E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Apenas um espantalho na cruz - "Chuchelo" (Rolan Bykov)


  No filme Chuchelo (O Espantalho, de Rolan Bykov), a figura de Cristo é convocada em vários momentos protagonizados pela personagem de Lena - não a personagem "Lena" que a actriz Christina Orbakaite representa, mas sim a personagem desempenhada, dentro do filme, pela própria personagem "Lena".
  Lena toma sobre si a culpa do outro (Dima). O mesmo outro que exibia um amor por ela, mas que não consegue, a final, assumir a sua culpa e, como Pedro, nega Lena três vezes. Pedro a um tempo e Judas a outro, é também Dima quem se torna o agente do castigo imposto ao espantalho: é ele quem lhe pega fogo. Mas se os perseguidores de Lena são o primeiro rosto da humanidade, Dima é ainda mais perturbador, pois é o que se esconde por detrás dessa primeira face, o que em nós mora mais fundo. Dentro de Dima, dentro de nós, apenas mora o medo. É isso que nele nos perturba tanto; porque, na lição de outro espantalho (depois de Roosevelt), "nada há a temer, senão o próprio medo". O nosso medo. Assim, Dima é um Judas diferente, muito mais próximo de nós. Judas actuou sob o domínio de um outro poder, ao qual se abriu (Jo, 13, 27). Dima é apenas ele mesmo. Judas, depois de comer o pão que partilhou com os companheiros, afastou-de deles para entrar no mundo das trevas (Jo, 13, 30). Dima não se afasta, pelo contrário, ele procura os companheiros: porque é humano, traz as trevas dentro de si.
  O jovem Dima mostra-se cobarde e fraco. Não é capaz de carregar o fardo que ele próprio fez questão de levantar e vê Lena carregá-lo por si. Não o atormenta verdadeiramente que Lena o carregue, mas sim a ideia de que ele mesmo o deveria fazer e não é capaz. Porque o próprio Cristo, afinal, é a maior garantia de fracasso da redenção: a sua assunção do fardo dos nossos pecados redime, mas não renova ou corrige. Ao ver Lena carregar o seu fardo, Dima descansa. Esta visão impressiona-o e comove-o, mas só uma outra poderia verdadeiramente transformá-lo: a visão de si mesmo ausente, a imagem de si não estando no lugar onde deveria estar. Como Cristo, Lena esconde-nos de nós mesmos e dá vida aos nossos pecados.
  Disse que Dima não se vê a si mesmo como ausente - i. e., não vê a sua ausência, usa Lena para a esconder de si próprio. Já a sua presença ele vê, mas só com os olhos dos outros. É por isso que é tão mais fácil ser corajoso quando os outros nos vêem e nos empurram: porque, na verdade, com eles repartimos o peso que exibimos como se fora apenas nosso. Usamos as costas de todos para aguentar aquilo que proclamamos ser o nosso peso. É o truque do alfaiate valente (Irmãos Grimm): aparentamos carregar a árvore, segurando-lhe os ramos, enquanto o gigante, sem o perceber, faz verdadeiramente todo o trabalho. Só que, embora recorrendo ao mesmo truque, Dima é um alfaiate medroso. A verdadeira cruz - a de Lena, como a de Cristo - é a que carregamos quando todos nos olham, mas ninguém nos vê. E é mesmo desses olhares que ela se faz: porque nada pesa tanto em nós como olhares vazios de compreensão.
  Lena, já ressuscitada, perdoa Dima. Mas este perdão é afinal apenas uma formalidade e surpreende somente aqueles (os colegas arrependidos) que nada viram e continuam a nada ver. Porque a redenção veio antes, quando o espantalho ardeu na cruz. É por esse sacrifício que a culpa dos outros ardeu. Daí poderia vir a salvação para os colegas de Lena. Mas não vem - são eles mesmos que o asseguram.
  Os colegas crucificam e queimam o espantalho, mas não Lena. Claro que Lena é o espantalho e ela arde na cruz. Claro que Dima sabe que é ele quem deveria ser castigado. Por isso, os seus gritos podem ser interpretados, a uma primeira luz, como o terror de quem vê Lena na cruz. Uma leitura mais profunda, porém, revela um significado mais desolador: como repetem os colegas, Lena não percebeu que aquilo era apenas "uma brincadeira". Mas eles continuam cegos. E não porque aquilo não fosse uma brincadeira, mas precisamente porque o era. A brincadeira significava que Lena só arderia simbolicamente, só o espantalho que a representa foi crucificado, não ela. Mas é precisamente esse o seu pânico. Porque a esperança para a humanidade tem de vir da prova de que a pessoa pode sobreviver à cruz. É só vendo, por exemplo, que São Policarpo, rodeado pelo fogo, não foi queimado, que podemos constatar que esse fogo que o deveria queimar, na verdade, o purifica. E só percebendo isso tomamos consciência de que, embora a ressurreição de Cristo depois da cruz só seja possível porque traz Deus em si, ela representa um novo caminho para os homens e mulheres porque é como ser humano que ele morreu e renasceu. Ao negarem a Lena esta possibilidade - a de sofrer, como Lena, o castigo injusto, infligindo-o apenas ao seu espantalho - os colegas negam verdadeiramente a promessa de redenção para a humanidade. Por isso, nesta leitura, o grito de Lena e o gesto de segurar a cruz a arder são muito mais a atitude de quem sabe que deveria arder ali, e não a de quem quer fugir.
  Porque a hipótese de redenção fracassou, Lena vai embora, para um lugar "aonde os outros não a poderão seguir" (Jo, 13, 36). E, assim, O espantalho aparece como uma oportunidade de nos maravilharmos com o percurso de Cristo, mas também de lamentarmos a humanidade a quem ele se dirige.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A distância de si mesmo - O sacrifício de Narciso


Narciso alla Fonte (Caravaggio) 

  Narcissus disbelieves in the unknown;
  He cannot join his image in the lake
  So long as he assumes he is alone.

  W. H. Auden, "Are You There?"
  
  A poesia de Auden transmite com exactidão o narcisismo de Narciso. Narciso não pode juntar-se ao lago enquanto acreditar que está sozinho – o que significa que ele só mergulhará em busca do seu reflexo quando acreditar que assim persegue um outro.
  É fundamental o alerta, porém, de que ele não acredita no desconhecido: o desconhecido não o prende nem atrai. Ora, ao desconhecido pertence o verdadeiro outro. Porque quem nos é completamente outro – i. e., quem de nenhum modo se identifica connosco – permanece-nos fatalmente estranho, distante, inalcançável. A familiaridade com alguém só se consegue tornando esse alguém em nós mesmos (nem que seja um pouco). Ou o inverso: tornando-nos nós esse alguém. Trata-se, no fundo, de uma concretização da velha ideia de que só podemos conhecer o que a nós se compara, o que já vive dentro de nós. Nesta linha, conhecer é sempre reconhecer.

  A constatação de que o que vemos fora de nós se assemelha ao que está em nós elimina uma barreira entre interior e exterior. Precisamente a barreira que, segundo sugere Tolentino Mendonça, inaugura a diferença entre amizade e amor: "a relação de amizade é fecundada pela aceitação buscada dos limites. Talvez a grande diferença entre amor e amizade resida no facto do amor tender sempre para o ilimitado, suspeitando de contornos e fronteiras." Diferentemente do amor, "na amizade (...) aceitamos que exista uma vida sem nós e para lá de nós." Por contraposição ao amante, “o amigo é que faz parte da nossa vida afectiva sem deixar de ser o outro” (Nenhum Caminho Será Longo – Para uma Teologia da Amizade).
  É precisamente esta barreira que, aparentemente ausente no confronto entre Narciso e o seu reflexo, não o impede de se apaixonar por si mesmo. A magia da amizade é a da conversa a partir de dois lados de um muro: a sua arte é a de manter vivo o outro dentro do meu próximo. Por paradoxal que pareça, a morte da amizade começa quando quem me é próximo deixa de me ser secretamente distante. E é isso que o reflexo de Narciso nunca foi. Para Narciso, ele nunca foi o rosto do desconhecido. Por isso, pode atrair-se por ele. Entre ambos não existe um muro. Existe apenas a linha do espelho: aquela que me separa do outro que há em mim. Ao ver-se na água, Narciso não se descobre a si mesmo, mas ao outro que há em si. Por isso ele sabe que não está sozinho: há um outro por ali. E é o único outro que o pode atrair, porque é o único que não lhe é desconhecido: é o outro que ele traz dentro de si mesmo. É o seu outro.

