E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sábado, 31 de dezembro de 2016

Os brinquedos esquecidos


  Durante o arco "Dressrosa" da série de animação One Piece (Eiichiro Oda), os Piratas do Chapéu de Palha chegam à ilha Dressrosa, governada pelo Schichibukai Donquixote Doflamingo, e encontram uma população composta por seres humanos e brinquedos vivos. Descobrem que esses brinquedos são na verdade pessoas transformadas por acção dos poderes especiais de Sugar, subordinada de Doflamingo, com o intuito de melhor controlar a população. Depois de convertidas em brinquedos, as pessoas são esquecidas pelos seus familiares e amigos e é como se nunca tivessem existido – para além de deixarem de ter vontade própria, pois os seus corpos de brinquedo obedecem a todas as ordens que recebem.

  Não é surpreendente constatar que, uma vez brinquedos, as vítimas têm de obedecer aos comandos que lhes são dirigidos. Com efeito, um brinquedo é, por definição, destituído de vontade própria. Pode ser tudo o que se quiser, viver todas as aventuras, possíveis e impossíveis, realizar todo o tipo de feitos e sofrer todo e qualquer evento que possa ser imaginado – os seus limites são os da imaginação. Mas a vontade pertence sempre a outrem. Se o brinquedo está morto, é apenas porque é incapaz de imaginar: a sua vida mora na imaginação de quem brinca com ele.
  Mais difícil de perceber, à partida, é a outra consequência da metamorfose: porque são as vítimas esquecidas por toda a gente depois de transformadas?
  A sujeição trágica dos brinquedos ao esquecimento é bem ilustrada no filme Toy Story 2 (John Lasseter, Lee Unkrich, Ash Brannon), no qual o brinquedo Woody é raptado para ser vendido a um museu. Colocado perante a alternativa entre voltar ao seu dono – o qual acabará um dia por crescer e, muito provavelmente, abandoná-lo – e passar o resto de um tempo indefinido em exposição, Woody prefere a primeira opção, porque, no fim de contas, o destino de um brinquedo mora nas mãos das crianças.
  A brincadeira é a vida possível de um brinquedo. Para este, uma eternidade passada numa montra, sem ninguém para lhe pegar ou brincar consigo, é, afinal, morrer. Cada brincadeira tem a sombra trágica que lhe desenham os limites da efemeridade. Brincadeira nenhuma é eterna e, por isso, a vida do brinquedo só dura enquanto as mãos da criança permanecerem suficientemente pequenas para brincar. Mas privar-se de toda e qualquer brincadeira, escapar à perda de quem lhe dava a pouca vida que podia esperar, essa seria a verdadeira morte para Woody. Não podemos morrer se não chegarmos a nascer – mas, no fim de contas, privar-se da morte é a morte mais definitiva de todas. Woody escolheu viver.
  O brinquedo está condenado a lembrar a criança que desapareceu. A criança esquece, tem de esquecer, para continuar criança. Na verdade, se os brinquedos são abandonados, isso não se deve a que o seu dono, criança esquecida, os tenha olvidado. Pelo contrário, é precisamente porque deixou de ser criança que ele ainda os recorda. Os brinquedos lembram ao adulto a criança que ele foi e já não é, já não poderá ser nunca mais. A brincadeira, efémera por definição, traz sempre em si uma promessa impossível de eternidade: se for capaz de esquecer-se de si, a criança pode continuar criança. Se puder esquecer-se de crescer, ela continuará a ser quem é. A criança não cresce para parar de brincar; pára de brincar para crescer. O brinquedo é para o adulto a lembrança da promessa implícita na brincadeira que partilharam, a promessa que ele não cumpriu: nunca chegar a ser adulto.
  Isto mesmo pode ser percebido a partir da história de Peter Pan (J. M. Barrie, Peter and Wendy). Wendy, Jane, Margaret e muitas outras lembram-se das aventuras que tiveram com o rapaz que não cresce, mas este não se recorda. Peter Pan esqueceu cada uma delas e assim tem de ser, pois só esquecendo ele pode continuar criança. Esquecer é a condição para poder continuar a brincar. São os adultos, como Wendy, quem recorda. Não o rapaz perdido.
  Porque esquecem os habitantes de Dressrosa os familiares e amigos tornados brinquedos? Há um propósito agora muito claro neste plano: não se trata apenas de domesticar os novos brinquedos, transformados em instrumentos ao sabor de caprichos alheios. Trata-se também – ou talvez sobretudo – de tornar crianças as pessoas que agora com eles brincam, mas os esqueceram.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O estrangeiro em casa

  No conto "Round the Circle" (O. Henry), resumido aqui, Sam Webber parece ser apenas capaz de apreciar a mulher e o seu lar quando está longe. Assim que volta a casa, torna o seu desencanto e é como se nunca tivesse partido. Sam viaja, mas não volta estrangeiro. Ele só consegue ser um estranho ao seu mundo enquanto permanece fora dele.
  Também Innocent Smith, personagem de Manalive (G. K. Chesterton), se afasta da sua casa e família para voltar mais tarde. Também ele as aprecia à distância. Mas a sua viagem é diferente: ele parte precisamente para se afastar da mulher e dos filhos, em busca da saudade que o fará voltar.
  Ao contrário de Sam, Innocent lembra-se de brincar e do significado que os brinquedos têm. Os brinquedos atraem-nos por serem pequenos; é sua pequenez que os torna distantes: “Why, the whole aim of a house is to be a doll's house. Don't you remember, when you were a child, how those little windows WERE windows, while the big windows weren't.
  O segredo do encanto dos brinquedos é a sua distância. É no espaço desta que podemos imaginar, construir, tecer, narrar. É pela distância que a brincadeira pode nascer e é através dela que o mundo se pode tornar maravilhoso. Porque, como explica William Hazlitt ("Why distant objects please"), “[i]n looking at the misty mountain-tops that bound the horizon, the mind is as it were conscious of all the conceivable objects and interests that lie between; we imagine all sorts of adventures in the interim; strain our hopes and wishes to reach the air-drawn circle, or to 'descry new lands, rivers, and mountains,' stretching far beyond it (...). Where the landscape fades from the dull sight, we fill the thin, viewless space with shapes of unknown good, and tinge the hazy prospect with hopes and wishes and more charming fears.
  A distância é o segredo que dá vida à brincadeira e encanto à fantasia. É por saber isso que Innocent parte: “I have found out how to make a big thing small. I have found out how to turn a house into a doll's house. Get a long way off it: God lets us turn all things into toys by his great gift of distance. Once let me see my old brick house standing up quite little against the horizon, and I shall want to go back to it again.
  Também Sam, quando está longe, experimenta o desejo de tornar a casa. A distância também o afecta. Só que pode dizer-se dele o que diz Hazlitt sobre o efeito da distância em geral: “It is not the little, glimmering, almost annihilated speck in the distance that rivets our attention and 'hangs upon the beatings of our hearts': it is the interval that separates us from it, and of which it is the trembling boundary, that excites all this coil and mighty pudder in the breast. Into that great gap in our being 'come thronging soft desires' and infinite regrets.” De facto, o objecto distante apenas existe no horizonte de Sam para fazer nascer o espaço entre eles e permitir-lhe moldar aí a casa dos seus desejos, a família que ele adora. Ele não ama verdadeiramente o lar que tem, mas sim aquele de que sente a falta – e esse só pode aparecer quando estão separados. Porque quando Sam regressa, a distância desaparece: a casa de Sam só é uma casa de bonecas quando ele a vê de muito longe; deixa de ser pequena sempre que se aproxima. Sam esqueceu-se do que é brincar e por isso, ao invés das crianças, que apenas precisam da fantasia para se descobrirem distantes, ele precisa de se distanciar para ter a oportunidade de fantasiar.
  Não é assim com Innocent. Tal como Sam, é só à distância que ele consegue amar a sua família e o seu lar. Só que, como as crianças, ele consegue distanciar-se daquilo que lhe é mais próximo. As crianças fazem-no em cada brincadeira e é precisamente para ver a sua casa como uma casa de brincar que Innocent se afasta para a ver de longe.
  A condição para Innocent se manter junto dos seus é senti-los longe de si: “I heard my wife and children talking and saw them moving about the room (...) and all the time I knew they were walking and talking in another house thousands of miles away, under the light of different skies, and beyond the series of the seas. I loved them with a devouring love, because they seemed not only distant but unattainable.” Quando o passar do tempo começa a esvanecer essa distância, ele parte para a ganhar de novo – e trazê-la consigo no regresso.
  Quando Sam retorna, não chega estrangeiro, mas o mesmo de antes, porque não trouxe a distância consigo. Ao contrário, Innocent partiu precisamente para ir buscar o estrangeiro que tinha medo de perder: ele mesmo.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

A hipótese do perdão


  No episódio “White Bear” (Carl Tibbetts), da série Black Mirror, Victoria Skillane acorda numa casa sem memória de quem é ou de como foi ali parar. Já na rua, é perseguida por muitas pessoas que a filmam sem reagir a nada do que diz e por algumas que parecem querer atacá-la com armas. Depois de várias provações, acaba por descobrir que é uma criminosa condenada por ter ajudado e filmado o namorado a torturar e queimar uma criança. Foi condenada a uma pena cujo propósito é o de submetê-la ao sofrimento infligido à sua vítima. Para isso, todos os dias apagam-lhe a memória e fazem-na viver aquele pesadelo até ao clímax em que lhe recordam o que fez. Apagam-lhe novamente a memória desse dia e do seu crime, e no dia a seguir recomeça tudo.

