escola na transição da infância para a adolescência. Os episódios consistem em vários segmentos de interacção entre os dois, que passam sempre por apostas e tentativas de deixar mal o outro. Takagi ganha sempre e diverte-se imenso com a frustração e o embaraço de Nishikata.

 

  Pode falar-se de amor entre os dois? Nishikata pensa em Takagi como impiedosa, com requintes de crueldade discreta, e uma adversária quase demasiado difícil de bater. Mas em momentos inesperados ou distraídos, não deixa de reparar nos seus encantos femininos, e reparar é ceder. De Takagi não ouvimos os pensamentos e ela nunca chega a dizer ao rapaz que gosta dele, mas deixa a sugestão várias vezes, tanto implícita como muito explicitamente. Di-lo uma vez directamente, para logo a seguir alegar que mentiu. Com esta e outras atitudes, Takagi provoca Nishikata, e pela provocação tortura-o, pois este tem claros problemas em descobrir-se envolvido em qualquer contacto próximo que traia intimidade. No ar fica sempre a dúvida entre pensarmos que só a move o prazer sádico de o ver ansioso e nervoso pela proximidade, e desanimado pelo embaraço e má figura, por um lado, e que vendo bem, não lhe daria tanto prazer  provocá-lo se não gostasse dele, por outro.

  Takagi gosta de expor Nishikata e ri-se sempre que o deixa embaraçado, mas nunca o expõe perante os outros, só perante ela (exceptuando alguns ralhetes ou chamadas de atenção do professor, inofensivos nesta óptica). Há nisso, talvez, não apenas mera decência, mas um gostar. É verdade que a simples decência ou personalidade boa não exporiam a fragilidade ou nudez do outro, enquanto o mero gozo egoísta não se importaria com a exposição de outrem perante os demais. E podem combinar-se, claro, mas não conseguimos pensar essa combinação sem ao menos vislumbrarmos a sugestão de que ela gosta dele. Takagi adopta uma atitude permanente de procurar aceder à vulnerabilidade de Nishikata, mas não para a tornar assunto público, antes mantendo-a consigo e tornando-a um assunto só deles. Este propósito recebe confirmação explícita nos constantes comentários de Takagi quando chama a atenção para o estarem os dois sozinhos. Servem os comentários, naturalmente, para o embaraçar, mas, além disso, marcam mais claramente esse estarem à parte: notando a separação dos demais, é como ela fizesse questão de erguer uma barreira que os aparta do resto do mundo.

  Esta técnica assume outros efeitos, ou ao menos mais perceptíveis, em ocasiões como a do segmento ai ai gasa. Ai ai gasa é o termo nipónico usado para o abrigar de duas pessoas sob o mesmo guarda-chuva, fenómeno comum no Japão em função de aguaceiros inesperados, ao qual se associam sugestões românticas. É Takagi quem chama a atenção para o encontrarem-se ambos nessa situação, e tenta fazê-lo nomear o fenómeno, tanto para o envergonhar como, suspeitamos, para tornar mais verdadeiro o significado da experiência. Se ela não dissesse nada, talvez as implicações românticas passassem ao lado, ou só fossem notadas por ele mais tarde, em retrospectiva. Uma vez feitas assunto de conversa, tornam-se actuais.

  Se nunca o expõe perante os outros, Takagi ri constantemente de Nishikata e dos seus embaraços. Só se pode ser a um tempo tão gentil e tão impiedosa estando segura da mesma gentileza do outro lado. Takagi sabe que por muito se sinta frustrado e queira vencê-la nas disputas que seguem travando, o rapaz seria absolutamente incapaz de a magoar, física, psíquica ou até simbolicamente – como comprovamos, aliás, pela prontidão dele em perguntar-se se foi longe demais a cada sinal mínimo de perturbação que pensa detectar no rosto dela. Suficientemente relaxada para entregar ao adversário todas as armas com que ele poderia magoá-la, por saber que isso nunca acontecerá, Takagi tem a segurança e a tranquilidade de uma criança que confia no monstro com quem brinca. Ciente disso mesmo e consciente que baste para observar o que se passa e jogar com Nishikata conforme lhe apetece, é ela afinal a adulta e ele a criança.

  Durante uma das apostas, Takagi promete que dará a Nishikata o seu primeiro beijo se ele ganhar. Claro que ele perde, mas não podemos deixar de encontrar nisto, da parte dela, o arrojo intrépido de deitar numa brincadeira algo pretensamente valioso, único até, porque o primeiro beijo não se repete. Ao apostá-lo assim, a rapariga sugere que talvez este não tenha tanta importância: é algo que pode ser jogado, objecto de aposta. Sabemos, naturalmente, que ela só o joga por se passar exactamente o contrário. Se não fora extremamente importante e significativo o que ela oferece, ou se não tivesse ao menos consciência de ser assim visto por ele, o efeito de embaraço pretendido não chegaria a nascer. Ainda assim, ela aposta-o e podemos pensar que está segura de vencer (pois vence sempre), por muito se apresente incerta quanto a isso, mas a verdade é que há sempre a hipótese, por muito inverosímil, de perder e ter de dar o beijo.