  Narciso estende a mão e, turvando a água, deixa de ver por momentos o seu reflexo. O amor quer transpor todas as barreiras, mesmo aquelas que dão vida a quem se ama. É essa a sua verdadeira cegueira. Porque sempre que Narciso tenta abraçar o seu reflexo, unindo-se a quem ama, a fronteira entre eles desaparece e, com isso, o próprio amor fracassa, pois o outro que o atrai deixa de existir.
  Não é ainda aqui, porém, que Narciso se condena, mas sim no momento seguinte – aquele em que se afoga. No fim de contas, acreditou que, se não conseguia trazer para junto de si o seu reflexo, poderia ele fazer o caminho inverso: juntar-se à imagem. Em vez de transformar o outro nele mesmo, propôs-se transformar-se ele mesmo no outro. E não devemos menosprezar o altruísmo deste gesto: ao abdicar de viver para deixar o outro que ama viver por ele, Narciso, contra a teologia da amizade de Tolentino Mendonça, grita que o seu amor pode ser o gesto de sacrifício que funda a liberdade do (seu) outro.
  A morte de Narciso é o único fim que pode ter o seu sacrifício. Salvá-lo seria condená-lo. Porque depois de abandonar a posição em que adorava o seu reflexo, depois de passar a ocupar o lugar do seu outro, há uma certeza que o tortura mais que tudo: nunca mais poderá ver-se a si mesmo.

domingo, 22 de novembro de 2015

Fatal como a vida - "Unbreakable" (M. Night Shyamalan)


  Há dezenas de milhões de anos, quando os vulcões das actuais Galápagos surgiram no meio do Pacífico, brotaram sem vida animal ou vegetal. Hoje, porém, as águas destas ilhas, como explica David Attenborough, albergam um dos mais diversos ecossistemas marinhos do mundo, secundado, em riqueza e diversidade, pela vida em terra.
  A vida teve de fazer o seu caminho para chegar às Galápagos. Um caminho muito longo e improvável. Hoje encontram-se milhares de iguanas nas suas rochas, mas a primeira a lá chegar teve de percorrer perto de 1000.000 quilómetros pela água, provavelmente numa frágil jangada construída de ramos pelo engenho do arbítrio natural. As tartarugas gigantes que actualmente dão nome às ilhas não sabem nadar, mas conseguem deixar-se flutuar (o que revela nelas uma profunda sabedoria estóica). Há provavelmente 3 milhões de anos, um destes estóicos aventureiros flutuou desde as florestas sul-americanas durante semanas ou meses até chegar às Galápagos, onde deixou ovos. As aranhas foram dos primeiros animais a chegar – conhece-se hoje cerca de 150 espécies diferentes na sua vegetação. Têm um modo muito próprio de viajar: produzem um fio de seda a partir do abdómen, um fio composto de dois filamentos que se agarram entre si com a força com que um bebé humano pela primeira vez berra a vida para fora dos pulmões; a mais leve brisa leva esse fio de seda aonde for e a aranha, como as palavras, vai com o vento. Foi precisamente a flutuar, não pelas águas – como as estóicas tartarugas –, mas pelos céus – como os deuses (e os homens) – que as aranhas fizeram os seus 1000.000 quilómetros até chegarem às Galápagos. Outros animais, como as abelhas carpinteiras, não poderiam ter feito a viagem sem um abrigo especialmente confeccionado – e encontraram-no em pequenos e (in)significantes ramos. Hoje, como desde há tempos sem memória, estes animais polinizadores são fundamentais na vida das Galápagos, a tal ponto que a vegetação se lhes adequou. Nas palavras de Attenborough: "Nearly all the flowers on the Galapagos are now either white or yellow. Those are the colours preferred by the carpenter bees. So there's no point in being anything else."
  A chegada e o caminho da vida nas Galápagos, feitos de vias improváveis e fantásticas, são uma perfeita ilustração da sentença de Ian Malcolm em Jurassic Park (Steven Spielberg): "Life finds a way." A delicadeza dos meios de que a vida se vale para chegar a todos os cantos – mesmo, ou sobretudo, os invisíveis – traz a ilusão da fragilidade: nada é tão inverosímil como a vida e nada é tão resistente. Feita de caminhos improváveis, ela resiste a todas as probabilidades.


  É este olhar sobre o fenómeno natural que nos ajuda a ler a história de Unbreakable (M. Night Shyamalan). Elijah tem uma doença rara (osteogenese imperfeita), em virtude da qual os seus ossos são extremamente frágeis, o que lhe vale a alcunha de "Mr. Glass". Está convencido de que existe certamente alguém que é o seu inverso, alguém cujos ossos não quebram. Acaba por encontrá-lo em David Dunn, único sobrevivente (ileso) de um desastre de comboio. Exceptuando a sua fraqueza na água, David parece quase imortal: não esteve nunca doente, é extremamente resistente e forte, confirmando-se assim como o herói que Elijah procurava.
  A força e resistência de David podem parecer a exibição mais evidente da pujança da vida e da sua inquebrantabilidade. Mas a facilidade com que quase se afoga mostra que nenhum ser vivo é imortal. Isso não disfarça a maravilha: a verdadeira vida é sempre frágil. Essa é a maior prova de que os deuses estão mortos.
  É também esse laço – o da fragilidade – que une David e Elijah. À primeira vista, surge-nos apenas um momento de fraqueza que ambos partilham: a água pode matar qualquer um deles. É, todavia, a especial delicadeza de Elijah que faz dele o verdadeiro herói da história. O caminho de Elijah é o mais improvável: porque pode partir – e porque parte mesmo por vezes – ele tem tudo para ficar pelo caminho. Mas continua. Também David, por seu lado, só está verdadeiramente vivo quando está perto de morrer.
  A dignidade do que é frágil não resulta da sua fraqueza, mas da sua força. Porque o frágil  não depende de nada para poder sobreviver. Protege-se a si mesmo. E assim tem de ser. E isto – para usar uma expressão de Saramago – "É fatal como a morte. E a vida."

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Love my other - "En memoria de Paulina" (Adolfo Bioy Casares)

  No documentário The Pervert's Guide to Cinema (Sophie Fiennes), Zizek diz-nos o seguinte: "All too often, when we love somebody, we don't accept him or her as what the person effectively is. We accept him or her insofar as this person fits the coordinates of our fantasy. We misidentify, wrongly identify him or her, which is why, when we discover that we were wrong, love can quickly turn into violence. There is nothing more dangerous, more lethal for the loved person than to be loved, as it were, for not what he or she is, but for fitting the ideal."
  Estas palavras têm confirmação exacta no conto "En memoria de Paulina" (Adolfo Bioy Casares). O narrador está apaixonado por Paulina, mas esta prefere Julio Montero. Paulina visita o narrador para lhe contar que vai partir com Montero, que entretanto a espera na rua. O narrador parte também (para o estrangeiro) e volta anos depois. Recebe então novamente a visita de Paulina, que lhe declara o seu amor. O narrador descobre na manhã seguinte, porém, que Paulina morreu anos antes, precisamente no dia em que o visitou antes de partir, assassinada por Montero, por motivos de ciúme. O que o narrador viu na noite anterior, de acordo a explicação do próprio, foi precisamente uma projecção dos ciúmes de Montero, a Paulina que Montero fantasiou no seu ciúme, enamorada do narrador, e não a verdadeira – entretanto já morta e que se apaixonara apenas por Montero.

