terça-feira, 30 de novembro de 2021
Cabeça perdida
sábado, 30 de outubro de 2021
Brincadeiras valiosas
Na animação Karakai Jōsu no Takagi-san (Sōichirō Yamamoto), Takagi e Nishikata são dois colegas de escola na transição da infância para a adolescência. Os episódios consistem em vários segmentos de interacção entre os dois, que passam sempre por apostas e tentativas de deixar mal o outro. Takagi ganha sempre e diverte-se imenso com a frustração e o embaraço de Nishikata.
Pode falar-se de amor entre os dois? Nishikata pensa em Takagi como impiedosa, com requintes de crueldade discreta, e uma adversária quase demasiado difícil de bater. Mas em momentos inesperados ou distraídos, não deixa de reparar nos seus encantos femininos, e reparar é ceder. De Takagi não ouvimos os pensamentos e ela nunca chega a dizer ao rapaz que gosta dele, mas deixa a sugestão várias vezes, tanto implícita como muito explicitamente. Di-lo uma vez directamente, para logo a seguir alegar que mentiu. Com esta e outras atitudes, Takagi provoca Nishikata, e pela provocação tortura-o, pois este tem claros problemas em descobrir-se envolvido em qualquer contacto próximo que traia intimidade. No ar fica sempre a dúvida entre pensarmos que só a move o prazer sádico de o ver ansioso e nervoso pela proximidade, e desanimado pelo embaraço e má figura, por um lado, e que vendo bem, não lhe daria tanto prazer provocá-lo se não gostasse dele, por outro.
Takagi gosta de expor Nishikata e ri-se sempre que o deixa embaraçado, mas nunca o expõe perante os outros, só perante ela (exceptuando alguns ralhetes ou chamadas de atenção do professor, inofensivos nesta óptica). Há nisso, talvez, não apenas mera decência, mas um gostar. É verdade que a simples decência ou personalidade boa não exporiam a fragilidade ou nudez do outro, enquanto o mero gozo egoísta não se importaria com a exposição de outrem perante os demais. E podem combinar-se, claro, mas não conseguimos pensar essa combinação sem ao menos vislumbrarmos a sugestão de que ela gosta dele. Takagi adopta uma atitude permanente de procurar aceder à vulnerabilidade de Nishikata, mas não para a tornar assunto público, antes mantendo-a consigo e tornando-a um assunto só deles. Este propósito recebe confirmação explícita nos constantes comentários de Takagi quando chama a atenção para o estarem os dois sozinhos. Servem os comentários, naturalmente, para o embaraçar, mas, além disso, marcam mais claramente esse estarem à parte: notando a separação dos demais, é como ela fizesse questão de erguer uma barreira que os aparta do resto do mundo.
Esta técnica assume outros efeitos, ou ao menos mais perceptíveis, em ocasiões como a do segmento ai ai gasa. Ai ai gasa é o termo nipónico usado para o abrigar de duas pessoas sob o mesmo guarda-chuva, fenómeno comum no Japão em função de aguaceiros inesperados, ao qual se associam sugestões românticas. É Takagi quem chama a atenção para o encontrarem-se ambos nessa situação, e tenta fazê-lo nomear o fenómeno, tanto para o envergonhar como, suspeitamos, para tornar mais verdadeiro o significado da experiência. Se ela não dissesse nada, talvez as implicações românticas passassem ao lado, ou só fossem notadas por ele mais tarde, em retrospectiva. Uma vez feitas assunto de conversa, tornam-se actuais.
Se nunca o expõe perante os outros, Takagi ri constantemente de Nishikata e dos seus embaraços. Só se pode ser a um tempo tão gentil e tão impiedosa estando segura da mesma gentileza do outro lado. Takagi sabe que por muito se sinta frustrado e queira vencê-la nas disputas que seguem travando, o rapaz seria absolutamente incapaz de a magoar, física, psíquica ou até simbolicamente – como comprovamos, aliás, pela prontidão dele em perguntar-se se foi longe demais a cada sinal mínimo de perturbação que pensa detectar no rosto dela. Suficientemente relaxada para entregar ao adversário todas as armas com que ele poderia magoá-la, por saber que isso nunca acontecerá, Takagi tem a segurança e a tranquilidade de uma criança que confia no monstro com quem brinca. Ciente disso mesmo e consciente que baste para observar o que se passa e jogar com Nishikata conforme lhe apetece, é ela afinal a adulta e ele a criança.