  A sentença que condena Victoria parece guiada pela lógica retributiva: a de devolver à agente do crime o mal por esta imposto à vítima, obrigando-a a passar pelo que a criança passou. Este episódio oferece, no entanto, uma boa ilustração de um problema latente na retribuição.
  Pela sua própria natureza, a retribuição traz sempre o perigo de deixar de ser retribuição. Com efeito, ela começa por ser uma paga, uma expiação pelo que se fez, pelo mal causado com o crime. Na medida em que a punição se guie apenas por este objectivo, ela terá de se manter proporcional, não podendo exceder a medida do mal praticado. Ora, o problema surge com a fácil associação deste intuito – que em si mesmo pode sustentar-se em meros raciocínios lógicos, sem carecer de base emocional – com o desejo de vingança. Este desejo começa precisamente na intenção de castigar o mal que nos foi feito, de devolver à pessoa o ataque que nos dirigiu. O problema da vingança, porém, é que ela não traz em si a solução para o problema que lhe deu origem, desde logo porque não tem o poder de apagar o mal feito.
  O mal cometido com o crime ou ofensa permanece lá, como uma afronta sempre evidente, sempre visível, pela razão simples de que o agente nunca pode desfazer o que fez. Pode arrepender-se, pedir desculpa, praticar boas acções, mas nada do que faça tem efeitos no passado, pelo que o gesto ofensivo mantém a inalterável e indestrutível realidade de ter acontecido, sem que nada lhe possa retirar essa dignidade. A vingança está assim condenada a fracassar porque não consegue fazer com que o que foi feito deixe de ter sido feito. Por isto, é como se o acto criminoso se renovasse continuamente, tornando-se inesgotável: a sede de vingança que ele gera não pode ser satisfeita nunca, visto que nenhum castigo imposto ao criminoso poderá apagar o que ele fez.
  A vingança falha ainda em virtude de outro factor: a impossibilidade de reproduzir o gesto inicial de afronta, de repetir a inauguração da violência pelo acto criminoso. É isto – a reprodução de um acto violento original – que, de todo o modo, parecem tentar conseguir os castigadores de “White Bear”. Por isso é tão importante apagar a memória de Victoria: por aí é retirado o sentido ao sofrimento que lhe é imposto, que fica sem razão aparente. Foi deste género o crime cometido contra a criança: a violência que o caracterizou não se explica apenas pela dureza da tortura em si, mas também pela ausência de qualquer motivo que a tornasse explicável ou até expectável. Nestes termos, se o ataque contra a criança pode ser devolvido à criminosa, isso só pode ser conseguido transformando esta numa inocente. O objectivo é aqui o de que a própria infractora sinta o ataque como a criança o sentiu, pelo que o importante é que ela seja inocente para si própria. E então é fundamental apagar-lhe a memória do seu crime, pois só aí ela poderá sentir a violência naquelas duas dimensões: não apenas a da dor em si, mas também (e talvez até sobretudo) a da ausência de qualquer contexto que permita explicar ou fazer esperar essa dor.
  Uma vez atingido este ponto, é obrigatório questionar a legitimidade para irrogar tal punição. Na medida em que são bem sucedidos, estes castigadores acabam a fazer exactamente o mesmo que Victoria. Também eles, de certo modo, atacam uma “inocente”. (Também) por isso, no fim do dia, se vêem obrigados a lembrar-lhe o que fez, procurando assim redimir-se a si próprios e ao seu sadismo. Só podem ter esperança de o conseguir dando à violência que infligem um sentido, transformando-a de tortura gratuita em castigo merecido. Obtêm deste modo a dita redenção? De certo modo, eles conseguem fazer com o seu gesto aquilo que não conseguem fazer com o de Victoria: embora também os ataques a esta não possam ser apagados – também eles não podem fazer com que o que fizeram deixe de ter sido feito –, chegam a um resultado alternativo: dão à sua violência uma história, um contexto que a explica e, supostamente, a torna expectável e até merecida; dão-lhe um sentido.
  Ainda que concordemos, por hipótese, com a ideia de que recordar ao agente o seu crime confere racionalidade ao procedimento dos castigadores e, por aí, o justifica, não basta isto para os redimir. Porque por esta via também se renova a inesgotabilidade do acto criminoso original. Com efeito, ao mesmo tempo que a explicação da conduta dos castigadores "legitima" esta e lhe retira o sentido de acto violento original (sem sentido, inesperado), devolve também precisamente este sentido ao crime de Victoria. Explicar o que fizeram recordando a Victoria o que ela fez é, no fim de contas, trazer de volta o crime desta e assim restituir-lhe a sua dignidade ontológica, a inamovibilidade que o torna inapagável, inerradicável. Deste modo, estão a condenar-se a si mesmos (como se isso não fosse já uma decorrência necessária da vingança) a terem de a castigar novamente. São eles mesmos, afinal, quem recupera o pecado original, não o deixando morrer. Se o crime de Victoria é inesgotável e nenhum castigo pode satisfazer a dívida de vingança gerada, isso deve-se (também) a que os próprios vingadores alimentam a sede de castigo através da punição. Por isso terão de continuar a apagar-lhe a memória depois de lhe lembrarem o seu crime, já que a dívida de vingança renasceu com esse recordar. É um círculo vicioso inescapável para os castigadores.

  A necessidade de recordar todos os dias a Victoria o seu crime revela uma ânsia profunda por parte dos seus algozes: a de manter a ligação ao crime original. Mas é precisamente por aqui que começamos a suspeitar que essa ligação, na verdade, já se perdeu há muito.
  No livro Alice Through the Looking Glass (Lewis Carroll), a Rainha Branca explica a Alice que ali (do outro lado do espelho) o processo judicial sofre uma inversão da sua ordem normal: primeiro cumpre-se a pena, depois é-se condenado, julgado e, por fim, comete-se o facto. A pena desliga-se aparentemente do crime, já que quando Alice indaga pela possibilidade de este não chegar a ser cometido, a Rainha não parece sequer considerar a hipótese de isso retirar sentido à punição, ficando apenas satisfeita por não haver crime: “'Suppose he never commits the crime?' said Alice./ 'That would be all the better, wouldn’t it?' the Queen said”.
  Da perspectiva de Victoria, é uma inversão deste género que parece ter lugar: ela começa por sofrer a pena e só depois o seu crime é introduzido. Mas também no seu caso o castigo se desliga do facto. Na verdade, a renovação constante do castigo implica a perda da proporcionalidade: Victoria é uma "incocente" que sofre repetidas vezes por ter feito uma inocente sofrer uma vez. A vingança funciona através deste desligamento. É como se o seu crime fosse colocado entre dois espelhos para ser reflectido (repetido) até ao infinito. E por aí a sua infracção revela-se como mero pretexto para um ecoar infindável de punições que se reclamam dela para existirem, mas que na verdade se alimentam a si mesmas.

  A vingança falha porque não pode apagar o que foi feito e porque, obcecada com o crime, não pode disfarçar o facto de que vai inevitavelmente desligar-se dele. Mas talvez seja este fracasso a apontar-nos uma outra via, porventura mais esperançosa. Porque ele pode levar-nos a aceitar que não podemos realmente apagar o mal cometido. E a pensar que em vez de nos perdermos obcecados com um gesto passado que só vive do alimento que nós mesmos lhe damos, poderemos talvez conseguir ultrapassá-lo trazendo esse gesto connosco e superando-o com os olhos num futuro depois dele. Este é o caminho que envolve sarar feridas em vez de mantê-las abertas, o propósito de construir coisas novas em lugar de destruir antigas. É o caminho do perdão.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O burro feliz

  No livro Esaú e Jacó, de Machado de Assis, o Conselheiro Aires vê a dada altura um homem bater no seu burro, que teima em não querer andar. Olhando o burro nos olhos, Aires descobre neles uma “expressão profunda de ironia e paciência” e imagina um monólogo (o “monólogo do burro”). No fim desse monólogo, o burro diria ao homem: “o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar”.

  A posição do burro lembra a do cão atrelado a uma carroça das fábulas estóicas. A atitude do cão poderia ser a de resistir à trela que o puxava, sem por isso conseguir evitar ser arrastado, ou seguir pelo caminho a que estava condenado, poupando-se ao estrangulamento.
  A preferência dos estóicos por esta última hipótese parece indiciar que a resistência do burro que intriga o Conselheiro Aires seria por eles condenada. Merecerá ela verdadeiramente esta condenação? Revelará a sua postura apenas teimosia sem sentido e a estupidez de não saber aceitar a adversidade?
  A teimosia do burro parece inútil, já que ele, mais tarde ou mais cedo, terá mesmo de seguir o caminho que o homem lhe impõe. A resignação do cão que se abandona ao percurso da carroça aparece então eivada da sabedoria consciente de quem sabe aceitar o seu destino. A fatalidade domina os trajectos de um e outro, mas o cão é maior que o seu destino, porque ao aceitá-lo com a consciência daquilo a que está reduzido é capaz de o desprezar: todo o destino pode ser superado pelo desprezo (“Il n'est pas de destin qui ne se surmonte par le mépris”: Camus, Le Mythe de Sisyphe). Sábio como Sócrates, ele não se rebela nem teima contra a inevitabilidade, encontrando um lugar de paz interior em não se deixar afectar por aquilo que não pode mudar. Ele é o melhor seguidor do conselho com que Sócrates encerra o diálogo com Críton: "sigamos este caminho, já que é aquele que a divindade nos indica".
  É esta nota, todavia, que nos dá uma primeira pista para percebermos que talvez não devamos subestimar com tanta ligeireza a atitude do burro. Porque o seu monólogo, afinal, é a maior prova de que ele tem precisamente aquela consciência que torna superior a posição do cão sábio. Com efeito, é ele mesmo que reconhece ao dono o domínio deste. E é precisamente graças a este passo que ele pode dizer, com razão, que esse domínio não lhe serve de muito. Se não estivesse consciente da sua subjugação, morreria subjugado. Mas está e resiste ainda assim. Porque o faz? Pelo mesmo motivo pelo qual Sísifo insiste em ir buscar a sua pedra ao fundo da montanha para onde ela rolou mais uma vez. Sísifo sabe que é inútil tentar levar a pedra ao topo, porque ela há-de voltar a cair. Mas insiste. E se temos de imaginar Sísifo feliz, como recomendou Camus, a sua felicidade talvez não possa ser encontrada enquanto imaginarmos que ele é simplesmente obrigado a empurrar uma pedra uma e outra vez para a ver depois cair de volta ao princípio; descobriremos essa felicidade atentando antes em que é o próprio Sísifo que, livre, como o burro, para teimar, insiste em empurrar de novo. Não perceberemos a sua alegria nem a sua liberdade se insistirmos em pensar que de nada serve levar o pedregulho ao topo se este vai cair uma vez mais; porque assim falhamos em ver que, se isto acontece, é porque não há, de facto, sentido nenhum para o gesto repetido de insistência a não ser o que mora e se esgota no próprio gesto. A tragédia de Sísifo é a de um retorno frustrado à base da montanha. A sua felicidade, porém, é a de uma subida bem sucedida. A única prova deste sucesso é que ele nunca poderia descer de volta se não tivesse chegado ao topo; isto basta, porque a subida é afinal o único objectivo de si mesma.
  Também Sísifo pode rir-se da divindade que, uma vez chegada a pedra ao cume, a empurra de volta, obrigando-o a ir buscá-la novamente. Porque também ele pode dizer: “o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar”. É esta vontade indomável, consciente de ser inútil, sem esperança de qualquer sucesso e por isso mesmo vitoriosa, que o burro exibe nos seus olhos irónicos e pacientes. E talvez possamos assim lembrar o Conselheiro Aires de que, ao notar a "expressão de ironia e paciência" naqueles olhos, é também preciso imaginar que aquele burro absurdamente teimoso é feliz.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

O rei fantasma

  No livro Das Parfum (Patrick Süskind), conta-se como Grenouille possuía a habilidade de, por um lado, memorizar tudo o que cheirava, e, por outro, reproduzir através das suas recordações todos os perfumes que trazia guardados na memória.