  À primeira vista, pode parecer que este conto contraria o que diz Zizek: Paulina é fiel, não corresponde de modo nenhum ao que Montero temia, pelo que a violência deste, afinal, não poderia ser explicada pela falta de correspondência entre a Paulina real e o modelo ideal projectado por Montero. Não é, porém, assim. Tal leitura assenta numa identificação errada do modelo idealizado por Montero. Na verdade, é precisamente uma Paulina infiel aquilo que Montero desejava. É justamente esse o modelo que ele projecta (e cria), porque é esse que dá sentido ao seu (modo de) ser (um ciumento possessivo). Assim, porque Paulina não corresponde a esse modelo, o seu amor torna-se violência. Ou seja, Montero não mata Paulina porque (pensa que) ela lhe é infiel, mas sim porque (sabe que) ela não o é.
    O conto figura a possibilidade, por outro lado, de se identificar uma segunda dimensão neste tipo de amor: a criadora. O amor de Montero não é meramente destrutivo. Ele mata a Paulina real, mas dá vida a outra Paulina, concretizando assim uma verdade evidente, mas nem sempre tida em conta em histórias de amor violento: para aquele que pensa o modelo, o objecto de desejo só existe – rectius: só merece existir – enquanto corresponder a esse modelo. Para Montero, só a Paulina infiel existia, porque só essa correspondia ao seu modelo. A violência com que Montero reage ao confronto com a Paulina real – com a falta de correspondência entre esta e o seu modelo – mostra que para ele, a pessoa real de Paulina não merecia existir, mas a ideal sim.
  Esta atitude, note-se, não está presente apenas em Montero: ela transparece no próprio narrador. Até à primeira visita de Paulina, o narrador recusa ver a atracção desta pelo rival, apesar dos sinais. Até esse momento, com efeito, crê apenas na Paulina enamorada por ele próprio, rejeitando implicitamente o direito a existir da Paulina real, por contraposição ao seu modelo ideal. A mesma atitude reaparece depois com a segunda visita – a da mulher imaginada/projectada. Esta é recebida com afecto e, apesar dos sinais de que algo está errado (reconhecidos pelo próprio), o narrador rejeita (nessa noite, pelo menos) a possibilidade de aquela não ser a verdadeira Paulina. Reconhece apenas a esta, portanto, o direito de existir, não à outra.
  Como se vê, a Paulina-modelo do narrador e a de Montero são, no fim de contas, a mesma pessoa, pelo que ela é tanto uma criação de Montero como do próprio narrador. Também pelo lado deste se confirma a dimensão criadora do amor idealizador.

  Lembremos a história "Wenn Herr K. einen Menschen liebte" (Bertolt Brecht), em que o senhor Keuner explica o que faz quando ama alguém:


"Was tun Sie", wurde Herr K. gefragt, "wenn Sie einen Menschen lieben?" "Ich mache einen Entwurf von ihm", sagte Herr K., "und sorge, daß er ihm ähnlich wird." "Wer? Der Entwurf?" "Nein", sagte Herr K., "Der Mensch." 


  O senhor Keuner faz um esboço da pessoa em questão e depois procura garantir, não que o esboço se assemelhe à pessoa, mas sim que esta se assemelhe ao esboço.
  A coincidência entre as referidas Paulinas-modelo permite também avançar uma hipótese curiosa. Essa coincidência dá-nos a entender que, de certo modo, os olhos com que Montero e o narrador vêem Paulina são, no fim de contas, os mesmos. Pelo que se pode afirmar que entre os dois há uma relação de mesmidade. Montero e o narrador são, para efeitos do que vêem (e do que criam com essa visão), a mesma pessoa. Na história de Paulina, tanto o narrador como Montero são, afinal, senhores K. frustrados e violentos, incapazes de aceitar uma Paulina que não corresponda ao esboço que dela fizeram.
  Claro que essa mesmidade, existindo, não é suficiente para apagar a "outridade" que também caracteriza a sua relação. Ou seja, embora se identifiquem para certo efeito, Montero e o narrador mantêm-se, no restante, separados – como se confirma pelo facto de que a idealização de Montero – a de uma Paulina infiel – pressupõe necessariamente a existência de outro (o narrador) com quem Paulina o possa trair. Por outras palavras, se o narrador e Montero coincidissem totalmente, Paulina não seria infiel a Montero (estaria a traí-lo com ele mesmo, o que não seria traição), pelo que a idealização deste fracassaria. Assim, Montero é um outro para o narrador, tal como este o é para Montero. Mas se Montero é outro para alguém com quem se identifica, então Montero é o outro do narrador, e este é o outro de Montero.
  Estes desenvolvimentos ajudam a perceber melhor o que está em jogo no desejo dos dois rivais. O narrador deseja que Paulina o deseje a ele e não ao seu (dele) outro (Montero). Ou seja, ele pretende que ela o deseje rejeitando ao mesmo tempo o outro que em si mora. A lição do conto surge então aqui como a de que este amor não pode ser correspondido, por ser demasiado egoísta: Paulina pode suportar (amar) alguém que rejeita quem lhe é completamente outro (leia-se: pode amar Montero, apesar de ele a rejeitar como ela é e a substituir por uma Paulina idealizada). Mas não pode amar alguém que vai ainda mais longe na sua aversão: alguém que não apenas a rejeita como ela é (ou seja, não apenas rejeita quem lhe é completamente outro), como rejeita o seu (dele) próprio outro, i. e., rejeita também o outro que é ele mesmo.
  Deste modo, sob aparência enganadora, uma estranha lição de moral esconde-se neste conto. O amor egoísta do narrador deixa-o só, enquanto o amor altruísta de Montero é, pelo contrário, correspondido.
  Esta lição, todavia, traduz apenas um castigo para a cegueira do narrador. Dado que este vê o que Montero vê (a mesma Paulina idealizada), eles comungam um ponto de vista. E essa coincidência impede-o de perceber que Montero é o seu outro – do mesmo modo que se eu passar para o outro lado do espelho (sem dar conta), não posso perceber que o que está do lado lá é o meu reflexo, ou seja, é um outro que me pertence. Ora, quando o espelho nos devolve o nosso reflexo, devolve-nos o nosso outro. E esse outro é também o modo como aparecemos a terceiros: é o nosso outro que os terceiros encontram quando nos olham. Por não perceber que Montero é o seu outro – por outras palavras: por não ser capaz de ver o que Paulina vê quando olha para ele (narrador) –, o narrador não entende que deveria ter idealizado Paulina do mesmo modo que Montero o fez: o que ele deveria ter almejado, para conseguir que Paulina o desejasse (a ele, narrador) era, afinal, que Paulina desejasse Montero.
  Montero, pelo contrário, percebe o que Paulina vê quando olha para ele e por isso idealiza-a correctamente: como estando apaixonada pelo seu outro, i. e., pelo narrador. Precisamente porque Paulina rejeita esse outro, no entanto, Montero descobre-se, a final, rejeitado. E é essa rejeição que ele não é capaz de suportar. Porque um amor que não se dirige ao meu outro é um amor que nunca me vai atingir. Porque Paulina ama Montero e não o narrador, Montero nunca poderá dizer-se amado.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Nada custa a Aquiles, mas tudo custa a Heitor