Durante uma das apostas, Takagi promete que dará a Nishikata o seu primeiro beijo se ele ganhar. Claro que ele perde, mas não podemos deixar de encontrar nisto, da parte dela, o arrojo intrépido de deitar numa brincadeira algo pretensamente valioso, único até, porque o primeiro beijo não se repete. Ao apostá-lo assim, a rapariga sugere que talvez este não tenha tanta importância: é algo que pode ser jogado, objecto de aposta. Sabemos, naturalmente, que ela só o joga por se passar exactamente o contrário. Se não fora extremamente importante e significativo o que ela oferece, ou se não tivesse ao menos consciência de ser assim visto por ele, o efeito de embaraço pretendido não chegaria a nascer. Ainda assim, ela aposta-o e podemos pensar que está segura de vencer (pois vence sempre), por muito se apresente incerta quanto a isso, mas a verdade é que há sempre a hipótese, por muito inverosímil, de perder e ter de dar o beijo.
Que é um beijo afinal? Talvez com o tempo e a repetição acabemos por despi-los de significado e ver neles somente a casualidade convencionada da expressão de um afecto tornado mecânico. O primeiro beijo, contudo, não teve oportunidade de perder nada, surge com toda a carga emotiva e simbólica, e estabelece a mais incerta, afastada e representada das uniões, mas, ao mesmo tempo, também a mais sentida, porque mais intensa. Quando Takagi larga no jogo esta experiência, parece querer reduzir-lhe a importância ao ponto de poder incluí-la nas brincadeiras deles. Não obstante, é inescapável a sugestão de orientação contrária: as brincadeiras são tão importantes para ela que valem bem o seu primeiro beijo. Feitas de nadas, competições sem prémios de exibir, disputas que nada provam no mundo real, enchem de significado, ainda assim, as suas vidas, porque lhes trazem sorrisos e dispensam histórias. O primeiro beijo é demasiado importante para se brincar com ele, mas pode brincar-se, porque na brincadeira é que Takagi e Nishikata, ainda crianças, deitam toda a verdade de que são capazes, e porque, no fim de contas, podem bem tanto dar um primeiro beijo como não dar, visto que o mais importante que há entre eles já o têm, e têm-no todos os dias: estão sempre lá para brincarem um com o outro.
sábado, 2 de outubro de 2021
Reunião de ausentes
quarta-feira, 1 de setembro de 2021
Divina autoridade
domingo, 1 de agosto de 2021
O espelho da ordem
quinta-feira, 1 de julho de 2021
Direito a sonhar
segunda-feira, 31 de maio de 2021
Inevitável absurdo
sexta-feira, 30 de abril de 2021
Divina solidão
Pouco há de mais humano do que atingir esse mundo que adivinhamos por detrás dos panos, no esconderijo das ilusões que nos distraem no quotidiano. Presumivelmente imaginado, esse reino da verdade mantém-se invisível, por não podermos confiar nos nossos sentidos. Mas se não somos capazes de, pela razão ou alucinações, puxar as cortinas e aceder à realidade em si, este artista parece movido pelo fito de lá chegar por meio inverso: em vez de tentarmos aproximar-nos dessa realidade tão distante, vamos pegar nela enquanto ainda está connosco e é, portanto, ilusória, e vamos dar-lhe distância, enchendo-a de realidade, sem chegarmos, ainda assim, a perdê-la. O miniaturista quer criar um mundo mais e mais pequeno, ao ponto de se tornar claro, a dada altura, que ele deseja um reino invisível, que não pode ser descoberto – e parece consegui-lo, a acreditar no fracasso dos seus visitantes em vislumbrarem as suas obras. Não podendo confiar numa divindade que lhe abra a porta ao mundo das coisas em si, verdadeiras ou essenciais, vê-se na necessidade de criar ele mesmo esse mundo para o poder descobrir. E talvez não haja, afinal, gesto mais divino que esse de criar um universo tão pequeno, de pormenores tão ínfimos e distantes, que não se pode lá chegar depois de criado, o toque criador não pode mais encontrá-lo. A distância de um deus que nunca nos visita é, afinal, essa de um artesão que nos fez demasiado minúsculos para nos conseguir encontrar. Por isso mesmo, o seu maior milagre, na Bíblia, seria a vinda de Jesus: o criador faz-se do tamanho impossível das suas criaturas inalcançáveis para poder caminhar entre elas. Foi preciso deixar de ser Deus para o fazer, mas, ainda assim, não pudemos suportar perceber que afinal não somos ainda tão pequenos que Deus não possa chegar a nós, e demos-lhe a morte.