  Que é um beijo afinal? Talvez com o tempo e a repetição acabemos por despi-los de significado e ver neles somente a casualidade convencionada da expressão de um afecto tornado mecânico. O primeiro beijo, contudo, não teve oportunidade de perder nada, surge com toda a carga emotiva e simbólica, e estabelece a mais incerta, afastada e representada das uniões, mas, ao mesmo tempo, também a mais sentida, porque mais intensa. Quando Takagi larga no jogo esta experiência, parece querer reduzir-lhe a importância ao ponto de poder incluí-la nas brincadeiras deles. Não obstante, é inescapável a sugestão de orientação contrária: as brincadeiras são tão importantes para ela que valem bem o seu primeiro beijo. Feitas de nadas, competições sem prémios de exibir, disputas que nada provam no mundo real, enchem de significado, ainda assim, as suas vidas, porque lhes trazem sorrisos e dispensam histórias. O primeiro beijo é demasiado importante para se brincar com ele, mas pode brincar-se, porque na brincadeira é que Takagi e Nishikata, ainda crianças, deitam toda a verdade de que são capazes, e porque, no fim de contas, podem bem tanto dar um primeiro beijo como não dar, visto que o mais importante que há entre eles já o têm, e têm-no todos os dias: estão sempre lá para brincarem um com o outro.

sábado, 2 de outubro de 2021

Reunião de ausentes

   No livro The invisible life of Addie LaRue, de V. E. Schwab, a jovem Addie oferece a uma divindade a sua alma em troca de uma vida liberdade sem limites. Ganha a imortalidade, mas a liberdade concretiza-se em ser esquecida por toda a gente mal a perdem de vista. Conhece, séculos mais tarde, Henry, um jovem que, por sofrer demasiado com desencontros emocionais e amorosos, oferece a alma à mesma divindade em troca de ser suficiente para o amor dos outros. Ganha o dom de conseguir ser para todos os outros o que procuram mais desejam, mas queda com apenas um ano de vida. Henry consegue dar a Addie o que ela mais deseja: lembra-se dela mesmo depois de se separarem. Apaixonam-se e juntam-se durante o tempo acordado por Henry com a divindade.

  Addie ganha uma vida imortal deixando de viver. Porque não é uma máquina, não pode bastar-lhe conseguir comer, beber e satisfazer apetites sexuais. O olvido que descobre em todos os olhares mostra-lhe um espelho onde se descobre inexistente. Não é, portanto, senão um fantasma caminhando entre as pessoas vivas – a vida dos fantasmas não passa da descoberta de que não estão vivos. No mais, porém, inverte a posição do fantasma: os espectros ficam na memória de quem os veja, dão matéria para pesadelos vindouros, atemorizam recordações e recusam ir embora. Já Addie não assusta ninguém quando é vista, mas não aterra em memória nenhuma, não é sonhada por quem a encontra, não preenche lembranças, porque passa sem deixar sinais ou marcas: já partiu antes de ter chegado, porque dela nada fica, nem sequer as impressões. O fantasma não tem rosto consistente ou presente para oferecer, mas permanece, como se existisse atrás da imagem. Addie tem para oferecer a sua imagem, sempre fresca e nova, que nunca se gasta, mas só porque ela está condenada a recomeçar, e é como se ela não existisse atrás da imagem.
  Também Henry desaparece, conquanto de outro modo. Vendo nele sempre o que mais desejam ou procuram, os demais projectam nele as suas idealizações, de tal modo que Henry acaba sentindo que ninguém o vê verdadeiramente, nem ninguém o deseja por algo que sinta pertencer-lhe ou defini-lo. Desapareceu dos olhos dos outros, porque os outros só vêem o que já trazem nos olhos. Inversamente a Addie, Henry não perde a atenção dos circundantes; pelo contrário, torna-se o alvo inescapável dos seus percursos. Deixado no ponto de mira de uma multidão que aponta para ele a vista, mas vê tudo menos o que ele tem para mostrar, Henry descobre-se preso numa cela de atenção que o aprisiona fazendo-o invisível para quem só tem olhos para ele.
  Addie e Henry encontram-se e encaixam: Henry lembra-se de Addie e, no fim de contas, permite-lhe viver. Addie vê Henry como ele é e, assim, encontra-o no meio da invisibilidade a que ele parecia condenado. São dois ausentes que, reunindo-se, ganham e oferecem presença, como ganham e oferecem realidade. O seu encontro dura uns meses apenas, e depois voltariam às respectivas ausências – mas não é bem isso que sucede. Addie consegue que a entidade mística liberte Henry, pelo que podemos deduzir que ele volta a existir no meio dos outros. Mas também Addie, a final, ganha a vida que não tinha: Henry escreve um livro com a história dela e permanecem as pinturas que a tomaram por modelo. A presença de Addie inverte-se, tendo desaparecido no imediato e mantendo-se em ideia. Ausente e desaparecida do presente, ganha a posteridade. Já ninguém a conhece, mas todos a reconhecem. Tanto ela como Henry hão-de desaparecer de vez, como tudo desaparece, mas, no fim de contas, gozaram, como todas as pessoas, da única oportunidade disponível para nos sentirmos reais: a de um encontro.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Divina autoridade

   Na peça The Tempest, de William Shakespeare, uma tempestade violenta leva uma embarcação a uma ilha onde moram Prospero, um feiticeiro, a sua filha Miranda e os seus servos Ariel e Caliban. Prospero fora Duque de Milão antes de ser traído por alguns dos passageiros chegados agora à ilha, e usa magia tanto para os atrair como para lhes orientar os caminhos.