  Há uma respiração divina no toque de Messi.
  Gonçalo M. Tavares escreve que “o importante da respiração é o modo como ela não existe.” E que a cabeça deve respirar como a água: são os outros - o Peixe, por exemplo - que respiram pela água” (Livro da Dança). Messi tem esse modo divino de respirar quando joga, que consiste em deixar a bola respirar por ele.
  Cristiano respira sozinho. O fôlego está preso nos túneis do seu corpo e a bola surda é incapaz de ouvir sequer ecos dessa respiração. Messi é oco porque a bola é que faz o trabalho da respiração por si. Cristiano, pelo contrário, joga com uma bola vazia, porque traz tudo dentro de si mesmo - não quer, não pode perder nada. Messi, pelo contrário, nada tem a perder.
  As emoções não fazem parte do jogo de Cristiano, elas são esse jogo. Não remata senão com a fúria de derrubar, não corre senão com a ousadia louca de querer chegar onde não pode, não falha senão já com o desespero de um Job revoltado e não celebra senão com a arrogância de quem quer o mundo a olhar para si. Cristiano leva as emoções humanas ao extremo e todos os momentos do jogo são oportunidades para as estender um pouco mais além. Joga sempre assaltado pela manía, a loucura guerreira que, na Ilíada, cegava os heróis humanos como Heitor ou Diomedes.
  Messi, pelo contrário, não se emociona na nossa linguagem. A sua fúria, como a mênis de Aquiles, é uma paixão divina, de que os homens não podem falar e que ele só partilha com os deuses. As suas jogadas nada lembram das investidas de Agamémnon, dos golpes de Menelau ou dos ímpetos de Diomedes. Elas ecoam, isso sim, os caminhos com que Atena, Ares ou Apolo espalhavam a sua ira nos campos de Tróia. Se o olhar de Messi parece perdido ou deixado noutro lugar que não o campo, é porque o seu campo é outro. Ele não está perdido; mora no Olimpo. Nesse olhar que aos nossos olhos que não vêem parece não ver, espreita, por isso, "o primeiro estrangeiro da literatura universal" ("il primo straniero della letteratura universale"), como Pietro Citati chamou a Aquiles (La Mente Colorata).
  Porque as suas emoções nascem para lá das medidas humanas, Messi pode exibir o infinito numa jogada. Ele não é um combatente, como Cristiano, porque não joga com as correntes deste. A glória de Cristiano é a de um duelo impossível com os limites humanos. Por vezes vence algumas batalhas e toca o céu. São momentos em que quase podemos ouvir as moradas dos deuses estremecerem com a sua fúria humana. Mas para chegar a ser sobre-humano, Cristiano é sempre humano no princípio da luta. Porque traz tudo dentro de si e joga na vertigem de o perder, podemos dizer dele, como Rachel Bespaloff disse de Heitor, que "tem muito a perder, estando preenchido, mas sempre acima do que o preenche, pelo seu ardor de desafiar o destino" ("il a beaucoup à perdre étant comblé et toujours au-dessus de ce qui le comble par son ardeur à défier le destin" - De l'Iliade).
  Aparentemente, a dimensão do jogo de Messi é a do trágico hegeliano: move-se no campo como o actor do antigo teatro grego que, pela máscara, representava a Essência. Analisando o pensamento de Hegel sobre a tragédia, diz Alenka Zupančič: “When the actor puts on the mask, he is no longer himself; in the mask, he brings to life the (universal) essence he represents.” (The Odd One In: On Commedy) Também a camisola 10 parece ser a máscara com que o actor deixa de ser Lionel para representar Messi - porque só se pode representar Messi e o seu jogo, nunca sê-lo e jogá-lo verdadeiramente.
  Como explica Zupančič, no entanto, “the essence ultimately exists only as the universal moment, separated by the mask from the concrete and actual self, and as such this essence is still not actual”. Ora, se assim é, esta não é afinal a dimensão do jogo de Messi, mas sim a de Cristiano. É Cristiano que, por vezes representa a Essência numa jogada, é ele que de vez em quando vemos dar uns passos no trilho do infinito. E sabemos que é ele porque quando o vemos jogar ouvimos respirar o homem que veste a camisola 7 e ficamos a saber que ele está lá - tal como o espectador de uma tragédia grega antiga sabia que havia um homem por detrás da máscara. Ainda seguindo Zupančič, se na tragédia encontramos uma consciência individual a representar o papel do universal abstracto (a pôr a máscara de infinito por uns instantes), já na comédia a pessoa desse indivíduo coincide com a própria essência, não se limita a representá-la. Quando vemos jogar Messi, não sentimos que haja um homem ali disfarçado, porque sabemos que é a bola que respira e não encontramos olhar algum. As suas jogadas não são encenação de infinito, antes trazem o infinito em si porque já são esse infinito. Por isto podemos completar a sentença de há pouco dizendo que ninguém pode ser verdadeiramente Messi e jogar como ele, a não ser o próprio Lionel. E concluir que a dimensão do jogo de Messi é afinal a do cómico hegeliano, ficando para Cristiano a dimensão trágica.
  Rachel Bespaloff escreveu que "nada custa a Aquiles, mas tudo custa a Heitor" (“rien ne coûte à Achille, mais tout coûte à Hector”). É aqui que na tragédia de Cristiano aparece o seu heroísmo. O seu grito de fúria não é o grito de Aquiles, cuja ira não podemos compreender. A sua revolta é, pelo contrário, a que mais ressoa no nosso interior, porque é profundamente humana: dirige-se contra a finitude. E se a paixão divina de Messi está para além do nosso entendimento, o heroísmo de Cristiano só pode ser entendido no mundo dos Antigos. Porque, como explica Sloterdijk (Zorn und Zeit), aí o heroísmo assume uma importância vital: os actos heróicos testemunham a possibilidade de criar algo novo, algo que não surge logicamente dos ditames da Natureza (e dentro dos limites desta). Eles mostram que “sob o Sol surge algo mais do que o indiferente e o eternamente idêntico” (“unter der Sonne ereignet sich mehr als das Gleichgültige und Immergleich”). O jogo de Messi, por lhe faltar a transpiração humana, não assume esta dimensão. Por isso, tal como, "mesmo vencido, a coragem de Heitor não se esvanece diante do heroísmo de Aquiles" (“même vaincu, le courage d’Hector ne s’efface pas devant l’heroïsme d’Achille” - Bespaloff), também a ousadia de Cristiano não pode ser ocultada pelo talento de Messi.

  "Heitor tudo sofreu e tudo perdeu, excepto a si mesmo" (“Hector a tout souffert, et tout perdu sauf lui-même”- Bespaloff). Também Cristiano, na sua batalha por ganhar o mundo para o poder trazer na barriga, há-de acabar por tudo perder - para, no fim, se ganhar a si mesmo na história que está a escrever. Não sendo o jogador mais espectacular (Ronaldinho), o mais elegante (Zidane) ou o mais literariamente romântico (Garrincha), a dimensão trágica da sua história torna-o o mais heróico de todos.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

"Esse lugar é meu!" - O pesadelo invertido

  O tema do doppelgänger, do outro que vagueia por aí como um fantasma a assombrar-nos, é geralmente mote de histórias de terror ou angústia do original, daquele que é duplicado: a perspectiva com que seguimos a narrativa é a da pessoa cuja identidade é ameaçada pelo duplo, e, por norma, é o ponto de vista de alguém nervoso, temendo (justificadamente) que a sua identidade e o seu lugar no mundo sejam tomados por esse outro.
  Estas histórias trazem, portanto, em regra, relatos de usurpação, de um assalto protagonizado pelo duplo em relação ao original. Não interessa, para este efeito, se este original, pelas suas qualidades ou atitudes, realmente “merece” manter o seu lugar no mundo ou não. Assim, por exemplo, no episódio “Nervous Man in a Four Dollar Room”, da série The Twilight Zone, o final - substituição do original pelo duplo - é claramente apresentado como desejável e merecido.


  O sketch “Esse lugar é meu”, dos Gato Fedorento, apresenta uma curiosa inversão de perspectiva neste tema. Nas histórias tradicionais, o duplo não questiona a precedência do original. Muitas vezes, declara mesmo abertamente a intenção de o substituir - reconhecendo assim, implicitamente, que o lugar não é seu, que só se tornará seu quando ele o tomar e apenas por causa disso. O máximo a que o duplo chega, no que respeita a pretensões de legitimidade para fazer seu o lugar do original, é a uma crítica da conduta deste, a uma argumentação que visa provar que o original não merece manter o lugar e que ele - o duplo - saberá utilizá-lo com muito mais proveito.
  Isto basta para termos a certeza de que Miguel Góis representa, no sketch referido, o lugar do original, do duplicado, enquanto Ricardo Araújo Pereira é o duplo. Com efeito, a pretensão daquele é a de uma legitimidade originária, é a de quem reclama o lugar, o casaco, a família, como coisas que são suas porque lhe pertencem desde o início. Ele não argumenta, não tenta explicar que as merece mais do que o outro, reclama-as simplesmente como suas. É verdade que o outro também não desenvolve qualquer argumentação naquele sentido, mas o decisivo, aqui, é que ele não questiona aquela legitimidade originária. Isso basta para estabelecer os papéis.
  A inversão concretiza-se então no seguinte: neste sketch, é o outro quem ocupa o lugar do original, e é o original quem vem tomar o lugar do outro. Se alguém aqui teria razões para se sentir angustiado seria o outro, não o original.
  É curioso também verificar o contexto em que a inversão é encenada. A acção decorre num estádio vazio (exceptuando os dois personagens). Compreenderemos a importância deste pormenor se atentarmos no papel que o público tem nas tradicionais histórias que vínhamos referindo. O exemplo mais claro é talvez O Duplo, de Dostoiévski. A angústia do protagonista (Goliádkin) concretiza-se, sobretudo, na percepção da aprovação que o duplo recebe por parte dos outros, contrastante com o embaraço que ele sente de cada vez que se ridiculariza em público. Mas também noutros casos - em que a angústia do original não passa, pelo menos aparentemente, por esta sensação de humilhação ou rebaixamento - é atribuído um papel fundamental ao olhar do público. Assim, por exemplo, no episódio “The Case of Mr. Pelham” (Alfred Hitchcock), da série Alfred Hitchcock Presents, a crise do protagonista começa, precisamente, com reacções e relatos de terceiros. O problema nasce quando terceiros começam a vê-lo em vários lugares - lugares onde ele não esteve - a fazer coisas que ele não fez. Deste modo, a consciência da possibilidade de vir a ser substituído - e a angústia daí decorrente - só surgem por transmissão de terceiros: de facto, é o próprio olhar do terceiro que dá origem àquela possibilidade, pois é só aos olhos dos outros que o duplo pode tomar o lugar do original. É pelo olhar do terceiro, em suma, que o original toma consciência da possibilidade de ser substituído.
  Ora, em “Esse lugar é meu”, não há público. O estádio vazio exibe ostensivamente a ausência de terceiros. E talvez essa ausência seja decisiva na inversão de que vimos tratando. Porque se não há o olhar de um terceiro, não se abre o caminho para o outro tomar o lugar do original. É antes este quem pode, com toda a segurança, (re)tomar o seu lugar do outro.
  