  Hume apresenta como generalizada a opinião de que há uma diferença marcada entre uma sensação e a recordação dessa sensação, sendo esta necessariamente inferior àquela: “Every one will readily allow, that there is a considerable difference between the perceptions of the mind, when a man feels the pain of excessive heat, or the pleasure of moderate warmth, and when he afterwards recalls to his memory this sensation, or anticipates it by his imagination. These faculties may mimic or copy the perceptions of the senses; but they never can entirely reach the force and vivacity of the original sentiment. (...) The most lively thought is still inferior to the dullest sensation.” (David Hume, An Enquiry concerning Human Understanding).
  O caso de Grenouille parece contrariar esta regra, pois a vivência das suas recordações é para ele tão intensa quanto a impressão original, i. e., nele a ideia não é inferior à sensação – o que significa que, no fim de contas, nele a ideia nunca deixa de ser sensação. É graças a esta particularidade que Grenouille pode retirar-se para dentro de si próprio durante sete anos, escondendo-se numa pequena gruta e vivendo apenas da reprodução mental das sensações olfactivas acumuladas ao longo da vida. Ele é afinal como o sábio estóico, pois basta-se a si mesmo: dispensa o mundo, as suas imagens e os seus perfumes. Não precisa de ir procurá-los lá fora, à realidade das coisas; encontra-as na verdade dos seus pensamentos. Por isso ele poderia dizer, como Bias diante dos persas, que, não tendo quaisquer posses ou amigos, tem no entanto tudo o que precisa, e tudo o que tem e de que precisa traz consigo.

  Durante sete anos, Grenouille, criatura sem bens de qualquer ordem, alimentando-se da água que lambe nas pedras e de ervas, leva a vida de um monarca feliz. O seu interior é o lugar onde ele vive verdadeiramente; aí ele é senhor de um reino e habita um castelo. Porque as suas ideias são sensações, tudo o que ele imagina é real nesse mundo e o exterior não tem para si qualquer importância. Grenouille não procura nada fora de si porque a paz que encontra no interior permite-lhe reinar, ter prazer e ser feliz. E por isso a sua história lembra-nos que os mundos internos só no exterior se tornam imaginários – e ele sabe que os castelos que fabricamos no nosso interior não precisam de ser trazidos cá para fora para os podermos habitar. Porque Grenouille percorre o caminho inverso: em vez de trazer o seu reino para o exterior, onde tudo se desfaria com o peso da realidade, é ele mesmo que migra para dentro de si, com a confiança de saber que as ilusões íntimas são apenas verdades pertencentes a outros mundos.

  Dá-se então uma catástrofe que obriga Grenouille a deixar o seu paraíso. Através de um sonho, descobre que não tem odor, não consegue cheirar-se a si mesmo. Este episódio é para ele tão terrível que tem de abandonar o seu retiro, pois sabe que não aguentará um outro sonho como aquele ("Er würde sein Leben ändern, und sei es nur deshalb, weil er einen so furchtbaren Traum kein zweites Mal träumen wollte. Er würde das zweite Mal nicht überstehen").
  A experiência traumática pela qual desaparecem o reino, o castelo e seus tesouros, na verdade, deixou tudo isso intacto, atingindo apenas um elemento do seu mundo: ele próprio. Porque Grenouille percebe (ou pressente) que, não tendo odor, não existe. O seu terror é o de descobrir-se um fantasma no reino de odores que criou e do qual se julgava Deus: afinal, mais do que os seus pastos, o seu castelo, os seus criados ou as suas garrafas armazenadas, é ele mesmo o elemento imaginário do seu universo.
  Pode o seu reino continuar a ser verdadeiro quando o rei que o governa não se encontra a si mesmo? Estando o universo dependente do seu criador, ele provavelmente desmoronar-se-ia assim que o demiurgo desaparecesse. O buraco que Grenouille descobre em si próprio engoliria então toda a vida daquele mundo interno. Mas Grenouille não criou verdadeiramente o reino que habitava. Porque todos os odores que ele convocava nas suas sessões foram encontrados fora de si, trazidos da realidade que ele quis desprezar. Grenouille é amo, rei, senhor no seu mundo. Mas esse mundo não é seu, pelo menos não na medida em que ele não o inventou do nada. Será Grenouille verdadeiramente um sábio estóico? Durante sete anos, tudo o que ele tinha e de que precisava trazia consigo, com desprezo pelo que o mundo lhe podia oferecer. Mas isto só pôde ser assim depois de ele ter trazido para dentro de si tudo o que conseguiu retirar ao mundo lá fora. Se Grenouille, em suma, não precisa do mundo exterior, por se bastar com o que traz dentro de si, isto só é possível na medida em que o seu mundo interno é afinal o mundo lá fora trazido para o seu interior.
  O mundo exterior não depende de Grenouille para ser verdadeiro. O interior sim. Porque afinal o seu reino só existiu enquanto ele o habitou. Um rei que dá vida ao seu reino: eis a grande dádiva que ele pode conceder ao seu universo pessoal. Ele não criou os odores que reproduzia incessantemente na sua memória. Mas trouxe-os para dentro de si e deu-lhes a vida a que eles tinham direito, a única que um perfume pode chegar a ter: a vida através da respiração de quem os recebe. Escapando a um mundo que não só não dependia de si para existir como o recusava e negava, Grenouille refugiou-se num outro mundo que, esse sim, só existia porque Grenouille o via e o respirava. Este outro mundo vai desaparecer quando ele partir, porque existia apenas para ele. Mas ele tem de partir, por perceber que não pôde afinal cumprir o seu desiderato: conseguiu um mundo que só existia porque ele lhe dava vida; mas não um mundo que lhe desse vida a ele.

  Mais tarde, já após ser condenado à morte e espancado pelo guardas, perguntam a Grenouille se ele precisa de algo, ao que ele responde não precisar de nada, explicando o narrador que ele já levava consigo tudo o que precisava.

  Podemos perceber agora melhor a ironia desta passagem. Mais uma vez ele parece o sábio estóico e este momento, aliás, lembra o de Bias à saída da sua cidade-natal. Só que Grenouille leva desta vez consigo um bem material: o frasco do seu precioso perfume.
  Eis algo que Grenouille tem de segurar na mão para não perder. Ora, a sabedoria estóica ensina-nos, no fundo, que tudo aquilo que é meu e de que verdadeiramente preciso é sempre algo que não tenho de agarrar, porque levo sempre comigo. As mãos só seguram aquilo que se pode perder e isso, por definição, é algo que não chega a pertencer-nos nunca. Eis então a tragédia de Grenouille: o perfume que leva na mão, o seu perfume, é precisamente o odor que ele não encontra em si e precisa de apanhar lá fora, no mundo que o negou e que ele pensou poder rejeitar. Ao procurar um sopro exterior, ele já se sabe condenado à partida, porque o espírito é sempre algo que tem de nascer a partir de dentro, de modo a poder sustentar o corpo.

  Conhecedor da verdade dos mundos internos e ciente de que os perfumes, como as imagens, podem sempre nascer de novo em recordações, Grenouille falhou apenas em conseguir encontrar no mundo o único elemento que faltava no seu reino maravilhoso: ele mesmo.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O outro que me pertence

  No conto "Idades", de Luís Fernando Veríssimo (As mentiras que as mulheres contam), uma mulher de 34 anos diz às pessoas que tem 52, com o objectivo de as ouvir comentar, espantadas, que não aparenta a idade que diz ter.

  O que quer esta mulher? Como explica Sartre (L'être et le néant), o olhar do outro faz nascer um ser em nós, um modo de ser que, apesar de referido a nós, não nos pertence verdadeiramente, na medida em que não o podemos resgatar: o nosso ser-para-outrem. Este modo de ser é constituído pelo olhar do outro, pelo que escapa ao nosso controlo.
  Na medida em que o modo como aparecemos ao outro pode ser procurado no espelho, e na medida em que é no espelho que posso encontrar o meu outro, este meu outro pode ser identificado com o modo como apareço aos outros.
  O que a mulher quer é trocar a sua imagem no espelho. Trocar de outra. Porque a idade que ela diz ter vai necessariamente mudar a apreciação que os outros fazem da sua aparência e, portanto, o modo como a vêem. Simultaneamente, também o modo como aparece aos outros.
  A mulher oferece então uma outra outra aos outros. Impõe-lhes a sua outra, rejeitando aquela que eles lhe queriam impor. Deste modo, perante a impossibilidade de se apoderar da outra que o olhar dos outros faz nascer em si, ela opta pela alternativa de a substituir por uma a que ela mesma dá vida.
  É então que se cria o jogo duplo que é, no fim de contas, o seu verdadeiro objectivo: os outros proclamam rejeitar essa outra que ela lhes propõe – o que, naturalmente, é o que ela pretende ouvir. Mas essa rejeição só a delicia na medida em que eles, na verdade, acreditam que ela tem realmente 52 anos; ou seja, a rejeição pelos outros da outra que ela lhes oferece só lhe interessa se eles na verdade a aceitarem.
  Consegue ela então inverter o processo que se estabelece normalmente entre si e o seu público: porque os olhos deste constituíam nela um modo de ser que escapava ao seu controlo, que ela não podia recuperar, mas com o qual tinha de viver, a cuja imputação não podia escapar. Com a sua mentira sobre a idade, parece ser ela a impor aos outros o seu modo de aparecer diante dos seus olhos. Rapidamente percebemos, no entanto, que não é sequer aí que verdadeiramente mora o seu triunfo. Porque ela não ganha, obviamente, com a aceitação pelos outros da idade que ela diz ter, e sim com com a ideia deles de que ela terá outra idade, menos avançada. Com efeito, a incredulidade relativamente aos 52 anos e, sobretudo, a suspeita de que será mais nova, significam, no fundo, o seguinte: ao olharem para ela e ao descobrirem nela algo que não corresponde ao que pensam estar a ver, a sua reacção é, como tem de ser, a de que não conseguem captar o modo como ela lhes aparece.
  Uma vez que a imagem que têm diante dos olhos não coincide com o que pensam ver, essa imagem permanece-lhes estranha. Quando lhe perguntam pelo segredo para a sua aparência tão jovem, isto é apenas um outro modo de perguntar pela chave de acesso a esse espaço secreto onde ela guarda a sua outra, essa outra que ela exibe sem que eles consigam apoderar-se dela.
  A mulher triunfa assim nesta troca de espelhos que faz ao substituir a outra que o olhar dos outros faz nascer em si pela outra que ela fabrica e lhes impõe, parecendo guardar a primeira para si. Mas é claro que essa primeira outra só existe desde que nasce nos olhos dos outros e enquanto aí se mantiver. O triunfo da mulher assenta numa verdadeira ilusão: como os melhores ilusionistas, ela alimenta o mistério exibindo aquilo que esconde. Os outros querem resgatar o estranho ser-para-outrem daquela mulher sem tomarem consciência de que ele nunca deixou de lhes pertencer. Porque, no fim de contas, talvez seja esse o único modo de tornarmos nosso o que não pode deixar de ser alheio: fazermos acreditar o seu verdadeiro dono que a coisa só a nós pertence.

domingo, 23 de outubro de 2016

A rebelião dos nomes


  No livro Matteo perdeu o emprego, de Gonçalo M. Tavares, Baumann é um homem que cultiva um estranho hábito: recolhe lixo – latas, cascas de fruta, etc. – que limpa cuidadosamente e no qual trabalha até deixar as coisas com a aparência que tinham antes de terem sido utilizadas. A semelhança limita-se à aparência, pois as latas agora não têm nada dentro, as cascas têm apenas papel para ganharem volume, etc. Baumann recoloca então esses objectos no lugar onde primeiro apareceram prontos para serem consumidos: a casca da laranja entre as laranjas do supermercado, a lata vazia entre os refrigerantes.