  Prospero tem ares divinos. A sua magia faria dele mero feiticeiro, não fora raramente a exercer directamente: quanto intervém nos destinos dos homens e mulheres, fá-lo comandando os elementos (como quando provoca a tormenta) ou os espíritos (no caso de Ariel). Qual deus oculto, mas sempre presente, actua e decide, mas dificilmente estende a mão para empurrar as criaturas que o preocupam: tem anjos, monstros e calamidades ao seu dispor.
  O distanciamento é condição para crescer: só de longe pode aumentar até um tamanho que lhe permita superintender os destinos alheios, porque só à distância pode descobrir pequenas as pessoas que tomará por peças. Por isso, quase não contacta com nenhum dos recém-chegados durante a maior parte da peça, não obstante agir sobre eles por meio dos seus subalternos, e quando, finalmente, se aproxima para lhes falar, revela-se e quer juntar-se a eles, mas para isso, tem de abdicar do seu livro e dos seus poderes, o que é dizer da sua sapiência e comando divinos – porque, tal como os seres mitológicos da Antiguidade, também este não pode aproximar-se sem assumir vestes de humano comum.
  Arroga-se Prospero a posição moral divina que lhe permite perdoar ou condenar os demais. Não compreende nem desculpa como igual que sofre e supera, como ferido que procura cicatrizar, senão como pai que compreende tudo por saber mais e melhor, e que perdoa pela condescendência de sentir comiseração perante a fraqueza. Orienta os outros como se fossem filhos transviados carentes de redireccionamento, e chega a julgar sobre os melhores caminhos amorosos que lhes cabem. Sabe mais que um juiz, porque não precisa de ouvir as partes, e sente mais que os poetas, porque não ausculta corações. Talvez nem decida verdadeiramente, porque de tão certa e omnisciente a sua consciência, soam inevitáveis os seus ditames.
  Aponta Harold Bloom (Shakespeare: The invention of the human) a desmesura dos poderes e actuações de Prospero perante o elenco sobre que actua: as suas artes são desproporcionais para os seus inimigos. E aí talvez ele seja mais divindade que nunca – não tanto na imensidade do seu tamanho perante a pequenez dos joguetes humanos como no interesse que, ainda assim, eles lhe despertam: pois nada é porventura tão divino como a curiosidade absurda em relação a criaturas pequenas.
  Perde Prospero a autoridade quando abdica do seu poder? Durante a tempestade, o contramestre discute com os seus nobres passageiros, e mostra-se indiferente à categoria social de quem transporta: a não ser que a natureza lhes obedeça e eles sejam capazes de pôr fim ao temporal, não lhe interessa os títulos que possuam. A autoridade de Prospero, domador de tempestades, não é essa que desaparece assim que a natureza se zanga: está para lá das convenções humanas, pois é ele quem comanda a tormenta. Não admira, assim, que não o vejam até se revelar e abdicar da magia, pois ninguém é mais invisível que o autor dos relâmpagos e trovões. Para ser visto e imiscuir-se entre os demais, para embarcar no navio, para se tornar de novo Duque e vestir a majestade que se vale de normas sociais, Prospero precisa, então, de deixar o trono e caminhar entre os súbditos da tempestade, também ele sujeito às ordens de um contramestre logo que o vento torture o navio. Sem embargo, os demais respeitam-no e não o questionam, mesmo quando é desagradável, nem, muito menos, dão mostras de se rebelarem. Talvez porque, também como os deuses da Antiguidade, era ao descerem e caminharem disfarçados de pessoas entre as pessoas que eles se mostravam mais divinos.

domingo, 1 de agosto de 2021

O espelho da ordem

  No livro O bom soldado Svejk, de Jaroslav Hasek, Svejk é um soldado que, embora esforçando-se por obedecer aos comandos que vai recebendo, vê-se constantemente envolvido em trapalhadas e encrencas causadoras de embaraço, podendo duvidar-se se as provoca de propósito, ou sequer conscientemente.

   Não pode dizer-se que Svejk seja desobediente: não apenas se prontifica de imediato a cumprir todas as instruções e ordens que recebe como não hesita em executá-las. Se o exército soçobra por ele, é pela disciplina, não por falta dela. Svejk cumpre tudo o que lhe pedem, mas a literalidade do seu entendimento e a mecanicidade dos seus gestos não lhe trazem sucesso, ou não o esperado pelos superiores. Se, então, a execução fiel dos ditames não produz no mundo os efeitos pretendidos – seja por sua incompetência, por falta de antecipação dos comandantes, por circunstâncias alheias imprevistas… –, salta de imediato a sugestão de que a ordem de que se quer fazer Svejk instrumento de implementação não é adequada para o mundo onde se pretende implementá-la. Passamos o livro a notar a inaptidão de Svejk para servir de intermediário entre a ordem militar a executar, a ordenação com que se pretende domar a selva, e a realidade prática que resiste uma e outra vez às disposições dos humanos arbítrios; mas quedamos sempre a com a suspeita de que, no fim de contas, pode bem ser que afinal ou essa ordem é simplesmente demasiado artificial, demasiado alheia para poder chegar a ser posta em prática com sucesso, ou qualquer organização do mundo é ilusória, pois este, despido das nossas projecções, é demasiado caótico e arbitrário para aceitar arrumações: toda a ordem que precise de ordens para chegar está destinada ao fracasso, porque a realidade da vida não é sensível à autoridade. Executando tudo o que lhe encomendam e assentindo a tudo o que lhe ditam, Svejk, todo ouvidos para aceitar e todo boca para devolver concordâncias e votos de obediência, cumpre exemplarmente o papel de exibir os chefes a falarem sozinhos: a vida não os ouve.
  Munido apenas de assentimentos, Svejk nunca diz não, mas não por querer dizer sim (podemos duvidar se ele quer verdadeiramente alguma coisa), e sim por não existir não nos jogos de linguagem do exército. Usando, todavia, os sins ali permitidos e cumprindo os gestos admitidos – somente os demandados –, não cumpre nada verdadeiramente, frustrando tudo o que se esperava dele. Como se pondo em prática as regras e regulamentos de funcionamento e procedimentos instituídas para garantir disciplina e sucesso, Svejk aparecesse para fazer ruir tudo, indo não de encontro, mas sim ao encontro do que lhe dizem. Nunca se rebela, mas obedecendo, perturba mais do que qualquer rebelião. Não questiona a organização, mas executando o que lhe ditam, leva-nos a duvidar mais da organização do que perante qualquer fracasso. Não derruba o sistema numa prova de força, antes ameaça deitá-lo abaixo demonstrando como a força do sistema o faz tão débil.
  Os episódios protagonizados por Svejk exibem a nudez da ordem. Pela ineficácia absurda dos comandos e correspondentes execuções, prova que a ordem pela ordem não merece ser prezada, que nada manifesta mais exuberantemente o absurdo das ambições humanas nem mostra tão claramente a artificialidade estéril das nossas construções como o cultivo da hierarquia e da subordinação sem direcção nem valores, sem conteúdo moral perceptível. Com a sua disponibilidade permanente e ineficaz, Svejk serve de espelho onde a disciplina militar, séria e austera, se pode ver e descobrir ridícula e absurda.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Direito a sonhar

  No livro Lolita, de Vladimir Nabokov, quando Humbert Humbert, ao fim de anos de desaparecimento de Dolores Haze, a reencontra já adulta, é assaltado pelo desejo que continua a sentir por ela. Apesar dos anos de abuso, ainda quer acreditar na hipótese de um futuro com a jovem, e antes de partir, depois de já ter sido rejeitado, pergunta-lhe se num futuro porventura longínquo ela não poderá ir ter com ele, ao que Lolita responde não.