  Na última troca de palavras no sketch, o duplo diz “vamos lá ver se você não tem aí mais nada meu”, ao que o original responde “essa deixa é minha”. A primeira frase é a mais radical tentativa de aniquilação do original: nenhum duplo, com efeito, em nenhuma obra conhecida, vai tão longe na sua pretensão de se substituir a quem chegou primeiro. Porque aqui, mais do que tomar simplesmente as coisas deste, o duplo tenta usurpar o seu lugar pondo-se na posição de usurpado. Em bom rigor, aliás, não será porventura correcto dizer que ele tenta tomar o lugar do original; diremos, mais exactamente, que ele tenta transformar o seu lugar (de duplo) no verdadeiro lugar do original, ou seja: ele não tenta trocar de lugar, mas sim trocar os próprios lugares.
  À primeira vista, pode parecer desapropriada (e por isso cómica) a última fala do duplo, visto que era ele quem tinha  as coisas do original, não o inverso. Deveria ser o original, portanto, a dizer aquilo. Mas tendo em conta o que acabamos de ver, a fala é, afinal, a mais adequada, atendendo ao que o duplo queria fazer. Agora que o original já retomou as suas coisas, desapossando delas o duplo, a este só resta uma atitude coerente, se quer manter o seu propósito de ocupar o lugar do original: inverter o sentido dos gestos dos dois intervenientes, fazendo aparecer a atitude do original - de retomar as coisas que são suas - como se fosse a de um duplo a usurpar o que não é (originariamente) seu. O que sugere uma conclusão assustadora. O original consegue, neste sketch, sobreviver ao pesadelo a que sucumbem o sr. Pelham ou Goliádkin: não se deixa vencer pelo seu duplo. Mas é preciso atenção, porque pode um pesadelo invertido estar escondido sob o disfarce de um pesadelo terminado.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A morte dos brinquedos


  No filme Toy Story 3 (Lee Unkrich), Woody e os outros brinquedos encaram a iminência da separação de Andy, o seu dono, que já não é uma criança. Os brinquedos não podem acompanhar Andy no seu crescimento e assim o desencontro é inevitável. Eles não envelhecem – o que são, são-no para sempre. A infância de Andy é o único momento que a sua efemeridade pode partilhar com a eternidade dos brinquedos.
  A tragédia dos brinquedos é a do abandono. Andy parte e tem de os deixar. É a tragédia de ficarem. Ficam para sempre. Ficarão mesmo quando Andy já lá não estiver, quando tiver desaparecido por completo. São eles, de facto, quem mais sente a efemeridade de Andy: a ausência do rapaz só está presente porque eles a sentem. O vazio de Andy só existe nos seus brinquedos. Qualquer encontro é breve, face à perspectiva da eternidade. E é quase como se este breve encontro entre eles servisse apenas para criar o vazio que vai durar para sempre. Por isso, em Toy Story, por paradoxal que pareça, é um breve momento que dá luz à eternidade. O que existe para sempre nasce do ventre do efémero.


  A perspectiva trágica dos brinquedos é o reverso da do livro Peter and Wendy (J. M. Barrie). Também Peter Pan permanece. O único encontro possível com ele dá-se na infância de Wendy e seus irmãos, porque Peter não cresce, não envelhece. A viagem à Terra do Nunca não é senão o provar um pouco de eternidade. Mas esse gosto têm-no todas as crianças em cada brincadeira. Um brinquedo é isso mesmo: a oportunidade de sermos eternos por um instante.
  É também por isso que os brinquedos, em Toy Story, não se mexem nem falam quando Andy está por perto. Porque o gosto da eternidade dá-se através do vislumbre e não do toque ou da mistura. A única eternidade possível para Andy ou as outras pessoas seria a da morte enquanto nada, não-ser. E não é essa a morte que virá para Andy. Ela chegará antes como o fim da vida, como o limite para a sua história. Também na peça de teatro Peter Pan, or The Boy Who Wouldn't Grow Up, segundo indicações de Barrie, Peter nunca podia ser tocado por nenhum personagem. De tal modo que a fada que o acompanhava tinha de impedir Wendy de o beijar. Todo o beijo é um furto e neste caso ele é impossível para Wendy: podemos experimentar a eternidade, mas não podemos fazê-la nossa.
  Em Peter and Wendy, a perspectiva é a de Wendy. A tragédia aqui é a de quem tem de partir e observa quem fica. A de quem vê quem vem a seguir (Jane, depois Margaret, etc.) ocupar o lugar que foi seu. Peter vai acabar por esquecer Wendy, como esqueceu Mary (mãe de Wendy) e como vai esquecer Jane e Margaret. Ele tem de esquecer para continuar criança (segundo nos é dito em Peter and Wendy). Assim, a tragédia de Wendy é a de saber que vai desaparecer. E vai desaparecer, não apenas de si mesma, mas também dos outros: quem fica (Peter) não a recordará.
  No livro The Man who mistook his Wife for a Hat – And Other Clinical Tales, Oliver Sacks dá-nos a conhecer o caso do “marinheiro perdido” (lost mariner) Jimmie G., que, detido mentalmente na data de 1945, não conseguia guardar memória a partir daí, esquecendo tudo (o que lhe ia acontecendo a partir daquela data) no espaço de minutos. A vida deste homem dissolvia-se assim num limbo: ele não tinha, por assim dizer, um lugar no tempo, andava continuamente à deriva. Tendo já decorrido décadas sobre o momento em que a sua memória estagnou, o homem julgava ser muitos anos mais novo do que era de facto. Por isso, o momento em que o médico o põe diante de um espelho é de um choque profundo para ele. O marinheiro descobre então que envelheceu. Que o tempo passou para si. Ora, também Peter Pan tem um momento de terror, de certo modo, simétrico: aquele em que Wendy acende a luz e ele descobre que ela envelheceu (“For almost the only time in his life that I know of, Peter was afraid”). Assim, se o marinheiro fica horrorizado ao descobrir que ele próprio não é Peter Pan, o horror de Peter é o de descobrir que os outros também não o são. Mas porque há uma outra criança (Jane) que surge sempre a seguir, Peter, como o marinheiro, pode esquecer e começar tudo de novo. É assim, eternamente, para ele. E para os brinquedos em Toy Story: também eles poderão começar de novo com Bonnie, a criança que vem a seguir. E virá porventura outra um dia. Ao contrário de Peter, porém, o que é neles mais eterno é o vazio de quem partiu: eles estão condenados a recordar.

  Fernando Savater diz que, por nascermos, já vencemos a morte. Já negámos o nada. Mas a verdade é que se morrermos e nada existir depois disso, o breve instante em que vivemos passa por esmagado pela eternidade da escuridão. Por isso, é como se cada criança que vem a seguir tivesse a missão de lembrar que já vencemos a eternidade do nada há muito tempo. Vencemo-la para sempre. E se a essa chama ligamos a vida é porque, afinal, a eternidade só vive quando o efémero a visita. Peter não tem aventuras sem Wendys, fadas ou meninos perdidos. E um brinquedo morre no fim de cada brincadeira. 