  Estes não são, naturalmente, os objectos que as pessoas esperam encontrar quando procuram laranjas ou sumos. Com efeito, trata-se apenas da aparência desses objectos.
  Há um consumidor, porém, que provavelmente não se sentirá defraudado com tais produtos. Num outro livro do mesmo autor (O Senhor Juarroz), o senhor Juarroz visita com frequência os supermercados, mas apenas para realizar "compras visuais": não quer levar produto nenhum consigo, quer apenas vê-los. O senhor Juarroz vai ao supermercado como quem vai ao cinema.

  O senhor Juarroz é um consumidor de imagens. Ele quer a representação das coisas e não as coisas em si. E esta postura é a mesma perante uma outra representação das coisas: o nome que elas têm. Não nos devemos deixar enganar pelo que nos é apresentado como uma rebeldia do senhor Juarroz contra os nomes, quando se diz que "[p]ara mostrar que não se submetia à ditadura das palavras o senhor Juarroz todos os dias dava um nome diferente aos objectos". Com efeito, em rigor, não é contra as palavras, mas sim contra os próprios objectos, que ele se rebela. Pois a pretensão de libertar o objecto do seu nome, vinda de um amante de imagens, tem de ser vista como o desejo de libertar o nome do seu objecto. Por isso, poderíamos ler: para mostrar que não se submetida à ditadura das coisas, o senhor Juarroz todos os dias lhes dava um nome diferente.
  Claro que há uma razão para a formulação original referir a rebeldia à "ditadura das palavras". O que ele quer atingir não são propriamente os nomes, e sim as correntes que os ligam às coisas. Porque o senhor Juarroz ama as imagens pelas imagens, não pelas coisas que elas trazem, e, do mesmo modo, ama os nomes pelos nomes, não pelos objectos a eles acorrentados. Rebelde contra a tirania, a anarquia do senhor Juarroz vai muito além da democracia de um Humpty Dumpty (Lewis Carroll, Through the looking glass and what Alice found there), para quem as palavras designam o que o próprio falante desejar ("'When I use a word, Humpty Dumpty said in rather a scornful tone, 'it means just what I choose it to mean – neither more nor less.'"). Para o senhor Juarroz, as palavras designam coisas, mas não valem por isso, e por esta razão não têm de estar presas a um objecto concreto. A fungibilidade dos objectos designados por um nome mostra a liberdade do nome perante os objectos, o desprendimento com que ele pode passear sem estar atrelado a coisa nenhuma. Quando o senhor Juarroz acorda baralhado com os nomes novos que deu às coisas e não se lembra do nome da coisa que segura nesse momento, deixa-a cair e ela parte-se. Ora, se isto acontece, e como podemos comprovar pela ordem dos acontecimentos, tal não se deve a que o nome esvanece sem a coisa, mas sim a que esta deixa de existir sem o nome. Por isso, podemos inverter o dito de Pedro Eiras (em A Moral do Vento – Ensaio sobre o corpo em Gonçalo M. Tavares) e notar a sensibilidade extrema das coisas: quando o nome falta, a coisa parte-se.
  A postura do senhor Juarroz é assim completamente inversa à de outros rebeldes: os sábios que Gulliver encontrou na Grande Academia de Lagado (Jonathan Swift, Gulliver's Travels). Estes, com efeito, queriam abolir as palavras e, supondo que estas existem apenas para designar coisas, resolveram passar a carregar sacos cheios de coisas. As suas conversas sem palavras passavam então por mostrar o objecto que queriam referir quando pretendiam dizer algo.
  Como é fácil de ver, os sábios de Lagado revoltam-se verdadeiramente contra os nomes e submetem-se à ditadura dos objectos que eles designam. Não o senhor Juarroz, que prefere o nome à coisa. Por isso, aparentemente, o senhor Juarroz tem bem estudada a lição de Wittgenstein. Lembremos o § 293 das Investigações Filosóficas: supondo que cada pessoa tem uma caixa com um escaravelho; que cada uma só consegue espreitar a sua caixa, mas não a dos outros, e que, não obstante, todas usam a expressão "escaravelho" sem quaisquer disputas quanto ao seu significado, então não interessa verdadeiramente o que está dentro da caixa – que pode ser sempre o mesmo para todas as pessoas, pode ser sempre diferente, pode ir variando e, no limite, pode até a caixa estar vazia. A gramática da expressão prescinde do objecto, pois "a coisa na caixa não pertence de todo ao jogo de linguagem" ("Das Ding in der Schachtel gehört überhaupt nicht zum Sprachspiel"). O senhor Juarroz concorda com Wittgenstein, pois para nenhum deles é importante se há realmente um escaravelho na caixa ou não, e para ambos o nome pode realmente prescindir do objecto. No caso do senhor Juarroz, porém, isso deve-se apenas a uma razão estética: o seu amor pelas imagens.
  Porque para o senhor Juarroz não é importante se há um escaravelho dentro da caixa, também não lhe faz diferença, quando visita o supermercado, se as latas e cascas trazem realmente bebida e fruta dentro de si. E por isso os produtos que Baumann planta nas prateleiras parecem convir-lhe na perfeição.
  É significativo que Baumann utilize apenas restos de lixo, e não, por exemplo, latas novas de refrigerante que ele mesmo esvaziasse ou fruta fresca que ele próprio descascasse. Com efeito, é no lixo que Baumann pode verdadeiramente encontrar as imagens desprezadas das coisas. Porque as pessoas compararam as coisas pelas coisas, não pelas imagens. Mesmo que as imagens as tenham atraído em primeiro lugar, foi pelo objecto em si que elas as levaram, pelo que, assim que o objecto desapareceu, a imagem deixou de ter importância. Tudo o oposto da atitude do senhor Juarroz, que, amante fiel das imagens, seria incapaz de as trair com as coisas.
  Baumann recupera então as imagens desprezadas, depois de terem sido despidas dos seus objectos pelos amantes das coisas. É precisamente esta imagem, que assim volta sem coisa, que ele quer devolver. É este simbolismo que se perderia se ele se limitasse a adquirir latas novas que ele mesmo esvaziaria e devolveria vazias, sem nunca terem sofrido deterioração ou abandono. E por isso o seu produto é precisamente aquele que mais se adequa ao que o senhor Juarroz procura: imagens já despidas de coisas, já libertas dos objectos que outrora carregaram. Violadas pelos compradores comuns, que delas queriam apenas o corpo, as imagens aparecem agora mais puras para serem amadas pelo senhor Juarroz.
  O encontro impossível entre o senhor Juarroz e Baumann é assim apenas mais um na série de impossíveis encontros que todos gostaríamos de ter com a pessoa que sabe aquilo de que precisamos, mas não sabe como nos encontrar.

domingo, 16 de outubro de 2016

A máscara falhada

   No livro Das Parfum (Patrick Süskind), quando Grenouille coloca umas gotas do seu perfume, a multidão que antes o queria trucidar passa a adorá-lo, a ponto mesmo de ser tido por todos como inocente dos crimes que obviamente cometera.
   Este é o momento do grande triunfo de Grenouille, aquele em que consegue emanar um odor que atrai todos os outros. Mas não é como tal que ele o vive. De facto, este triunfo assusta-o precisamente porque ele não o pode usufruir ("Er wurde ihm fürchterlich, denn er konnte keine Sekunde davon genießen").
   O triunfo é obra de Grenouille, mas não é seu, não lhe pertence, pela razão simples de que não é verdadeiramente a ele que se dirigem aquelas pessoas e sim à máscara que ele criou. A máscara não mostra o seu interior, desconhecido até para si mesmo. Esse, de resto, é o verdadeiro motivo do seu terror. Porque se Grenouille trabalhou para criar tal perfume e desencadear nos outros uma reacção, fê-lo para, uma vez na vida, conseguir exteriorizar o seu íntimo, como as restantes pessoas ("Er wollte sich ein Mal im Leben entäußern. Er wollte ein Mal im Leben sein wie andere Menschen auch und sich seines Innern entäußern"). Mas falha no seu intento. As pessoas apaixonam-se por uma máscara que ele veste sem poder chamá-la sua. Porque todas as máscaras são usadas com o propósito aberto de nos escondermos, na esperança inconfessada de nos mostrarmos a outra luz. Não é isso que acontece com Grenouille, que esperava descobrir o que esconderia e mostraria a sua máscara assim que a colocasse, e acaba por compreender que para si todas as máscaras são impossíveis, pois nelas nada se mostra, e atrás delas, onde ele se queria encontrar, nada se esconde.
   O caso do Joker é outro em que atrás da máscara habita apenas a escuridão, mas aí o pesadelo mora do lado do espectador: o Joker identifica-se com a sua máscara, mora nela e não atrás dela, pelo que o terror surge apenas para quem assiste ao seu sorriso. Grenouille, ao invés, não consegue identificar-se com as máscaras de odor que cria. Veste-as na esperança de conseguir descobrir-se a si mesmo nelas e atrás delas, mas falha porque nada encontra ("und er trug unter dieser Maske kein Gesicht, sondern nichts als seine totale Geruchlosigkeit").
   Não admira assim que Grenouille precisasse de um público. Com efeito, a máscara permite-me conhecer-me a mim mesmo – pelo que mostra de mim escondendo-me –, mas ela só funciona perante o olhar dos outros. Esse, de resto, é o segredo para derrotar o Joker: fechar os olhos, retirar o público ao seu sorriso. Grenouille precisava também do seu público para dar vida à sua máscara e encontrar-se finalmente. Foi bem sucedido quanto ao primeiro intento, mas falhou no segundo.
   Os sentimentos das pessoas por Grenouille são agora de adoração, veneração até. Grenouille dirige-lhes o seu ódio, mas este não atinge ninguém. A sua máscara actua por ele, em vez dele. A generalidade das pessoas actua através das suas máscaras, mas o caso de Grenouille não chega sequer a ser o inverso disso, porque a sua máscara não parece precisar dele para actuar. Grenouille, no seu íntimo, é tão inexistente para a multidão como para si mesmo.
   É esta então a sua grande derrota. Porque ele quis procurar-se nos outros depois de não conseguir encontrar-se dentro de si mesmo. Colocou uma máscara para que o vissem e assim poder encontrar-se no reflexo dos olhares alheios. No fundo, quis descobrir-se pelo atalho dos olhos dos outros, quis que o seu reflexo lhe mostrasse quem era. Mas os outros vêem uma máscara que, afinal, não é a sua, e por isso nada pode dizer-lhe sobre si próprio.
   A máscara que nos pertence é aquela que, erguendo uma barreira aos olhares estranhos, abre a porta para que um estrangeiro visite o nosso íntimo. Por isso, ao ver Richis, o pai de uma das suas vítimas, Grenouille alegra-se, pensando que aquele não se deixará enganar pela sua máscara e que o vai matar; que assim será Richis o primeiro estrangeiro a visitar o seu interior, o primeiro elemento estranho que lhe permitirá familiarizar-se consigo ("endlich, endlich etwas in seinem Herzen, etwas anderes als er selbst!"). O plano de Grenouille revela aqui uma sabedoria muito peculiar: ele tem consciência de que é preciso deixarmos entrar em nós um elemento estranho para nos revelarmos a nós mesmos.
   O seu plano falha, porque também Richis conhece apenas a máscara, não vê nem ouve ninguém atrás dela. Também ele o adora e não chega sequer a perceber o seu ódio. Não chega nunca a ver Grenouille, deixando-o na angústia de não saber se de facto haveria algo para ver.
   Por ter falhado em mostrar-se aos outros, Grenouille não chegou a conseguir ver-se a si mesmo. Ao contrário de quem se engana escondendo-se de si e dos outros atrás de máscaras, Grenouille vestiu uma máscara para se mostrar aos outros e a si próprio, mas não conseguiu – não porque a sua máscara tenha mostrado o que devia esconder ou escondido o que devia mostrar, mas sim porque, aparentemente, nada havia a mostrar ou a esconder. Uma máscara falhada, eis aquilo a que se pode resumir a história de Grenouille.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O que é ser adulto?