  Para o leitor, a resposta da moça é óbvia, quase não era preciso dá-la. Foi um inferno a existência com aquele homem, e se não precisasse de lhe pedir ajuda, por sua vontade, nunca o voltaria a ver. O próprio Humbert não está tão longe de perceber isto como pode parecer, mas, ainda, assim, faz a pergunta. Vale a pena indagar o que o leva a fazê-la e, sobretudo, como é capaz de a fazer.
  Que sente este desconsolado pela moça que tão desesperadamente perseguiu meses a fio? Amor é palavra complicada por obrigar a encontrar definição satisfatória para o sentimento, mas aqui o problema situa-se logo em saber a quem dirige ele o seu. Humbert Humbert amou Lolita por inteiro desde o primeiro momento em que a viu, mas nunca conheceu Dolores Haze. O mundo da rapariga foi-lhe desconhecido, dedicado como esteve todo esse tempo à projecção idealizada que nela realizou dos seus desejos e devaneios, e, assim, também a identidade dela se manteve para ele uma irrealidade completa. Agora, porém, que a encontra, já não acha essa menina que prostituiu e de que abusou tanto tempo e tão descaradamente, mas sim a mulher que a vida e o tempo puseram no seu lugar. Segue, todavia, desesperado por ela, e ficamos com a dúvida sobre quem afinal deseja ele, pois nesta mulher já não pode projectar as suas fantasias por meninas e o que restou é uma pessoa que ele nunca chegou a conhecer.
  Mais espantosa é, todavia, a ousadia de imaginar um cenário em que um romance entre os dois poderia florescer, e mesmo de perguntar a Lolita se não está disposta fugir com ele. Para ela, a história deles foi a de se ver forçada a partilhar o mundo com um homem que a desejou e de que não pôde fugir durante muito tempo, por muito sonhasse fazê-lo. Para o observador externo, a relação foi de abuso entre um homem adulto e uma criança que não conhecia melhor, não tinha liberdade para escolher outra coisa, nem discernimento para avaliar a violência do que lhe era imposto. Mas na óptica de Humbert Humbert, o enredo foi o de um patético e trágico amor deixado por concretizar em definitivo. Por muito absurdo pareça o projecto de levar uma Lolita apaixonada dali para fora, nos seus sonhos (mais que nos seus cálculos), vê-o como um bonito romance prometendo eflúvios de beatitude. Dolores Haze nunca aceitaria, nem sequer conceberia a pergunta, de largar a sua vida plana, sem história nem expectativas, para se juntar à criatura que lhe perverteu a infância e esvaziou a inocência. Como ela diz, mais depressa voltaria para o pervertido Quilty, porque, como Humbert interpreta, Quilty partiu-lhe o coração, enquanto ele apenas lhe destruiu a vida ("He broke my heart. You merely broke my life"). Todo o amor que Humbert desesperadamente lhe lançou tornou-o um monstro que ela prefere não mais lembrar.
  Não tem lógica possível ou verosimilhança o projecto de Humbert? Não tem, excepto no lugar particular que guarda no seu coração, o único possível onde pode nascer, o único onde terá solo para ser enterrado, mas também aquele que lhe permite chegar a existir. Nesse ínfimo espaço encafuado no coração do monstro, a história macabra de maus tratos e pedofilia pode ser contada, por muito não o creia a cabeça, como uma bonita história de amor, tornada drama trágico de sentimentos e solidão pelo seu fracasso. Humbert não pode ser absolvido e tem de acabar encarcerado, porque aos monstros é preciso prender as garras. Mas nem por isso cabe negar-lhe a liberdade de se abrigar nessa distante moradia de devaneios absurdos e ilusões desconexas que ele traz no seu tão desvirtuado coração – porque também os monstros têm direito a sonhar.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Inevitável absurdo

  No conto “Lord Arthur Saville’s crime”, de Oscar Wilde, Arthur Saville é convencido pelo quiromante Septimus R. Podgers de que há um homicídio no seu futuro. Cuidando não ter o direito de casar com a sua noiva enquanto o espectro de tal evento pairar sobre os dois, resolve despachar o assunto antes do casamento, e, após várias tentativas frustradas, acaba por matar o próprio Podgers.