O conto termina anunciando que a vida do miniaturista seria, doravante, difícil e sem perdão. De que perdão precisaria ele? Pode sem dúvida alçar-se a heresia esta ambição divina criadora de se fazer demasiado distante da obra. Como pode, além disso, o mundo não lhe perdoar esse isolamento, seu e dos seus frutos: é ele o único a poder desfrutar do seu reino, e já esta atitude de exclusão de tudo o mais, de suficiência dos próprios poderes criadores e de se bastar a si mesmo não apenas na satisfação com a sua arte como igualmente na imersão no próprio universo criado, se mostra difícil de compreender e aceitar. O artista não quer apenas bastar-se a si mesmo e ficar quieto, quer dispensar o mundo afirmando só precisar de si para criar outro – não reclama sequer espaço, porque o seu mundo invisível e ínfimo ameaça poder ser deixado, não em qualquer lugar, mas até fora de lugar algum.
quarta-feira, 31 de março de 2021
Como escaravelhos
sábado, 27 de fevereiro de 2021
Toque proibido
domingo, 31 de janeiro de 2021
Sair à rua por um dia
No livro Notre-Dame de Paris. 1482, de Victor Hugo, celebra-se, em Paris, o Festival dos Tolos, onde concorrem diversos pretendentes ao trono de Papa dos Tolos, Para ganharem, exibem as caretas mais extremadas, as feições mais grotescas, os disfarces mais repulsivos de que são capazes. Apresenta-se, finalmente, Quasimodo, que impressiona todos pelo seu aspecto. O público dá conta de ser aquela a sua aparência de todos os dias e Quasimodo é finalmente eleito por unanimidade.
Corcunda, com um olho escondido pelas deformidades, de proporções incomuns e grotescas, Quasimodo é uma aberração. Pela aparência, surge como vencedor natural do concurso: ninguém mais disforme que ele. Mas que concurso é este?
O verdadeiro espectáculo aqui é o da humanidade, o da verdade humana, pelo visto só revelada quando exposta em público. A actuação dos concorrentes traduz-se, no fim de contas, na demonstração de todos os traços humanos, tão mais verdadeiros quanto exibidos a um auditório. Esforça-se cada participante por se transformar, acentuando traços, expressões ou imperfeições ao ponto do destroço (“chaque bouche était un cri, chaque œil un éclair, chaque face une grimace, chaque individu une posture”). Com atitude teatral, esforçam-se por representar papéis de aberrações, são pessoas a fazerem de criaturas. Mas deformamo-nos mais quando choramos ou quando rimos, quando nos exaltamos ou nos distraímos de nós mesmos – tudo momentos em que menos consciência temos de como aparecemos as olhos dos demais, e portanto em que menos representamos. Também representamos (porventura mais até) quando nos contemos, quando adoptamos comportamento pacato ou somos moderados nas expressões. Não somos necessariamente falsos quando estamos compostos, mas somos inevitavelmente verdadeiros quando perdemos a compostura. Algo de genuíno da nossa natureza nos leva a querermos parecer bonitos, mas dificilmente mentimos quando não evitamos ser feios. Representando a fealdade, os concorrentes querem negá-la às avessas. Exibem-na como máscara para afirmarem ter um rosto por trás: Quasimodo vive escondido na catedral, com medo da rejeição do seu rosto horrendo, demasiado verdadeiro para o negar sem esconder. Estes concorrentes, inversamente, mostram-se horrendos para provarem não precisar de esconder a fealdade que não é sua. Não percebem que por aí acabam negando a verdade da sua humanidade: porque não podemos ser humanos se não formos criaturas.
O espectáculo é também do próprio público, que actua trazendo e mesmo criando os rostos exibidos pelos participantes – convocando-os, esperando-os, atiçando o exagero da gracejo, alimentando a exibição pelo consumo dela; bem como reagindo rindo, gozando, ridicularizando, desprezando, rejeitando. Temos por inteiro a humanidade nesta simbiose de demonstração de si para si, e de ridicularização e recusa de si por si – tão humano é o feio como a sua rejeição.