  No filme Nerve (Henry Joost e Ariel Schulman), "Nerve" é um jogo online no qual as pessoas se inscrevem como jogadores ou pagam para ser espectadores. Os jogadores ganham dinheiro por cumprir os desafios colocados pelos espectadores, e as recompensas vão crescendo na medida da perigosidade do desafio. As acções dos jogadores são filmadas e vistas por qualquer interessado.

  Este é um exemplo de jogos do tipo “dare”, em que as pessoas (tipicamente crianças, adolescentes ou jovens) se desafiam mutuamente a fazer algo arriscado e idiota, ou até criminoso, sob pena de, não o fazendo, revelarem que têm medo, que são incapazes ou desistentes. Como deve alguém responder a um desafio deste género?
  É fácil para quem está de fora – tipicamente, o adulto (ou a rapariga, quando são rapazes a desafiarem-se) – criticar os jogadores por entrarem num jogo destes, e em especial o desafiado, por responder ao desafio e fazer mesmo a parvoíce que foi desafiado a fazer. E é fácil porque a pessoa de fora não é quem está a ser desafiado; não é ela, portanto, quem vai passar a ser tida por medrosa se não responder ao desafio. A posição do adulto, do julgador, está viciada à partida, porque a sua sentença só faz sentido a partir da sua posição de outsider, de não atingido. Deste modo, essa sentença nunca apelará ao desafiado, que, atingido pelo desafio, só o encara a partir de dentro do jogo.
  Aparentemente, há uma maneira de corrigir este problema: bastaria ao adulto perguntar-se a si mesmo: "Se o desafio fosse dirigido a mim, será que eu teria coragem de o cumprir?" A pergunta tem de ser feita deste modo porque só então o julgador se colocará verdadeiramente na posição do julgado. A única maneira de fazer isso é, com efeito, a de dirigir o desafio contra si próprio.
  Poderia pensar-se que este deslocamento está falseado, que esta posição em que o julgador se coloca é diversa daquela de quem ele julga, porque aqui é o próprio julgador que se desafia a si mesmo, enquanto o julgado, nos jogos "dare", é sempre desafiado por outras pessoas. Mas não é assim. Porque o desafio, mesmo quando é colocado por um terceiro, só tem força na medida em que o desafiado o interiorize – ou seja, na medida em que, de certa maneira, ele se desafie a si mesmo (só na medida em que ele faz seu o desafio que o outro lhe põe). Quando o desafiado não interioriza a provocação, ele não chega verdadeiramente a ser atingido por ela. Ora, isto vale também no sentido inverso: o desafio que alguém se impõe a si próprio ("Serei eu capaz de... ou sou um cobarde?") só faz sentido na medida em que, ao responder-lhe, ele está a querer responder aos olhos de um outro, mesmo que seja um outro interiorizado, um seu outro. Ou seja: por um lado, o desafio que me é colocado por outrem só me atinge se eu mesmo o dirijo a mim próprio. É assim que devemos ler a atitude de Vee (a protagonista de Nerve) ao inscrever-se como jogadora: quando aceita receber os desafios dos espectadores no seu telemóvel, ela traz para o seu espaço o outro do qual provêm os desafios. Ela interioriza, portanto, esse outro – condição essencial para que os desafios a possam atingir. Por outro lado, o desafio que eu coloco a mim próprio só chega a ser um desafio para mim porque provém do outro que em mim habita, do outro que eu mesmo fabrico para dirigir os desafios a mim mesmo. E por isto, em suma, podemos afirmar com segurança que a posição do adulto julgador – quando se coloca a si mesmo a pergunta – é de facto fundamentalmente semelhante à do desafiado que ele quer julgar.
  Qual é então a resposta que o adulto deve dar ao desafio que dirige agora a si mesmo?
  Se ele fizer a parvoíce em causa, estará a fazer exactamente aquilo que antes condenou, pelo que não parece ser essa a solução.
  Poderá ele então cumprir o desafio, mas às escondidas, de modo a poder dizer “não cedi às provocações de ninguém, fi-lo apenas para demonstrar que poderia fazê-lo se quisesse, mas não o fiz para ninguém; só teria cedido às provocações se o tivesse feito diante de outrem”? Esta resposta não é também solução, porque ele está ainda aqui a "demonstrar"; está ainda a responder ao desafio e a responder perante os olhos de outrem – mesmo que este outrem seja afinal o seu outro, o outro que ele interiorizou. Isto não muda fundamentalmente nada.
  Dir-se-á que resta a solução de não cumprir o desafio, de não responder. Será que isto resolve o problema? Para o sabermos, temos de lembrar que se o adulto interioriza verdadeiramente a pergunta, se realmente se põe na posição do desafiado, então "não responder ao desafio" não é uma verdadeira solução, visto que isto ainda é uma resposta ao desafio. Porque o desafio tem duas respostas possíveis: a primeira é a daquele que o cumpre (ou tenta cumprir), é a resposta do "corajoso", aquela que, na lógica do jogo, obtém a vitória; a segunda é a daquele que não tenta sequer cumprir o desafio, é a resposta do "medroso", aquela que, na lógica do jogo, traz a condenação (porque o desafiado "falhou"). Dado que, aos olhos de quem joga, estas são as únicas respostas possíveis, não cumprir o desafio é sempre falhar. E esta é ainda uma resposta – é precisamente a resposta que ninguém quer dar, por ninguém querer aparecer como cobarde aos olhos dos outros que jogam. Por isto, também esta via não traz a solução que desejamos.
  A análise desta última resposta permite perceber em que falham as censuras dos adultos que repreendem quem quer cumprir os desafios: a solução que dão ao conflito é, para os jogadores, uma resposta de falhanço e de medo – ou, pelo menos, é assim que é inevitavelmente vista pelo desafiado. Por isso, este nunca poderia sentir o seu apelo. A solução tem de ser outra.
  Não restando alternativas, temos de aventar a hipótese de que a solução que procuramos pode não estar tanto na resposta que damos, e sim no modo como lidamos com a pergunta. E tem de passar por desautorizar, desqualificar a própria pergunta, tirar-lhe o seu sentido. Como fazer isso?
  O adulto tem inevitavelmente de rejeitar a pergunta. E este é talvez um dos significados mais profundos do que verdadeiramente é ser adulto: escolher as perguntas que interiorizamos, que fazemos nossas. Porque afinal as perguntas que os outros nos colocam só se tornam as nossas perguntas na medida em que nós próprios as ponhamos na boca do nosso outro particular.
  Como referido há pouco, o desafio que os outros nos põem só se torna um verdadeiro desafio para nós na medida em que o interiorizamos. E o desafio que nos colocamos a nós mesmos também só é um verdadeiro desafio para nós na medida em que é proferido pelo nosso outro. Trata-se de dois diferentes pontos de partida para chegar à mesma conclusão. É isto que significa então ser adulto: saber que não é aos outros que o nosso outro pertence, mas a nós. Fazer com que as palavras do nosso outro não sejam as dos outros e sim as nossas. Assegurar, enfim, que o nosso outro é verdadeiramente nosso – não apenas no sentido em que somos o seu destinatário e actuamos para ele, mas também no de que atrás dele não se esconde afinal ninguém a não ser nós mesmos.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Monstros de rostos humanos

  No conto "The Monster", de Stephen Crane, um homem preto, Henry Johnson, em geral bem tratado pela família que o emprega e a comunidade onde vive ("bem tratado", leia-se, no contexto de uma sociedade racista e preconceituosa), sofre um dia queimaduras muito graves ao salvar o filho do seu patrão de morrer num incêndio. O pai da criança, médico e agradecido, salva depois Johnson de perecer devido às queimaduras, mas este fica desfigurado e mentalmente perturbado. A partir de então, as pessoas, que tanto o elogiaram quando souberam do seu acto heróico e julgavam que tinha morrido, passam a tratá-lo com desconfiança, medo e repulsa. Afastam-se dele, bem como do médico e da sua família, que o acolheram. 

  Que aversão é esta que as pessoas sentem por Johnson? Louvaram-no quando leram sobre a sua coragem e o seu sacrifício, mas quando ele se apresenta perante eles não o suportam, querem-no longe – chegam mesmo a atirar-lhe pedras. Um herói só o é verdadeiramente a nossos olhos quando não o podemos ver. Aparecido diante de nós, o herói está condenado a ser um maldito.
  Há elementos concretos que parecem gerar a desconfiança das pessoas em relação a Henry. Não apenas a sua perturbação mental dificulta o contacto com ele como, sobretudo, a sua face desapareceu com as queimaduras: as pessoas reagem com imediato horror perante aquele homem sem rosto.
  Henry não pode ser aceite porque deixou de ser "normal", deixou de ser como os outros. Resta saber o que há na sua anormalidade que tanto incomoda os restantes.