  Saville é um assassino? Não há dúvida de ter sido ele quem empurrou o quiromante para a morte, mas o acto foi verdadeiramente seu, objecto de uma decisão sua?
  Aceitando como verdadeira a palavra de Podgers, Saville está seguro de que vai matar alguém, restando apenas concretizar os dados do crime: a identidade da vítima, o modo, o lugar, a data. Resolve executar o homicídio não por desejo de tirar a vida a alguém em concreto, senão por pretender ultrapassar o assunto tão cedo quanto possível. Podemos duvidar de ser esta resolução verdadeiramente uma decisão, ou de ser ela suficientemente livre para descortinarmos liberdade de decidir de outro modo, e, com base nisso, de podermos responsabilizar este sujeito pela acção.
  Saville não vê alternativa à prática do delito, tomando por assente que as coisas não podem ser de outra maneira. Assim, de certo modo, ele não se vê sequer como decidindo praticar o acto, ao menos não se quisermos atribuir à decisão um poder de comando sobre a realização dos factos. A sua liberdade surge, por isso, ainda mais negada que a de Abraão quando a este foi pedido o sacrifício do filho Isaac (Gen 22). A Bíblia não dá conta de dúvidas, hesitações ou relutâncias de Abraão no cumprimento da anunciada vontade divina, mas se supusermos que a morte do filho lhe dá um desgosto do tamanho do amor verdadeiro que queremos pensar que ele sente por Isaac, faz sentido perguntar pela liberdade que lhe resta neste rito. Ora, por muito devoto seja o patriarca, não deixa de ser livre na sua resolução – essa liberdade, aliás, é pressuposto do comando divino, pois se Abraão prova a sua fé e a sua disponibilidade ao oferecer o filho é precisamente porque podia não tê-lo feito. Na base do cumprimento da vontade divina está a opção de ouvir Deus e de lhe responder sim – a história de Abraão mostra, destarte, que para lá do pedido, na verdadeira fé cabe ainda um decisivo momento de resposta. O verdadeiro crente pode pedir, mas também responde, e responde sim quando podia responder não.
  Não se passam assim as coisas na história de Wilde, pois se para Abraão a desobediência era possível, mas inaceitável, para Saville, a desobediência só é inaceitável por ser impossível. Há mesmo uma certa despersonalização, porquanto nele se esvazia a autonomia, ausentando-se o poder de decisão – na sua visão, as coisas, ao menos no seu rumo essencial, estão já decididas por ele. Torna-se então difícil condená-lo, ou mesmo julgá-lo, ao percebermos que pode não ser uma pessoa, enquanto ser autónomo que decide, o que temos pela frente. O que estamos exactamente a condenar se o condenamos? Não verdadeiramente a sua decisão, porque ele não decidiu; faltou à sua opção a liberdade que reconhecemos nele, mas ele não.
  A condenação que pretendamos impor-lhe pode ainda despersonalizá-lo noutro nível. Ao sentenciá-lo, aferimos uma correspondência entre ele e o modelo de uma pessoa livre, a quem podemos exigir que houvesse procedido de modo diverso. Pressupomos assim que ele podia (e só por isso devia) tê-lo feito – mas então esquecemos, porque escolhemos esquecer, que a explicação para o seu gesto reside justamente na sua certeza de não ter alternativa. Não compreendemos o que ele fez se lhe atribuirmos liberdade, e se lha tiramos, falham-nos as razões para o condenarmos. Se, ainda assim, insistimos em fazê-lo, é talvez por ser a pena para nós um destino tão absurdamente inevitável como para ele foi o seu crime. 

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Divina solidão

   No conto "In the reign of Harad IV", de Steven Millhauser, o protagonista é um artesão ao serviço do rei, perito na criação de pequenas réplicas de edifícios, alimentos, animais, e praticamente tudo o dotado de forma física. Se a princípio a sua arte é admirada na corte e além-fronteiras, com o passar do tempo, vai fazendo cada vez mais minúsculas as suas reproduções, sem nunca perder ou diminuir o cuidado pela exactidão nos pormenores. As suas obras vão-se fazendo cada vez mais invisíveis para o olho humano, até se tornarem inalcançáveis mesmo com lupas, e o miniaturista torna-se ele mesmo uma personagem distante na corte, quase perdido no seu mundo ínfimo.

  Pouco há de mais humano do que atingir esse mundo que adivinhamos por detrás dos panos, no esconderijo das ilusões que nos distraem no quotidiano. Presumivelmente imaginado, esse reino da verdade mantém-se invisível, por não podermos confiar nos nossos sentidos. Mas se não somos capazes de, pela razão ou alucinações, puxar as cortinas e aceder à realidade em si, este artista parece movido pelo fito de lá chegar por meio inverso: em vez de tentarmos aproximar-nos dessa realidade tão distante, vamos pegar nela enquanto ainda está connosco e é, portanto, ilusória, e vamos dar-lhe distância, enchendo-a de realidade, sem chegarmos, ainda assim, a perdê-la. O miniaturista quer criar um mundo mais e mais pequeno, ao ponto de se tornar claro, a dada altura, que ele deseja um reino invisível, que não pode ser descoberto – e parece consegui-lo, a acreditar no fracasso dos seus visitantes em vislumbrarem as suas obras. Não podendo confiar numa divindade que lhe abra a porta ao mundo das coisas em si, verdadeiras ou essenciais, vê-se na necessidade de criar ele mesmo esse mundo para o poder descobrir. E talvez não haja, afinal, gesto mais divino que esse de criar um universo tão pequeno, de pormenores tão ínfimos e distantes, que não se pode lá chegar depois de criado, o toque criador não pode mais encontrá-lo. A distância de um deus que nunca nos visita é, afinal, essa de um artesão que nos fez demasiado minúsculos para nos conseguir encontrar. Por isso mesmo, o seu maior milagre, na Bíblia, seria a vinda de Jesus: o criador faz-se do tamanho impossível das suas criaturas inalcançáveis para poder caminhar entre elas. Foi preciso deixar de ser Deus para o fazer, mas, ainda assim, não pudemos suportar perceber que afinal não somos ainda tão pequenos que Deus não possa chegar a nós, e demos-lhe a morte.
  O conto termina anunciando que a vida do miniaturista seria, doravante, difícil e sem perdão. De que perdão precisaria ele? Pode sem dúvida alçar-se a heresia esta ambição divina criadora de se fazer demasiado distante da obra. Como pode, além disso, o mundo não lhe perdoar esse isolamento, seu e dos seus frutos: é ele o único a poder desfrutar do seu reino, e já esta atitude de exclusão de tudo o mais, de suficiência dos próprios poderes criadores e de se bastar a si mesmo não apenas na satisfação com a sua arte como igualmente na imersão no próprio universo criado, se mostra difícil de compreender e aceitar. O artista não quer apenas bastar-se a si mesmo e ficar quieto, quer dispensar o mundo afirmando só precisar de si para criar outro – não reclama sequer espaço, porque o seu mundo invisível e ínfimo ameaça poder ser deixado, não em qualquer lugar, mas até fora de lugar algum.
  A ambição deste artesão pode, não obstante, ser, no fim de contas, própria de qualquer artista. Porque talvez seja essencial à obra de arte essa inacessibilidade, essa separação definitiva do criador. Quando Alberto Caeiro se despede dos versos que partem pela janela (XLVIII), fá-lo aceitando a inevitabilidade de eles partirem para serem versos e a impossibilidade de regressarem. Ora, o nosso protagonista vem a entender que a única maneira de garantir a separação definitiva do esculpido das mãos do escultor é privar também os olhos. E com esta separação, claro, assegura que a obra permanece, não morre com o criador, propósito último de quem cria. A sua arte e a sua ambição, porém, preparam-lhe uma armadilha cruel. O mundo minúsculo que ele criou já não é sequer vislumbrado pelos seus visitantes, e engolido por esse mundo, ele próprio já desapareceu, de certo modo, do universo que partilhava com a generalidade das pessoas. O seu sucesso será a sua condenação definitiva: pois quando conseguir finalmente fabricar esse mundo tão ínfimo e distante que já nem ele consiga aceder-lhe, terá terminado o seu trabalho e ficará só. Sozinho como um deus.