Neste quadro surge então Quasimodo, ponto culminante desta exibição de humanidade, tão mais verdadeiro quanto grotesco, tão mais desprezível e propenso a rejeição quanto trágico e patético. Igualmente tão mais distante de tudo isto quanto mais capaz de se identificar, pelos sentimentos, com o ambiente, sujeitando-se, por um lado, à rejeição do seu rosto, e, por outro, sendo muito capaz, porque não usa caretas, de sentir essa rejeição. Espécie de Cristo pode ele mostrar-se, tomando para si não propriamente os pecados, mas a vergonha dos outros: fá-lo usando uma careta não como máscara, mas como rosto, identificando-se com ela, tornando impossível distanciar-se dela. A impossibilidade de fugir da cruz é a cruz que carrega por detrás da cruz que carrega, porque ao contrário dos outros concorrentes, ele é o seu rosto, as caretas não lhe são possíveis.
Os demais pretendem viver somente no riso tranquilo de quem está seguro por não se identificar com máscaras. Inconscientes são, por não perceberem como se identificam com a máscara do seu riso, a única que lhes dá uma triste e afinal tão grotesca vida. Nada distorce mais um rosto do que a natureza, excepto nós mesmos quando choramos por fragilidade, ou quando rimos com crueldade.
O público acolhe Quasimodo com entusiasmo antes ainda de perceber que ele não traz máscara de concurso. Dando tino de ser aquela a sua apresentação quotidiana, continuam a diversão e o gozo: as desproporções de Quasimodo dão-lhe força física e são propícias a torná-lo ameaçador, com suas mãos grandes e robustas, fazendo-o colosso por completar (“un géant brisé et mal ressoudé”). Ninguém, contudo, é tão anão como um gigante inacabado, e ele nunca deixa de ser pequeno o suficiente para merecer a troça de todos. Com efeito, agora o gozo é direccionado pessoalmente para o corcunda, e surge mesmo a aversão mais indignada, a repugnância mais sobranceira: as mulheres não querem ver (mas vêem, claro) e garantem que ele é mau, que é o diabo. Rejeitam, mas precisam de motivos para a rejeição, que não têm problemas em fabricar. Nesta encenação de condenação e ostracismo, afastam-se da possibilidade de se identificarem com o rosto grotesco que lhes é exibido, querem salvar-se de serem tão feios. Só tornando-se inumanos, todavia, se podem salvar, pois perdem humanidade quando condenam o humano que tanta aversão lhes provoca.
Deixando Quasimodo a viver sozinho no pedestal do ridículo, à maneira da populaça que apontava e gozava os crucificados, querem viver exclusivamente sentados na plateia. Não percebem que quando forem embora, descobrirão que também sentem e choram como qualquer actor. Estamos condenados a encontrar espelhos, e mais cedo ou mais tarde, algum há-de revelar-nos que também somos feios, como toda a gente.
Quasimodo, ainda assim, não mostra sofrer por se ver neste papel: calmo, e a dado momento até orgulhoso (“Quasimodo s'en laissa revêtir sans sourciller et avec une sorte de docilité orgueilleuse”), parece satisfeito por ser Papa dos Tolos. Certamente ajuda a surdez que não deixa os comentários maldosos chegarem-lhe aos ouvidos. Mas, sobretudo, contenta-o ver-se aceite por um dia, mesmo que o acolhimento traduza a mais vincada rejeição. A sua calma não será porventura sabedoria, mas podia, de todo o modo, revelar, se ele fora disso capaz, a consciência profunda de ser acolhido sem máscara, de aceitar ser verdadeiro sendo feio. Por um dia, Quasimodo pode sair à rua e seguir sendo o que é sem precisar de se esconder. Pode ser verdadeiro e acolhido: os outros terão de representar para o aceitarem – pois serão eles, na plateia, a usarem hoje as máscaras, enquanto ele, no palco, surgirá despido e sorridente. Não precisa de actuar nem de esconder, só de se mostrar despido, e terá cumprido o seu papel. Não podia desperdiçar oportunidade tão única de, sempre trágico, ser feliz.