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Demasiado familiares


 No filme Invasion of the Body Snatchers (Don Siegel), uma invasão alienígena tem lugar numa cidade fictícia: os aliens conseguem fabricar (literalmente: plantar) duplos dos humanos que vivem na cidade e as pessoas vão sendo substituídas por esses duplos.
  Os duplos são praticamente perfeitos, assemelhando-se em tudo aos originais. Ainda assim, as pessoas mais próximas estranham-nos e não se deixam enganar, suspeitando que são, na verdade, impostores. 

  Como conseguem as pessoas perceber que o outro não é quem aparenta? Que se trata de um impostor? Uma das personagens, que desconfia que o seu tio Ira não é aquele homem que vive em sua casa, diz: "there is no difference you can actually see...he looks, sounds, acts and remembers like uncle Ira...but he isn't, there's something missing".
  A questão então coloca-se nestes termos: que é isso que está em falta quando tudo está onde devia estar? A explicação de que os duplos não sentem emoções não é totalmente esclarecedora neste ponto, já que, como diz a mesma personagem, o falso tio Ira demonstra as mesmas emoções que o verdadeiro, só que fingindo-as. Ora, isto apenas desloca a questão: que elemento é esse que está ausente e cuja ausência permite perceber o fingimento?
  Lembremos o que diz Zizek ("Discipline between Two Freedoms – Madness and Habit in German Idealism") quando contrapõe aliens a zombies"while aliens look and act like humans, but are really foreign to human race, zombies are humans who no longer look and act like humans; while, in the case of an alien, we suddenly become aware that the one closest to us – wife, son, father – is an alien, was colonized by an alien, in the case of a zombie, the shock is that this foreign creep is someone close to us".
  Parece então que o elemento que procuramos nos impostores é um qualquer elemento de estranheza, algo que os afasta, que os torna distantes. E, ainda assim, não o conseguimos identificar.

  A resposta para a nossa procura é-nos sugerida, porém, no pequeno conto Awake in the Night (Lydia Davis):

  “I can’t go to sleep, in this hotel room in this strange city. It is very late, two in the morning, then three, then four. I am lying in the dark. What is the problem? Oh, maybe I am missing him, the person I sleep next to. Then I hear a door shut somewhere nearby. Another guest has come in, very late. Now I have the answer. I will go to his room and get in bed next to him, and then I will be able to sleep.

  A narradora não consegue dormir, por sentir a falta da pessoa que costuma dormir ao seu lado. Resolve o seu problema indo deitar-se com um estranho: assim já será capaz de dormir.
  Há uma sugestão simples, mas reveladora, na solução da narradora. A uma primeira leitura, estranhamos a sua atitude: parece-nos difícil de conceber que a companhia de um desconhecido lhe possa oferecer a tranquilidade que o seu companheiro habitual transmite. A questão que nos assalta de imediato é: como pode um estranho ocupar o lugar do familiar? Uma pequena inversão do nosso ponto de vista sugere, contudo, que a pergunta pode já estar viciada: talvez aquilo que a narradora sente que falta seja, precisamente, a estranheza do companheiro, não a familiaridade deste. Ou, dito de outra forma: o que torna o companheiro uma presença familiar é a estranheza que ele transporta consigo.
  A lição simples, mas fundamental, que este conto nos transmite resume-se então ao seguinte: é precisamente a estranheza daquele que nos é próximo que o torna mais familiar. A narradora tem de ir procurar a sensação de familiaridade naquele que, não lhe sendo ainda próximo, é um verdadeiro estranho e, deste modo, pode tornar-se seu companheiro.
  Temos assim a resposta que procurávamos. Não encontrávamos o elemento ausente que explicava a desconfiança das pessoas em relação aos impostores porque procurávamos no sentido errado. De facto, não há um elemento estranho nos impostores a provocar essa desconfiança: é, pelo contrário, a ausência desse elemento que a origina. Os impostores são impostores porque não são, no fundo, suficientemente diferentes. São demasiado normais, demasiado próximos. Por paradoxal que pareça, falta-lhes, em suma, serem mais estranhos para parecerem mais familiares.

domingo, 25 de outubro de 2015

A imagem que nos há-de salvar - "A Menina dos Fósforos" (Hans Christian Andersen)


  Numa aula sobre a cegueira, Gonçalo M. Tavares pediu à assistência para olhar uma garrafa de água que estava em cima da mesa e ao mesmo tempo tentar visualizar a estátua do Marquês de Pombal. A partir daí, dissertou um pouco sobre a curiosa capacidade humana de conseguir ver uma coisa dentro da cabeça ao mesmo tempo que olhamos uma coisa fora de nós.

  É, com efeito, extraordinário conseguir tapar uma coisa que está à frente dos nossos olhos com uma coisa que está atrás dos nosso olhos. Na história "A menina dos fósforos" (Hans Christian Andersen), a criança faz algo como isso: de cada vez que acende um fósforo, uma imagem aparece para a confortar. Primeiro uma confortável cena de Natal e, mais tarde, a sua avó já falecida. Estas imagens cobrem a realidade miserável que ela tem diante dos olhos: o frio, a rua, o medo, a fome, a solidão.
  A menina acaba por morrer enregelada, e quando é encontrada as pessoas lamentam a sua sorte e sentem comiseração. Mas todos são cegos à imagem em que ela adormeceu dentro de si mesma: morreu na companhia da sua avó, graças ao exercício fantástico de transportar para fora de si o mundo que acendia por dentro. Graças a isso, pôde cegar-se (ao que vinha de fora) e morrer com a realidade que usou para substituir a outra.
  As pessoas que agora passam por ela e sentem pena eram cegas ao seu sofrimento quando ela estava viva — ninguém lhe comprou um fósforo ou parou para a ajudar de algum modo —, e mostram-se igualmente cegas à sua felicidade agora que está morta.
  A menina tornou-se, com efeito, tão cega à realidade como aqueles que passavam e não a viam. Ela é, note-se, tão invisual como o seu público, ainda que no sentido oposto: ela tapa a realidade com o que tem dentro. Ao invés, é precisamente não vendo o que existe dentro que aquele público sente pena dela agora que já nada adianta e quando a pena já não tem sentido. Assim, o que nos há-de salvar da cegueira que nos obstrui não é propriamente podermos ver tudo (por dentro e por fora em simultâneo). Para nos salvarmos, precisamos de aprender a inverter a nossa cegueira. Tornarmo-nos cegos de outro modo.

  Na mesma aula, Gonçalo M. Tavares, falando agora sobre a voragem com que engolimos imagens umas a seguir às outras, sem nos determos para verdadeiramente ver uma que seja, comentou algo como: "é como se estivéssemos à procura da imagem que nos há-de salvar".

  A esta luz, a menina dos fósforos é a heroína dos tempos modernos. Também ela vai acendendo os fósforos com a voracidade de quem não quer aceitar que uma imagem só pode durar um instante. De quem acredita que pode agarrar uma imagem e guardá-la para a fazer durar para sempre.
  Diferentemente de nós, porém, a menina dos fósforos sabe que imagem é essa que procura. Ela já tem dentro de si, na verdade, a imagem que busca lá fora. E é à força de a procurar fora de si que ela a encontra por dentro. Nós continuamos à procura da imagem que nos há-de salvar. A menina já a encontrou.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

O esconderijo do espelho - "The Masks" (Ida Lupino)


  No episódio "The Masks" (Ida Lupino), da série The Twilight Zone, Jason Foster, um moribundo, é visitado pela filha, o genro e os dois netos. Os quatro são pessoas desprezíveis e estão ali apenas na esperança de que o velho morra, de modo a poderem receber a herança. Foster insulta-os e confonta-os sem se conter. Ameaçando-os de os deserdar, convence-os a usarem umas máscaras hediondas até à meia-noite desse dia. Diz-lhes que as máscaras, horrorosas como são, adequam-se inversamente à personalidade do seu utilizador: representam o contrário do que a pessoa é. A descrição que Foster faz da personalidade indicada para cada máscara, todavia, torna claro que o que se passa é precisamente o oposto: as qualidades negativas que ele atribui a cada máscara são, de facto, aquelas que reconhecemos nos membros da família. Ele próprio entra no jogo, pondo a máscara da morte – o inverso do que ele supostamente mais teria neste momento: vida. Depois da meia-noite, todos descobrem que os seus rostos se modificaram e assumiram a forma da máscara que haviam posto. Foster, por sua vez, está morto.