quarta-feira, 31 de março de 2021

Como escaravelhos

   No conto "The other town", de Steven Millhauser, as pessoas visitam uma réplica da cidade que habitam, quase perfeitamente idêntica à original, afora estar vazia de moradores. Os replicadores trabalham ali para que tudo, dentro e fora das casas, esteja igual ao original, assegurando que não apenas a natureza se desenvolve nos mesmos termos como os objectos assumem as mesmas posições e até as marcas de acidentes ou vestígios de calamidades são cuidadosamente repetidas.

  Os próprios cidadãos não têm seguro o motivo por que mantêm a réplica, avançando diferentes justificações e propósitos. Alguns pretendem mesmo que o melhor será livrarem-se dela. Mas não se dá notícia de uma inquietação que podia facilmente ser alimentada por um olhar atento ao quadro com que deparam.
  Um atractivo para algum dos habitantes (e preocupação para outros) é a oportunidade de entrarem nas réplicas das casas dos seus conterrâneos. Com efeito, não se fechando nenhuma porta aos visitantes, estes podem andar por onde bem entenderem na cidade artificial, inclusive nos lugares onde se reproduz o interior dos lares alheios. Desaparece a fronteira da privacidade, e o visitante pode encontrar o que lhe está barrado no original, pois tudo está disposto nos mesmos exactos termos, desde os objectos decorativos à roupa interior ou ao arranjo da cama, com a arrumação, ou desarrumação, correspondentes – nada falta nas réplicas das casas dos vizinhos, excepto os vizinhos.
  A ausência dos donos das casas assim invadidas no outro lado do espelho parece bastar aos cidadãos para terem por legítima a entrada e a espionagem – mas quão decisivo é esse vazio? Tem ele força suficiente para despir de relevância, ou significado, o quadro exposto nas casas de imitação?
  O exame destas outras casas não permite unicamente ao visitante ter conhecimento de que objectos (e quantos) possui o ausente. Se, num instante, o quarto de dormir da casa alheia está arrumado e organizado, e, nos seguintes, podem ser encontradas peças de roupa, inclusive interior, pelo chão, a cama desfeita, a luz apagada, copos com bebida alcoólica deixados na sala, etc., então não temos meramente informação sobre a localização das coisas num dado momento; temos, mais do que isso, um enredo, encontramos indícios de um episódio sexual. Prosseguindo o exame e alargando a atenção, podemos chegar a mais conclusões, descortinando, por exemplo, uma história romântica, quiçá de traição, ou até criminosa.
  O exemplo serve para notar que, estendendo-se no espaço e no tempo a observação dos objectos tocados (ou deixados por tocar) pela pessoa ausente, o que vemos é a vida dela, apesar de ela não estar lá para a viver. No limite, não é preciso encontrar a própria pessoa para a conhecermos por inteiro, e o que isto sugere é que o funcionamento da linguagem se replica na natureza narrativa da interacção humana. Para Wittgenstein, lembre-se, os jogos de linguagem, pela sua estrutura e modo de funcionamento, dispensam o referencial dos termos usados numa conversa: no conhecido exemplo do § 293 das Investigações Filosóficas, se supusermos que cada pessoa tem uma caixa com um escaravelho, que consegue ver a sua caixa, mas não a dos outros, e que, não obstante, todas usam o termo "escaravelho" sem disputas quanto ao seu significado (apesar de nenhuma poder garantir que a caixa que o outro traz contém um bicho igual ao da sua), então, conclui o filósofo austríaco, não faz diferença se realmente as caixas guardam algo idêntico, ou diferente, ou se, no limite, estão vazias. Ora, há algo de próximo a funcionar no mundo de "The other town", pois acabamos a concluir que, no limite, para conhecermos por completo a vida, a história, mesmo porventura a personalidade de alguém, não precisamos que ela esteja presente – talvez ela nem precise de existir, ou não mais que o escaravelho dentro da caixa.
  A conclusão seguinte é fácil, e não vem por mero espelhamento: as coisas passam-se na cidade-réplica como na original. O que a urbe de imitação sugere, no fim de contas, é que também deste lado do espelho não somos afinal tão essenciais como julgamos, nem sequer à nossa própria vida. Somos talvez, quando muito, um pretexto para que ela vá sendo vivida. Como os escaravelhos dentro da caixa, porém, não é verdadeiramente importante se existimos.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Toque proibido

  No livro Of mice and men, de John Steinbeck, dois trabalhadores migrantes, George e Lennie, são o inverso um do outro: George é pequeno, definido, esperto e decidido; Lennie é grande, muito forte, débil mental, com fraca vontade e autonomia. Amigos, vão juntos para todo o lado, sendo George o guardião de Lennie e a cabeça do par. Lennie, porém, com noção deficiente da própria força, frequentemente, acaba por lesar ou mesmo destruir sem intenção as coisas suaves de que gosta e que quer acariciar, sejam coelhos, cãezinhos ou até pessoas.