  Analisando os sentimentos de nojo e repulsa, e seguindo autores como Becker, Rozin, Haidt ou McCauley, Martha Nussbaum (Hiding from Humanity) desenvolve a teoria de que tendemos a dirigir tais sentimentos a tudo aquilo que nos lembra a nossa animalidade e, com ela, a nossa mortalidade. Repugna-nos aquilo que nos recorda que não somos as criaturas invulneráveis que desejaríamos ser, que somos humanos, mas também animais – e, por isso, frágeis, carentes e mortais. Assim, elementos expelidos como fezes ou saliva causam-nos repugnância por nos lembrarem a decadência e podridão a que os nossos corpos estão também votados. Animais como leões ou elefantes impressionam-nos com imagens de força e virtuosidade, mas a muitos insectos associamos viscosidade ou fragilidade, e por isso são estes que normalmente nos repugnam.
  Estes sentimentos de aversão acabam muitas vezes por se desenvolver de tal modo que são dirigidos a grupos de pessoas. A concentração da repulsa em tais grupos resulta então no seu rebaixamento, bem como, muitas vezes, na sua segregação e, no limite, extermínio (assim aconteceu com os judeus, comparados na Alemanha Nazi a um verme parasita instalado no corpo da sociedade ariana; mas tende também a ser feito com as mulheres, pessoas de outras etnias, etc.). O rebaixamento destes grupos de pessoas serve frequentemente uma função relacionada com a explicação sobre os sentimentos básicos de repulsa resumida há pouco. Denegrindo estas pessoas, o grupo dominante eleva-se, como se o grupo segregado cumprisse o papel de marcar uma separação entre uma forma mais baixa de humanidade, próxima da animalidade (ou confundindo-se mesmo com esta), e a forma mais elevada, ou mais verdadeira, mais perfeita e mais pura (a do grupo dominante). A diferença marcada entre segregador e segregado serve então o propósito de construir e manter a ilusão de que aquele, por ser diferente deste, mais humano e menos animal, mais indestrutível e menos frágil, não está sujeito à mesma lei da mortalidade.

  No caso de "The Monster", essa repulsa está concentrada na figura de Johnson, que, depois do incêndio, parece tornar-se algo menos que humano. A aversão por ele lembra a que as pessoas muitas vezes sentem por indivíduos deficientes ou visivelmente incapacitados, o desconforto que as assalta na sua companhia. Explica-se por aquela repulsa sentida por alguém que nos lembra a nossa própria fragilidade. Assim, o afastamento que as pessoas querem ter em relação a Henry parece cumprir o papel de marcar a elevação dos "normais", de mostrar, por oposição, a pureza da humanidade destes face à animalidade daquele. O mesmo vale em relação ao médico e a sua família: o afastamento também se dirige contra eles precisamente pela sua proximidade à "criatura" – sendo este um efeito claro da lógica do medo de contágio que, também segundo Rozin e outros, opera frequentemente com os sentimentos de repulsa e nojo.
  A verdade, todavia, é que, pelo menos a julgar pelas suas acções, Johnson nunca justifica o epíteto de "monstro". Não apenas foi herói aquando do incêndio, como depois, mesmo que desajustado ou inconveniente, nunca se mostra verdadeiramente agressivo ou sequer perigoso. Por isso, também aqui, se a monstruosidade é construída como uma parede contra a qual a humanidade dos "normais" quer sustentar-se, é afinal por esse mesmo processo que esses "normais", negando a verdadeira humanidade daqueles que afastam, revelam a monstruosidade que trazem dentro de si. Monstros por dentro e humanos por fora, os "normais" oprimem os monstros por fora, mas humanos por dentro, talvez porque, afinal, estes lhes lembrem que um rosto é só uma máscara e que é só a uma máscara que a "normalidade" se resume.
  O heroísmo talvez não seja para os humanos. Uma pessoa não pode sobreviver a ser herói, sob pena de estar condenado. Talvez se possa retirar estas tristes lições de "The Monster", que nos mostra que a humanidade pode adorar heróis, mas não pode aceitar que eles vivam entre si: porque um verdadeiro herói é, a um tempo, mais do que humano e, por isso, um ser monstruoso para os humanos, e, a outro tempo, é demasiado humano para ser aceite por humanos que são apenas monstros. E esta sentença traça o destino trágico de Henry, um humano com rosto de monstro acossado por monstros com rostos humanos.

domingo, 4 de setembro de 2016

(Pequenas solidões) A poesia silenciosa

  No livro Das Parfum, de Patrick Süskind, Grenouille, o personagem central, comete vários assassínios, mas há algo de estranha e inegavelmente belo no primeiro de todos.
 Neste homicídio inaugural transpira uma espécie de poesia silenciosa: podemos captá-la apenas através das palavras que o descrevem ou vendo as imagens dos acontecimentos. Nunca poderíamos ouvi-la, porque ela não mora nas palavras, nem sequer nas imagens em si, mas naquilo que acontece, no que está exibido.
  Como em vários outros momentos do livro, a cena é marcada por uma espiritualidade evidente. O que Grenouille quer da jovem que encontra sentada no beco é o seu perfume, não o seu sexo; não quer o seu corpo, mas o seu espírito; não quer comê-la, quer respirá-la. O que não serve para duvidar de que este é realmente o seu modo de ter sexo. De facto, podemos dizer que ele possui a jovem, e talvez a possua mais verdadeiramente do que qualquer outro homem possuiu alguma vez uma mulher, visto que Grenouille suga-lhe a essência, apodera-se do seu perfume, do seu espírito, da sua verdade, e passa a trazê-los dentro de si. Possui-a porque a toma para si, fá-la sua.
  A própria cena tem, de todo o modo, a sua poesia: a jovem está de costas distraída em inocência, enquanto ele se aproxima feito pura atracção, somente desejo de possuir. Ele é apreciador único do que de único tem aquela jovem para oferecer, pois é perscrutador do seu espírito. O corpo dela não é nada para ele e ela não pode esconder-lhe seja o que for, muito menos a si mesma. A arte de seduzir é a de saber esconder. A mulher que apenas mostra faz-se objecto de pornografia; a que também esconde joga com erotismo. E no entanto esta moça não pode esconder nada de Grenouille, porque o seu perfume já revelou a este a verdade secreta que nela mora. É essa a pureza do desejo de Grenouille: diferentemente do desejo perverso do comum pretendente, que quer espreitar o que a moça esconde, que procura o que não consegue ver, ansiando pelo desconhecido, Grenouille está atraído precisamente por aquilo que já descortinou, aquilo que já conhece. O seu desejo não chega sequer a prometer fidelidade: ele condena-se a si mesmo a ser fiel logo que surge, pois nasce para o que já viu, não precisa de espreitar por nenhuma cortina – a desilusão e a traição não são nunca hipótese para ele.
  Ela é só inocência. Toda a aproximação do seu assassino se dá por trás, sem que ela perceba a sua existência. A acção da jovem é uma mera exibição passiva. Ele é todo aproximação, desejo preenchido em absoluto pelo que vê (i. e., pelo que cheira).
  Grenouille aproxima-se sem barulho ou cheiro porque é um demónio. Um ser que surge sem som ou perfume, cuja presença nos é anunciada com calafrios, como aqui sucede. Ela então vira-se, mas não tem tempo de dizer nada, nem poderiam existir palavras nesta cena. Qualquer palavra a destruiria, ao gesto que aqui se produz. Tudo é evidente e tudo é essência, ela apenas inocência, medo, beleza passiva, perfume livre e sem defesas; ele apenas um vazio andante vampiresco, desejoso, faminto e assassino. Qualquer palavra aqui destruiria a cena porque qualquer palavra de um deles seria redutora, limitaria o espaço do que se quisesse expressar, deixaria sempre algo de fora. Nenhuma palavra poderia transmitir tudo, como o fazem as imagens e o que nelas podemos ler. 
  Grenouille mata-a em silêncio, aperta-lhe o pescoço com as mãos, mas isto poderia ser um abraço. De facto, ele mata-a sugando-lhe o espírito; de certa forma, ele não a mata (da sua própria perspectiva), antes a traz para dentro de si, a essência dela continua a viver dentro dele. Como nos filmes de Hitchcock, também aqui percebemos que se o amor pode facilmente tornar-se agressivo, violento, também o assassinato pode ser um acto de amor (ou uma violação).
  Finalmente, ninguém como Grenouille sabe olhar para um corpo fisicamente perfeito e dizer que ele nada tem de belo ou sequer interessante, porque ninguém como ele sabe dizer que lhe falta o espírito. Sem o perfume que o habitava, o corpo da jovem, belo como há uns instantes, quando ainda tinha vida, é agora um mero cadáver.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O espelho escondido - Branca-de-Neve e o amor


  No episódio "Fruit of the poisonous tree" (Bryan Spicer), da série Once Upon a Time, o génio, apaixonado pela Rainha Má, encontra-se com a lâmpada mágica na mão e um desejo à disposição. Formula então o pedido de estar sempre com a sua amada, poder vê-la em todos os momentos ("I wish to be with you forever, to look upon your face always, to never leave your side"), e acaba por se tornar no espelho da Rainha.
  No livro La Lenteur, de Milan Kundera, há um sujeito cuja posição parece corresponder à do génio transformado em espelho. Immaculata é uma mulher que se despe sem qualquer pudor diante de um homem (sempre identificado como cameraman) e com uma total indiferença por este. Ao que parece, o homem é tão insignificante como uma cadeira: ele é "um não olho, uma não-orelha, uma não-cabeça” ("un non-oeil, une non-oreille, une non-tête"). Ela consegue tirar a roupa sem vergonha porque é como se ele não a visse, como se não estivesse ali para a ver. Porque este homem a ama e existe em perpétua adoração por ela, ela parece ser tudo o que ele vê, e parece vê-la em todos os momentos – como se fora o seu espelho.