  Há uma evidente lição de moral aplicada aos familiares de Foster, mas um olhar mais atento pode mostrar-nos que este não será porventura o ser humano ideal cujo exemplo os outros deveriam ter seguido. Podemos concordar que ele não tem uma personalidade detestável, como os seus visitantes, mas isso, vendo bem, é porque ele não tem personalidade nenhuma. A sua máscara era a da morte e, quando é retirada, podemos dizer que ele sofreu o mesmo destino que os outros, visto que morreu (tendo também sido forçado a adequar-se à sua máscara). Só que o seu rosto está igual, não houve mudança: ele, de facto, nunca viveu, e, por isso, nenhuma mudança faria sentido. O seu rosto já trazia o vazio da morte quando ele estava vivo. Nunca viveu como vive uma pessoa, foi sempre uma pessoa sem persona. Tudo o que dele conhecemos construiu-se na crítica aos outros, à sua família. Viveu apenas devolvendo-lhes o que eles eram, confrontando-os sem subterfúgios com o que eles lhe mostravam ser. Ele foi apenas, portanto, um espelho para os outros, apareceu sempre como mero reflexo do que os outros eram. E cumpriu o seu papel na perfeição, pois o encontro dos outros consigo obrigou-os a verem o que eram verdadeiramente. O que surpreende, em suma, é que ele teve de ser menos que pessoa – não pôde chegar a ser pessoa, não pôde ter uma persona própria – para poder ser juiz de pessoas.
  O pecado da família de Foster foi o da cegueira deliberada: não queriam ver-se a si mesmos, encarar a sua fealdade, experiência que os teria forçado a mudar. Por isso, por não quererem ver um espelho que, abertamente, lhes mostraria a verdade de si próprios, essa confrontação teve de ocorrer disfarçadamente: o espelho onde se confrontaram apareceu escondido nos olhos de um outro. E foi através do espelho dos olhos de um outro que puderam finalmente ver-se a si mesmos.
  O caso da neta – Paula –, podendo parecer que contraria o que aqui se diz, é na verdade um perfeito exemplo disto mesmo. Paula era extremamente vaidosa, estava permanentemente a ver-se ao espelho. Poderia pensar-se então que o que dissemos sobre a família de Foster não se lhe aplica: ela não temia o seu reflexo; pelo contrário, procurava-o em todos os momentos. Esta não é, no entanto, a leitura mais correcta do caso. Porque o olhar que Paula procurava no seu espelho era o seu próprio olhar. Paula não tinha consciência de que o espelho verdadeiro é aquele que nos devolve o olhar de um outro, aquele que nos mostra como somos vistos por um terceiro. Paula escondeu sempre esse olhar de um outro atrás do seu próprio olhar e, por isso, nunca se viu ao espelho verdadeiramente até ao momento em que o olhar de um outro forçou nela esse confronto consigo mesma.
  É precisamente este jogo de espelhos e reflexos, de resto, que é traduzido no discurso de Foster sobre as máscaras. Com efeito, quando ele descreve as máscaras como adequando-se perfeitamente ao utilizador cuja personalidade seja o inverso da descrição que lhe cabe, há uma verdade profunda neste sarcasmo, que agora podemos compreender: isto é afinal tão correcto como dizer que o nosso reflexo no espelho, precisamente na medida em que é o inverso simétrico do que lhe apresentamos, é aquele que para nós é mais adequado. Porque, no fim de contas, se a Rainha Má, madrasta da Branca-de-Neve, tem razão em desconfiar do outro que o espelho lhe apresenta no seu reflexo, os personagens de "The Masks" aprenderam a lição inversa: no outro que o espelho nos devolve, somos nós mesmos que nos escondemos.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

"A person who feels bad is a bad person" - "Crimes and Misdemeanors" (Woody Allen)




  Segundo Alenka Zupančič (The Odd One In: On Comedy), tornou-se imperativo, no ambiente ideológico hodierno, ver tudo o que nos acontece como algo positivo, como experiências que nos ajudam a crescer e a tornarmo-nos melhores. Insatisfação, infelicidade, pessimismo, são tidos por falhas morais, formas de corrupção instaladas no próprio ser da pessoa. Esta "bio-moralidade", uma "moralidade de sentimentos e emoções", pode traduzir-se no axioma: "a person who feels good (and is happy) is a good person; a person who feels bad is a bad person".
  Esta "retórica da felicidade", de acordo com a autora, contrapõe-se a uma lógica mais clássica sobre a nossa responsabilidade pelos nossos falhanços e sucessos; nesta lógica vai implicado um intervalo entre o que somos e o valor simbólico do nosso sucesso: somos responsáveis porque poderíamos ter actuado de outro modo. Na perspectiva da bio-moralidade, ao invés, o descontentamento e a frustração revelam que a pessoa é corrupta no seu próprio ser, aparecendo assim os seus fracassos como inevitáveis, como decorrendo necessariamente da sua genética.
  Um bom exemplo desta contraposição pode ser encontrado no filme Crimes and Misdemeanors (Woody Allen). Ambas as lógicas, com efeito, aparecem sobrepostas em Lester, um bem-sucedido produtor televisivo, e, mais concretamente, no modo como este se relaciona com o cunhado Cliff, um realizador de cinema relativamente insignificante e em permanente descontentamento com a vida.
  Lester vai tentando ajudar Cliff arranjando-lhe trabalho, embora não se identifique com o seu estilo e o ache demasiado idealista, suspeitando igualmente (e correctamente) que Cliff o despreza. Ele exterioriza a lógica de responsabilização mais clássica: acredita que Cliff é o único responsável pelos próprios fracassos, por não conseguir aproveitar oportunidades como as que ele lhe oferece. Esta visão implica um intervalo entre a pessoa e os seus insucessos. Transparece claramente, porém, que, por debaixo destas atitudes politicamente correctas, a verdadeira perspectiva de Lester, memo que contida, é a da "bio-moralidade": Lester não acredita verdadeiramente que Cliff alguma vez possa vir a ter sucesso, ele vê-o, no fundo, como um falhado, condenado geneticamente, por assim dizer, a fracassar.
  Cliff aceita os projectos que Lester lhe atribui apenas para ter sustento enquanto desenvolve o projecto que verdadeiramente lhe interessa: um documentário sobre um filósofo e as suas dissertações sobre o amor e a celebração da vida. Quando o filósofo se suicida, Cliff fica desolado, pois este gesto esvazia a mensagem que ele documentara tão dedicadamente. É este derradeiro insucesso, no entanto, que traz a Cliff uma inesperada vitória sobre Lester. Porque o acto do filósofo é afinal um de rebeldia contra o seu próprio ser e, portanto, um desmentido da bio-moralidade. Assim, o fracasso último de Cliff representa para ele, contra Lester, um derradeiro sinal de esperança.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O personagem sem história - "The Case of Mr. Pelham" (Alfred Hitchcock)



  Segundo Ricoeur (Soi-Même Comme un Autre), a identidade de um personagem de uma história é construída - como identidade narrativa - através da construção que o relato faz da própria história narrada. É a identidade da história que faz a identidade do personagem ("C'est l'identité de l'histoire qui fait l'identité du personnage"). Deste modo, a construção da identidade narrativa vale-se da dialéctica entre a exigência de concordância e a admissão de discordâncias que caracteriza a identidade da própria história contada. A história progride por meio da mediação entre concordância e discordância - i. e., para dizer de um modo simplificado, entre a unidade temporal do conjunto do encadeamento da história e a sucessão de eventos diversos e separados da acção. O acontecimento ou evento na história é, assim, um elemento de discordância - desde logo ao surgir -, mas também de concordância, ao fazer avançar a história. O evento não aparece aqui, portanto, como pura contingência - algo que poderia não ter ocorrido -, pois a exigência de concordância confere-lhe um carácter de necessidade ou probabilidade. A mise en intrigue é, precisamente, este processo configurante que inscreve os acontecimentos narrados na unidade de um discurso.
  Defende então Ricoeur que encontramos a identidade do personagem ao transferirmos para ele a operação da mise en intrigue. Encontramos assim uma dialéctica no personagem que lhe é interna - uma dialéctica que é o corolário daquela entre concordância e discordância operada na mise en intrigue. Pela linha da concordância, a singularidade do personagem retira-se da totalidade temporal da unidade da sua vida; pela da discordância, essa totalidade é ameaçada de ruptura por pontuais acontecimentos imprevisíveis (encontros, acidentes, etc.). A síntese operada nesta dialéctica resulta em que o acontecimento que surge primeiramente como inesperado é a posteriori integrado no conjunto numa lógica de necessidade ou probabilidade - assim se transforma o acaso em destino.
  É com este pano de fundo que se há-de compreender a ironia da seguinte passagem de Um Homem: Klaus Klump (Gonçalo M. Tavares):