  Na figura de Lennie, o impacto advém de actuar uma força tão inocente quanto danosa. A tendência de Lennie é a da destruição, pois ele lesa ou mata tudo aquilo em que toca, sejam os ratos que vai apanhando, o cãozinho que lhe é oferecido, a mão do seu agressor Curley, ou, por fim, a mulher deste. Exceptuando em relação a Curley, no entanto, em todos esses casos, Lennie não queria agredir ou magoar, mas sim acarinhar, dar festas; e mesmo naquele caso excepcional, o intuito foi mais defensivo que ofensivo.
  Segundo critérios emocionais ou de consciência, Lennie é inocente: como George vai repetindo desalentado, ele age sem maldade, sem má intenção. Nunca quer causar dano a ninguém, nem a quem lhe faz mal – só ameaça zangar-se quando crê que George pode estar em perigo. Ainda assim, ninguém causa tantos estragos como ele: o seu desenho é o do desequilíbrio. Também George é desequilibrado nesta óptica, e, neste sentido, Steinbeck tem razão quando os explica por inversão, pois a nível mental e físico, estão ambos em extremos opostos. Se pensarmos, todavia, puramente no equilíbrio em si, o oposto de ambos é Slim, a personagem na qual encontramos a harmonia mais conseguida entre as possibilidades físicas e as capacidades intelectuais e relacionais. Todos os outros intervenientes sofrem de formas de desequilíbrio diversas – no caso de Lennie, ele extrema-se e assume contornos grotescos.
  Neste desequilíbrio acentuado assenta a ironia perversa do destino de Lennie: costumamos pensar na inocência como algo frágil e carente de protecção – mas aqui, em certa medida, encontramos o cenário inverso: é o mundo em redor – ou as criaturas vivas nas redondezas – que precisam, afinal, de protecção do gigante inocente. Pois se este monstro sem culpa é deixado à solta, é bem possível que destrua tudo.
  Lennie vai ansiando por coelhos, gosta da ideia de os acariciar, por lhe agradar sentir nas mãos coisas ou criaturas suaves, delicadas. Estranho encontro o que ele deseja, esse entre a inocência destruidora dele e a frágil dos coelhos. Parece buscar no mundo a mesma gracilidade que traz no coração. E iguais são os corações do colosso e dos pequenos bichos, morando em ambos a mesma inocência. O mesmo coração, mas diferentes tamanhos: uns são fracos, o outro é um portento de força; uns são inofensivos, o outro é tão perigoso quanto simples. Mas embora Lennie seja realmente uma força arrasadora, tal não nega a sua delicadeza interior: como se trouxesse no coração o corpo usado pelos coelhos, ele é realmente frágil por dentro, sendo fácil magoá-lo ou amedrontá-lo. Incapaz então de distinguir os planos interno e externo, Lennie procura um encontro impossível: o corpo frágil das criaturas doces é porta aberta para o seu coração simples; no caso dele, porém, em volta de um coração assim há um corpo demasiado sólido e pesado para que algum toque inócuo lhe seja possível.
  O toque deste homem grande parece divino. Tal como os deuses da mitologia antiga não podiam visitar o mundo humano sem assumirem formas terrenas – animais ou humanas –, e tal como nas religiões monoteístas a divindade não pode ser vista, ou sequer vislumbrada, ao menos directamente, também Lennie parece não poder tocar as criaturas frágeis que tanto busca sem as destruir inevitavelmente. Qualquer festa sua é fulminante, qualquer carícia é relâmpago. Embora humano em aparência, ele surge nas paisagens humanas como titã vindo de outras moradias, usando poder destruidor que não poupa nada neste mundo, impreparado como está para ver irromper energia tão arrasadora. Energia próxima a esta é a do fogo: só dá vida enquanto contido, dominado, restringido – e para tal, é mister guardar distância. Por muito benéfico possa ser o fogo, o seu toque mantém-se proibido: o contacto faz das coisas cinzas. Mas o fogo não aceita distâncias, quer sempre agarrar o que esteja à disposição para ser abraçado. Do mesmo modo, Lennie, qual fogo inconsciente com sentimentos e coração simples, procura agarrar tudo o que não pode tocar sem destruir. Por isso, é preciso matá-lo, por ser incomportável deixá-lo no mundo podendo a qualquer momento esmagar as coisas com o seu toque divino. Não é ele fogo, então, mas deus, porque não pode ser mantido à distância ou restringido. George, representante da sociedade piedosa, mas ameaçada, dá-lhe a morte, provando, podem alguns dizer, que afinal o gigante não é deus nenhum, pois morre às mãos de um homem. Mas talvez ele se mostre, no fim de contas, um deus por isso mesmo.

domingo, 31 de janeiro de 2021

Sair à rua por um dia

   No livro Notre-Dame de Paris. 1482, de Victor Hugo, celebra-se, em Paris, o Festival dos Tolos, onde concorrem diversos pretendentes ao trono de Papa dos Tolos, Para ganharem, exibem as caretas mais extremadas, as feições mais grotescas, os disfarces mais repulsivos de que são capazes. Apresenta-se, finalmente, Quasimodo, que impressiona todos pelo seu aspecto. O público dá conta de ser aquela a sua aparência de todos os dias e Quasimodo é finalmente eleito por unanimidade.

 

  Corcunda, com um olho escondido pelas deformidades, de proporções incomuns e grotescas, Quasimodo é uma aberração. Pela aparência, surge como vencedor natural do concurso: ninguém mais disforme que ele. Mas que concurso é este?