  Sartre dizia que não conseguimos ver os olhos de alguém quando olhamos essa pessoa directamente – já que então o olhar da pessoa esconde os seus olhos (L'être et le néant). O mesmo sucede com o espelho: também aí não vemos a superfície e sim o que nela está reflectido. Também o espelho, portanto, tem um olho para nós oculto quando o olhamos. Neste caso, todavia, não é o olhar do espelho que esconde o olho, pois não existe ninguém na superfície, ou atrás dela, para nos ver; é antes aquilo que o espelho vê (nós mesmos) que esconde os olhos que nos vêem. Ou seja, é o objecto – nós – e não o sujeito – que não existe – aquilo que esconde o espelho do nosso olhar.
  Immaculata despe-se diante do cameraman como a Rainha diante do seu espelho, confirmando-se assim que o espelho "é a máquina de filmar mais antiga do mundo" (Gonçalo M. Tavares, O Dicionário do Menino Andersen). Está ali apenas um olho para ver Immaculata, não há ninguém por detrás dele. Por outro lado, esse olho apenas a vê a ela. Quando olhamos um espelho, vemos o que o espelho vê, porque o espelho é apenas um olho e nada mais. Por isso, não se pode verdadeiramente dizer que Immaculata ignora o seu cameraman, que não o conhece ou não o vê. Bem pelo contrário: ela conhece-o inteiramente. Porque se só conhecemos verdadeiramente alguém quando conseguimos ver o mundo através dos seus olhos, então esta mulher conhece inteiramente o seu cameraman, já que, no fim de contas, ela é tudo o que ele vê. Assim, o facto de se ver apenas a si própria quando está diante dele significa, afinal, que ela o conhece melhor que ninguém. Porque, em suma, o cameraman é um espelho para ela. Dizer, como diz o narrador de La Lenteur, que ele é um "não olho" vem a significar que ele é apenas um olho e nada mais. Assim, se Immaculata se despe sem preconceitos diante do seu cameraman, é porque, em certa medida, ele é realmente um "não-olho", já que o seu olho está escondido. Só que uma vez que a sua posição é a de um espelho, não é o seu olhar que lhe oculta os olhos, e sim aquilo que ele olha: a própria Immaculata. No fim de contas, se esta se despe diante dele como se não o visse, é porque ela está, na verdade, a despir-se apenas diante de si mesma, pois colocou-se a si própria diante dos olhos dele.

  O génio obteve o que queria, o seu desejo foi literalmente concretizado. Já o cameraman de La Lenteur sofre por concretizar o seu: ele quer deixar aquela posição de mero espectador, pretende que Immaculata o veja, note que ele está ali. Quer aparecer.
  Na versão dos Irmãos Grimm deste conto popular, quem é a Branca-de-Neve? Ela surge para a Rainha quando esta pergunta ao espelho quem é a mais bela em todo o reino. Uma vez que a Rainha se identifica com a mulher mais bela (e, mais obviamente, uma vez que ela se põe diante de um espelho...), ela espera que o espelho lhe responda devolvendo a sua própria imagem. Ora, sucede que o espelho lhe responde identificando a Branca-de-Neve. O que isto tem de significar, e nunca tem sido notado, é que a Branca-de-Neve, afinal, é o reflexo da Rainha. Um reflexo, sem embargo, com o qual ela não se consegue identificar e que rejeita. A Rainha odeia a Branca-de-Neve na medida em que não quer identificar-se com ela. O que, dito de outro modo, significa que a Rainha luta por se separar daquilo que encontra no espelho. Tudo isto vem a resultar, a final, numa verdade relativamente simples de extrair: é o ódio da Rainha que dá vida à Branca-de-Neve, já que sem ele esta seria apenas uma imagem daquela e nada mais. Se a Branca-de-Neve existe é apenas porque a Rainha a expulsou do seu espelho.
  O que quer o cameraman de Immaculata? Poderia querer o seu amor, mas isso afinal não lhe basta, visto que ele próprio ama-a e sabe o que isso significa: ela existe como objecto para ele, mas um objecto que preenche todo o seu mundo, esgota o seu campo de visão. Ora, ele quer também aparecer diante dela, quer que ela o veja e, portanto, quer também ser um objecto para ela. Contudo, isto parece só poder ser concretizado de uma maneira: ele quer ser para Immaculata o mesmo que a Branca-de-Neve é para a Rainha.
  Já sabemos que a posição do cameraman corresponde à de um espelho diante do qual Immaculata se olha. Ora, se assim é, enquanto ela se identificar com aquilo que encontra no olhar dele, ela vai apenas ver-se a si mesma e nada mais, já que, como referimos, aquilo que o espelho olha oculta o(s olhos do) próprio espelho. Por isso, se o cameraman quer aparecer diante de Immaculata, se se quer separar do espelho em que foi condenado a viver, e, ao mesmo tempo, ser o objecto que os olhos de Immaculata encontram quando se procura a si mesma (pois assim sabe que ela sempre acabará por vir ter ao seu encontro), então ele tem de aparecer diante dela como a Branca-de-Neve diante da Rainha: tem de ser o reflexo que ela rejeita, com o qual ela não se identifica e que, portanto, odeia.
  É por querer que Immaculata venha ao seu encontro que o cameraman precisa que ela o rejeite. É porque a ama que precisa que ela o odeie.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

"Eu estou aqui" - "Locke" (Steven Knight) e a ipseidade


  No filme Locke (Steven Knight), Ivan Locke é um capataz que, na véspera do dia em que deveria supervisionar uma obra de grandes dimensões, descobre que Bethan, uma colega com quem teve relações extra-conjugais meses antes, vai ter um filho seu. Apesar das obrigações laborais e de ser esperado em casa pela mulher e pelos filhos para ver um jogo importante na televisão, Ivan resolve ir até Londres para estar presente no momento do nascimento do filho. Ivan foi abandonado em criança pelo pai, algo que nunca lhe perdoou, mesmo quando ele voltou. Durante as horas de viagem, Locke faz e recebe vários telefonemas da sua mulher, do seu filho, de Bethan e de pessoas relacionadas com o seu trabalho e a obra do dia seguinte. Nesse período, e após explicar a situação, é despedido, a mulher expulsa-o de casa e consegue, apesar de vários contratempos, gerir todos os preparativos necessários para a obra correr bem. Tem também várias conversas imaginárias com o seu pai, como se este estivesse sentado no banco de trás, embora tenha consciência de que ele está morto. Finalmente, quando está prestes a chegar, Locke ouve pelo telefone o choro saudável da criança já nascida.

  Locke é habitualmente uma pessoa calma, organizada, perfeitamente cumpridora das suas obrigações e conforme ao que é esperado dele. Percebemo-lo pelas reacções espantadas das diversas pessoas com quem vai falando. Todas se mostram admiradas, tanto com a revelação do adultério como com a sua intenção de não estar presente no local de trabalho no dia seguinte. Estas atitudes não parecem concordantes com o carácter da pessoa que todos eles conhecem.
  Até que ponto Ivan está a mudar o seu modo de ser, a tornar-se (ou a mostrar ser) uma outra pessoa?

  Identifica-se a pessoa com o seu carácter? Segundo Ricoeur (Soi-même comme un autre), o carácter surge como corpo da nossa identidade na medida em que é um modelo de permanência no tempo ("permanence dans le temps") do sujeito. Num sentido possível da identidade – o da mesmidade ("mêmeté") –, a continuidade ininterrompida ("continuité ininterrompue") de algo aparece como um critério decisivo para aferirmos se esse algo é ainda o mesmo, por comparação com a situação inicial; a resposta positiva permitir-nos-á afirmar a identidade com base na permanência no tempo desse algo.
  O carácter é precisamente o conjunto dos traços distintivos que permitem identificar um indivíduo humano como o mesmo ("l'ensemble des marques distinctives, que permettent de réidentifier un individu humain comme étant le même"). É o conjunto das disposições duradouras pelas quais reconhecemos alguém ("l'ensemble des dispositions durables à quoi on reconnaît une personne"). Estas disposições duradouras que formam o carácter nascem dos hábitos que constroem a história deste (e isso faz-se através de uma sedimentação que tende a fazer esquecer a inovação que a precedeu). Cada hábito tornado uma disposição duradoura passa a ser um traço distintivo que, juntamente com as restantes disposições, formam o carácter da pessoa e permitem identificá-la. Além dos hábitos, a estas disposições podemos ligar também as identificações adquiridas ("identifications acquises") com valores, normas, ideais, etc., nos quais a pessoa se reconhece e que, assim, introduzem um elemento de alteridade que faz também parte da  sua identidade (e aqui, tal como com os hábitos, há um processo de interiorização que vem a apagar aquela alteridade inicial). A estabilidade destes hábitos e identificações adquiridas asseguram a mesmidade da pessoa, garantindo-lhe a permanência no tempo e permitindo identificá-la como a mesma. O carácter é portanto o "quê" que responde à pergunta "quem é aquela pessoa?", ou seja, é o quê do quem ("Le caractère, c'est véritablement le 'quoi' du 'qui'").
  O modo como se constroem as disposições duradouras que formam o carácter (os referidos processos de sedimentação e interiorização) indiciam já, porém, que a consideração do carácter propriamente dito pode não ser suficiente para esgotar a problemática da identidade. Quando a identificação com certos heróis ou valores, por exemplo, resulta na interiorização daquilo que se vem a tornar uma nova disposição duradoura, é preciso notar que, no início deste processo, há um elemento externo ao sujeito, que aparece de fora. Este "trazer" de algo vindo de fora para dentro tem de ser obra de um "si" que não é identificável com o carácter. Este trabalho tem de ser realizado por um agente na forma de uma identidade que, escondendo-se sob a permanência do mesmo no tempo, começa a surgir a cada nova "interiorização". Por aqui, em suma, começa a ficar sugerida a distinção entre a identidade reconduzível a uma problemática de mesmidade (identidade-idem) e aquela que podemos associar à ipseidade (identidade-ipse).
  A ipseidade é um outro modelo de permanência no tempo, distinguível do carácter. No carácter, tende a ficar a oculta a ipseidade pela mesmidade. Ricoeur identifica um caso, porém, em que o afastamento entre ambas é claro: aquele em que o sujeito mantém a palavra dada. Esta situação é uma tal em que a permanência no tempo é uma do si, já não do mesmo. Por isso, à pergunta pela identidade da pessoa, responde-se aqui com o "quem" e já não com o "quê". Porque nesta situação a identidade do si separa-se da mesmidade do carácter. Manter a palavra dada implica uma constância de si ("un mantien de soi") que, ao contrário do carácter, já não se deixa inscrever na categoria das coisas em geral, mas apenas na do "quem". E por isso se distingue a fidelidade à palavra dada da perseveração do carácter, a continuação do carácter da constância na amizade, etc. Manter a promessa pode mesmo então ser visto como um desafio ao tempo ("un défi au temps"): ainda que os meus desejos ou opiniões mudem, permanecerei fiel à minha palavra.
  Segundo Ricoeur, o "propósito ético" do "si" resume-se na busca de uma "vida boa", com e para outrem, em instituições justas ("Appelons 'visée éthique' la visée de 'vie bonne' avec et pour atrui dans des institutions justes").
  À segunda componente deste projecto ("com e para outrem") chama Ricoeur solicitude. Na primeira componente (busca de uma "vida boa"), analisada isoladamente, o aspecto reflexivo que aí se destaca pode ser designado por estima de si. Esta reflexividade parece ameaçar um fechamento do "si" sobre si mesmo. Todavia, segundo Ricoeur, a solicitude não se vem juntar, vinda de fora, à primeira componente, como se lhe fosse exterior, antes resulta do desdobramento dialogal da própria estima de si. Há uma tal continuidade entre estima de si e solicitude que elas não se podem pensar uma sem a outra ("l'estime de soi et la solicitude ne puissent se vivre et se penser l'une sans l'autre"). E isto explica-se na medida em que, em primeiro lugar, a reflexividade do "si", embora desligada do fechamento do "eu" ("Dire soi n'est pas dire moi"), ignora de qualquer modo (ou talvez por isso mesmo) a diferença entre "eu" e "tu". Em segundo lugar, a estima de si constrói-se por referência às capacidades do sujeito: o sujeito é o ser que pode avaliar as suas acções e os respectivos fins, e, por aí, avaliar-se a si mesmo, julgar-se bom; mas, segundo Ricoeur, a mediação do outro é necessária no trajecto que nos leva da capacidade à efectuação.

  Que leitura nos permite tudo isto fazer do percurso de Locke? O seu caminho oferece uma boa ilustração da identidade narrativa: aquela que medeia a dialéctica entre os pólos da mesmidade e da ipseidade.
  A família e colegas de Ivan ficam surpreendidos com as suas decisões. Todos eles conhecem o seu carácter e estas atitudes não parecem concordantes com a imagem que formaram dele. A sua surpresa, todavia, parece mostrar que eles consideram apenas o carácter de Locke, resumindo a isso a sua identidade. Como se a resposta à pergunta sobre a identidade devesse ser encontrada apenas no plano do quê, e não tanto do quem. Mas esta é uma noite em que a demarcação entre a mesmidade e a ipseidade, em Ivan, é clara.
  A decisão de Ivan baseia-se na assunção de um compromisso perante Bethan – e o seu filho. Apesar de todos impedimentos e inconveniências – a mulher, os filhos, o trabalho, os compromissos assumidos com outras pessoas –, ele garante que estará presente no parto. É muito clara aqui a ilustração da "constância de si" a que Locke se propõe. Por isso, a sua decisão só pode ser explicada como um gesto seu (um gesto que lhe pode ser imputado e no qual o podemos reconhecer) na medida em que o consideremos sob a perspectiva da ipseidade. É por desconsiderar esta dimensão e atender apenas ao carácter de Locke que a sua mulher já não o reconhece.
  A atitude de Ivan envolve então uma certa ruptura relativamente ao que já se havia sedimentado no seu carácter. Esta ruptura surge pelo aparecimento do outro perante o qual ele está obrigado por uma promessa. Com efeito, a constância de si, característica da ipseidade, traduz-se num modo de comportamento tal que alguém pode contar com o agente. Este é então responsável perante quem deve poder contar com ele. Ao outro, que pergunta "onde estás?", o agente responde "estou aqui" (a noção da constância de si é por isso eminentemente ética). O gesto de Ivan para com Bethan conjuga então as duas dimensões (literal e simbólica) do significado do cumprimento da promessa como ilustração da ipseidade: na promessa eu torno-me responsável perante o outro que conta comigo. É isto que, efectivamente, Locke diz a Bethan: quando ela lhe pergunta onde está, ele responde algo como: "não te preocupes, porque eu estou (estarei) presente". 

  A ipseidade não representa para Ivan, todavia, um salto no vazio, como se ele se tivesse simplesmente desligado do seu carácter e, qual homem sem qualidades, se condenasse a si mesmo à deriva de um renovar constante de comprometimentos sem qualquer fixação ou ancoragem. Entra aqui em cena a noção de identidade narrativa, que cumpre um papel de mediação entre a mesmidade e a ipseidade. É por ela que podemos perceber a narrativização do carácter, uma tarefa muito importante que confere ao carácter o movimento de que ele, se atendermos apenas às identificações e disposições já sedimentadas, parece despido. Como actua este elemento narrativo na história de Locke? De um modo subtil, mas relativamente simples de entender: embora as atitudes de Ivan surjam como surpreendentes aos olhos dos seus familiares, colegas e amigos, trata-se de todo um procedimento que visa reintegrar na sua história, numa perspectiva narrativa global, aquela estranha noite de loucura em que ele foi adúltero. As acções de Locke garantem precisamente que ele continua a ser aquela pessoa que todos eles identificam como o mesmo, através do seu carácter. Porque naquela noite gerou-se uma situação que resulta agora num chamamento – por outrem – a que ele tem de responder, sob pena de se demitir de todos os valores com os quais se identificou e que constroem desde sempre a sua maneira de ser. É precisamente abandonando tudo para acompanhar aquela semi-estranha no nascimento do filho que Locke consegue garantir que está onde sempre esteve.  

terça-feira, 2 de agosto de 2016

O meu inimigo no teu espelho

  No conto “The Sleep-Walkers” (Kahlil Gibran, The Madman: His Parables and Poems), duas sonâmbulas, mãe e filha, encontram-se durante a noite e insultam-se, expressando ódio e rancor uma pela outra. Mas quando o galo as desperta, saúdam-se com ternura e afecto.

  Uma leitura mais apressada poderá convencer-nos de que ambas – mãe e filha – são mentirosas ou falsas. Isto porque, durante o sono, elas mostram os sentimentos que realmente nutrem uma pela outra, aqueles sentimentos que ficam ocultados pela falsidade que as caracteriza quando acordadas. O sonambulismo, em suma, traz à superfície as emoções escondidas na vigília.
  Mesmo que esta leitura seja correcta, a história não tem de ser, porém, uma representação da hipocrisia de ambas. É muito possível que, durante o sono, elas expressem sentimentos de que não têm verdadeiramente consciência durante o dia. Sentimentos que, afinal, elas não escondem apenas dos outros, mas também de si mesmas.
  De imediato surge, todavia, a possibilidade de invertermos esta leitura. Podemos perguntar, com efeito, se o fingimento não aparecerá antes durante a noite. Pode dar-se o caso de os sentimentos que aparecem na vigília serem afinal os únicos que elas verdadeiramente nutrem uma pela outra. O ódio e o rancor surgidos durante a noite seriam então fingidos, como se o sonambulismo fosse a porta de entrada num palco onde elas representam papéis com os quais não se identificam verdadeiramente (quando acordadas). O sono seria então a oportunidade de colocar uma máscara.

  Seja como for, todas estas hipóteses parecem partilhar um elemento comum, que, por isso, daremos como aceite. Pelo menos no que respeita à projecção exterior daquilo que são (através da demonstração daquilo que sentem), parece haver duas pessoas tanto na mãe como na filha. A mãe projecta uma imagem de dia e uma outra de noite; a filha faz o mesmo. Ora, seja qual for a relação entre essas imagens, parece seguro que cada uma destas mulheres transporta sempre consigo o seu outro – neste caso, a sua outra.
  É no espelho que eu consigo encontrar o meu outro, aquele estranho que eu também sou e que me acompanha. E ele surge ali como reflexo, ou seja, com a minha imagem invertida. No conto, essa relação tem expressão nos próprios sentimentos demonstrados pelas mulheres, que, de noite, são exactamente o inverso daqueles mostrados durante o dia. A mãe sonâmbula, no fundo, é a outra da mãe que, durante o dia, trata a filha com carinho. O mesmo vale para esta.
  Dada esta inversão de imagem na mãe e na filha, seríamos tentados a pensar numa oposição entre cada uma das mulheres e a respectiva outra. Se cada uma realmente ignorar o que diz durante a noite, certamente que, ao descobri-lo, terá horror e vergonha de si mesma. Ainda que não desconheça os sentimentos veiculados durante o sono (e que, portanto, reprime durante o dia), seguramente que sentirá raiva dessa máscara que se vê obrigada a colocar quando encontra a sua parente.
  Esta oposição fácil de imaginar pode esconder, porém, uma ligação intrínseca entre cada mulher e a sua outra, que pode ser interessante descortinar.
  Comecemos por atentar no que cada sonâmbula diz à outra:

  "And the mother spoke, and she said: 'At last, at last, my enemy! You by whom my youth was destroyed—who have built up your life upon the ruins of mine! Would I could kill you!'
  "And the daughter spoke, and she said: 'O hateful woman, selfish and old! Who stand between my freer self and me! Who would have my life an echo of your own faded life! Would you were dead!'"

  Podemos perceber, em primeiro lugar, que a pessoa da filha aparece como uma resposta à da mãe. Isto resulta tanto das palavras da mãe – "You (...) who have built up your life upon the ruins of mine!" – como das da filha – "O hateful woman (...) who would have my life an echo of your own faded life!". Mas também a mãe – pelo menos esta odiosa mãe sonâmbula – é uma resposta ao aparecimento da filha (já que é obviamente em função dela que o ódio da mãe se desenvolve).
  Cada uma delas é uma reacção ao aparecimento da outra. E não admira que assim seja: a outra que cada uma delas é durante a noite (em relação àquilo que são durante o dia) nasce como reflexo no espelho em que elas se vêem, como referido atrás. Ora, se assim é, é claro que essa outra é sempre uma imagem que surge diante dos olhos de um terceiro (já que o nosso reflexo no espelho mostra-nos a nossa imagem para terceiros). Assim, é natural que cada uma das sonâmbulas só surja diante (leia-se: por efeito) do olhar da parente: é precisamente esse olhar que as sustém. Não admira também então que, embora cada uma expresse o desejo de que a outra morra, nenhuma delas possa verdadeiramente concretizar esse desejo: matar quem a olha seria matar-se a si própria (pois seria fazer desaparecer o olhar que lhe dá vida).
  Não é esse o único motivo, contudo, que impede cada uma das mulheres de matar a parente. Veja-se desde logo que se as sonâmbulas rancorosas são as outras das mulheres carinhosas acordadas, uma rápida troca de perspectivas permite-nos perceber facilmente que também estas últimas são as outras das sonâmbulas. Ora, se cada sonâmbula se abstém de matar, isso não se deve apenas ao desejo de sobreviver por si só, mas também à necessidade de manter viva a sua outra (deixando viver o objecto de afecto da sua outra durante o dia). E este é um modo mais indirecto, mas não menos verdadeiro, de se manter viva a si mesma: porque só continuando viva a pessoa que a sua outra ama durante o dia, pode viver a sonâmbula odiando-a durante a noite. Mais do que isso: é precisamente o amor que mantém juntas mãe e filha durante a vigília a garantir a proximidade suficiente para as sonâmbulas se poderem odiar durante o sono. Esta é mais uma comprovação de uma verdade que já conhecemos (encontrada, por exemplo, quando lemos The Story of an Hour, de Kate Chopin): a de que é o meu outro que sustém a pessoa que eu sou.
  É precisamente esta ligação intrínseca entre cada um e o seu outro que não deve ficar esquecida em favor da oposição mais superficial que facilmente se nota entre ambos. E essa ligação, neste conto como em qualquer outro lugar, vale também no sentido inverso: também a mãe e a filha carinhosas precisam, afinal, das sonâmbulas que odeiam durante a noite. Porque, no fim de contas, foi o encontro entre as mulheres que se odiavam que permitiu às duas acordarem para se abraçarem com amor.