  O verdadeiro espectáculo aqui é o da humanidade, o da verdade humana, pelo visto só revelada quando exposta em público. A actuação dos concorrentes traduz-se, no fim de contas, na demonstração de todos os traços humanos, tão mais verdadeiros quanto exibidos a um auditório. Esforça-se cada participante por se transformar, acentuando traços, expressões ou imperfeições ao ponto do destroço (“chaque bouche était un cri, chaque œil un éclair, chaque face une grimace, chaque individu une posture”). Com atitude teatral, esforçam-se por representar papéis de aberrações, são pessoas a fazerem de criaturas. Mas deformamo-nos mais quando choramos ou quando rimos, quando nos exaltamos ou nos distraímos de nós mesmos – tudo momentos em que menos consciência temos de como aparecemos as olhos dos demais, e portanto em que menos representamos. Também representamos (porventura mais até) quando nos contemos, quando adoptamos comportamento pacato ou somos moderados nas expressões. Não somos necessariamente falsos quando estamos compostos, mas somos inevitavelmente verdadeiros quando perdemos a compostura. Algo de genuíno da nossa natureza nos leva a querermos parecer bonitos, mas dificilmente mentimos quando não evitamos ser feios. Representando a fealdade, os concorrentes querem negá-la às avessas. Exibem-na como máscara para afirmarem ter um rosto por trás: Quasimodo vive escondido na catedral, com medo da rejeição do seu rosto horrendo, demasiado verdadeiro para o negar sem esconder. Estes concorrentes, inversamente, mostram-se horrendos para provarem não precisar de esconder a fealdade que não é sua. Não percebem que por aí acabam negando a verdade da sua humanidade: porque não podemos ser humanos se não formos criaturas.  

  O espectáculo é tamm do próprio público, que actua trazendo e mesmo criando os rostos exibidos pelos participantes – convocando-os, esperando-os, atiçando o exagero da gracejo, alimentando a exibição pelo consumo dela; bem como reagindo rindo, gozando, ridicularizando, desprezando, rejeitando. Temos por inteiro a humanidade nesta simbiose de demonstração de si para si, e de ridicularização e recusa de si por si – tão humano é o feio como a sua rejeição.

  Neste quadro surge então Quasimodo, ponto culminante desta exibição de humanidade, tão mais verdadeiro quanto grotesco, tão mais desprezível e propenso a rejeição quanto trágico e patético. Igualmente tão mais distante de tudo isto quanto mais capaz de se identificar, pelos sentimentos, com o ambiente, sujeitando-se, por um lado, à rejeição do seu rosto, e, por outro, sendo muito capaz, porque não usa caretas, de sentir essa rejeiçãoEspécie de Cristo pode ele mostrar-se, tomando para si não propriamente os pecados, mas a vergonha dos outros: fá-lo usando uma careta não como máscara, mas como rosto, identificando-se com ela, tornando impossível distanciar-se dela. A impossibilidade de fugir da cruz é a cruz que carrega por detrás da cruz que carregaporque ao contrário dos outros concorrentes, ele é o seu rosto, as caretas não lhe são possíveis.

  Os demais pretendem viver somente no riso tranquilo de quem está seguro por não se identificar com máscaras. Inconscientes são, por não perceberem como se identificam com a máscara do seu riso, a única que lhes dá uma triste e afinal tão grotesca vida. Nada distorce mais um rosto do que a natureza, excepto nós mesmos quando choramos por fragilidade, ou quando rimos com crueldade.

  O público acolhe Quasimodo com entusiasmo antes ainda de perceber que ele não traz máscara de concurso. Dando tino de ser aquela a sua apresentação quotidiana, continuam a diversão e o gozo: as desproporções de Quasimodo dão-lhe força física e são propícias a torná-lo ameaçador, com suas mãos grandes e robustas, fazendo-o colosso por completar (un géant brisé et mal ressoudé). Ninguém, contudo, é tão anão como um gigante inacabado, e ele nunca deixa de ser pequeno o suficiente para merecer a troça de todos. Com efeito, agora o gozo é direccionado pessoalmente para o corcunda, e surge mesmo a aversão mais indignada, a repugnância mais sobranceira: as mulheres não querem ver (mas vêem, claro) e garantem que ele é mau, que é o diabo. Rejeitam, mas precisam de motivos para a rejeição, que não têm problemas em fabricar. Nesta encenação de condenação e ostracismo, afastam-se da possibilidade de se identificarem com o rosto grotesco que lhes é exibido, querem salvar-se de serem tão feiosSó tornando-se inumanos, todavia, se podem salvar, pois perdem humanidade quando condenam o humano que tanta aversão lhes provoca.

  Deixando Quasimodo a viver sozinho no pedestal do ridículo, à maneira da populaça que apontava e gozava os crucificados, querem viver exclusivamente sentados na plateia. Não percebem que quando forem embora, descobrirão que tamsentem e choram como qualquer actor. Estamos condenados a encontrar espelhos, e mais cedo ou mais tarde, algum há-de revelar-nos que também somos feios, como toda a gente.

  Quasimodo, ainda assim, não mostra sofrer por se ver neste papel: calmo, e a dado momento até orgulhoso (Quasimodo s'en laissa revêtir sans sourciller et avec une sorte de docilité orgueilleuse”), parece satisfeito por ser Papa dos Tolos. Certamente ajuda a surdez que não deixa os comentários maldosos chegarem-lhe aos ouvidos. Mas, sobretudo, contenta-o ver-se aceite por um dia, mesmo que o acolhimento traduza a mais vincada rejeição. A sua calma não será porventura sabedoria, mas podia, de todo o modo, revelar, se ele fora disso capaz, a consciência profunda de ser acolhido sem máscara, de aceitar ser verdadeiro sendo feio. Por um dia, Quasimodo pode sair à rua e seguir sendo o que é sem precisar de se esconder. Pode ser verdadeiro e acolhido: os outros terão de representar para o aceitarem – pois serão eles, na plateia, a usarem hoje as máscaras, enquanto ele, no palco, surgirá despido e sorridente. Não precisa de actuar nem de esconder, só de se mostrar despido, e terá cumprido o seu papel. Não podia desperdiçar oportunidade tão única de, sempre trágico, ser feliz.