  "Klaus é um homem alto. Conheceu Johana porque ela olhou por cima de uma sebe verdíssima e olhou por cima de uma Primavera ainda mais verde que a sebe. Eles costumavam brincar:
  Se tu não fosses tão alto, não te teria visto por cima da sebe.
  E Klaus dizia a Johana:
  Se eu não fosse tão alto a sebe seria mais baixa."

  É o próprio personagem, como se vê, que transforma o acaso em destino, inconsciente do processo pelo qual isso já é feito na própria construção da narrativa.

  É esta dialéctica concordância-discordância (que opera no interior do personagem) que Ricoeur vai inscrever na dialéctica entre mesmidade e ipseidade da identidade pessoal, defendendo que a identidade narrativa desempenha uma função mediadora entre estes dois pólos. A mesmidade corresponde ao sentido idem do termo identidade - focando-se aqui a ideia de permanência no tempo por oposição a variável, modificável - enquanto a ipseidade corresponde ao sentido ipse - aqui já não vai implicada qualquer asserção respeitante a um núcleo não variável da personalidade.
  Estes dois significados da permanência no tempo tendem a confundir-se na nossa experiência quotidiana, mas na ficção (literária) aprofunda-se o espaço de variações na relação entre ambas. Assim, num extremo, o personagem é um carácter identificável e reidentificável como o mesmo: é o que acontece com os personagens do conto de fadas. No romance clássico, diferentemente, encontramos uma exploração do espaço entre os dois extremos, com a transformação progressiva dos personagens ao longo da história. Aproximamo-nos, por fim, do extremo oposto com o romance de aprendizagem (onde passa a estar a intriga ao serviço do personagem). Encontramos nesse pólo extremo o personagem que deixou de ser um carácter.

  Este enquadramento oferece-nos uma hipótese de leitura do episódio "The Case of Mr. Pelham" (que resumimos aqui) da série Alfred Hitchcock Presents. Com efeito, parece que Pelham afunda-se no primeiro extremo: cultivou o seu carácter de tal modo que o petrificou. Ele é como um personagem de um conto de fadas - pelos seus hábitos, pela sua aversão à mudança, ele é identificável e reidentificável como o mesmo.
  Não se trata assim de uma confusão entre os dois significados da permanência no tempo: Pelham passa, a dada altura, a resumir-se a apenas um desses significados. Reduz-se à sua mesmidade e, assim, a sua vida é feita apenas de concordância. O problema é que essa concordância passa por uma repetição dos mesmos eventos - a discordância é efectivamente eliminada, pois não há novidade na sucessão dos dias de Pelham. Assim, Pelham torna-se uma pessoa sem história, sem narrativa. Ele não é uma pessoa, mas sim um modo de ser.
  A discordância introduz a novidade e através dela constrói-se a sucessão de acontecimentos que faz a história. A ligação interna que dá sentido a essa história é conseguida com a síntese dialéctica que referi acima. A ligação só se solidifica por completo com a conclusão da história. Ora, no caso de Pelham, não há limites de tempo para a sua história, não há nenhum ponto a partir do qual possamos impor retroactivamente uma perspectiva de necessidade ou probabilidade dos acontecimentos que o antecederam. Mas isto, afinal, deve-se a que Pelham está fora da história, em resultado de se ter reduzido à sua mesmidade.
  Quando Pelham depara com a sua mesmidade, é inevitável a descoberta de que está fora da sua própria história. E isto no sentido de que ele próprio, no fundo, tornou impossível essa história. A sua decisão de mudar de gravata tem de o condenar porque a discordância só poderia surgir no caminho da narrativa. E ele já eliminou qualquer possibilidade de narrativa para si.
  O caso de Pelham é, assim, uma confirmação de que, mais do que as pessoas e os seus actos fazerem as histórias, são as histórias que dão vida às pessoas e aos seus feitos.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O espelho de outrem

    O acto de olhar o espelho coloca-nos perante o nosso outro: estamos ali como um outro perante nós mesmos. A atitude mais comum de nos identificarmos com o reflexo faz-nos esquecer a estranheza da imagem. É por isso que devemos recuperar a história da Branca-de-Neve: quando a Rainha se vê ao espelho e este lhe devolve a imagem da Branca-de-Neve, temos de concluir que esta é o reflexo da Rainha. Do mesmo modo que a nossa identificação com o reflexo não nos deve fazer esquecer que ele continua a ser um outro que queremos incorporar em nós mesmos, também, ao invés, a atitude da Rainha não pode apagar o facto de que o outro que ela rejeita é, afinal, um reflexo de si mesma.
  É exactamente essa a lição do Padre Brown no conto "The Man in the Passage" (G. K. Chesterton). Tanto Wilson Seymour como o Capitão Cutler, testemunhas num julgamento por homicídio, garantem ter visto uma estranha figura no local do crime. As descrições dos seus contornos, porém, divergem por completo. Também o Padre Brown viu a figura e também a descrição que ele dá da mesma é bastante diferente das outras, parecendo resultar dos testemunhos que esta criatura combina traços femininos, brutais e diabólicos. O Padre Brown acaba por esclarecer o mistério explicando que não havia nenhuma outra pessoa por ali: a figura misteriosa era afinal o reflexo das testemunhas num espelho. O que temos aqui é precisamente uma instância daquela atitude de rejeição do nosso reflexo: Seymour e Cutler levam a cabo essa rejeição na sua versão mais radical: eles não chegam sequer a perceber que estão perante uma imagem sua, encaram-na sempre como a de um outro, não se reconhecendo. O seu outro é-lhes, portanto, totalmente alheio. O que o Padre Brown, no fundo, nos vem lembrar, é que por muito estranha que nos pareça a imagem no espelho, ela continua a ser um reflexo de nós mesmos. O espelho devolve-nos a nossa imagem invertida e, nesse sentido, ela pode parecer-nos o oposto do que somos. Mas essa inversão supõe sempre a ligação simbiótica invisível a tudo o que somos.


  No episódio "Dead Man's Eyes" (Jerry Levine), da reedição de 2002 da série The Twilight Zone, Lauren Janus é uma viúva que descobre que quando coloca os óculos do seu falecido marido consegue ver o que ele via. Colocar os óculos é, portanto, pôr os próprios olhos do marido no lugar dos seus. Janus aproveita esta nova capacidade para tentar perceber quem o matou. Quando, finalmente, consegue ver o que ele viu no momento em que o assassino o atacou por trás, é a si mesma que vê no espelho a atacá-lo. Conclui assim que ela mesma é a assassina.
  Também a atitude de Janus é de rejeição, mas o seu caminho é particularmente interessante. O primeiro momento em que ela percebe que consegue ver com os olhos do falecido é, precisamente, aquele em que se vê ao espelho e encontra aí a imagem do marido. Aquela não é a sua imagem - i. e., não é a imagem de Lauren Janus - e, nesse sentido, ela percebe-a como a de um outro que não ela. Mas ao mesmo tempo aquela é a sua imagem - a imagem do marido, no lugar do qual ela agora se põe. Assim, se ela descobre no espelho o outro que pertencia ao seu marido, isso tem de significar que neste momento esse outro pertence-lhe a ela. Tal parece sugerir a conclusão surpreendente de que é mais fácil aceitarmos como nosso o outro que pertence a outrem do que o outro que nos pertence. Mas isto é essencial na aprendizagem de Janus: é precisamente aprendendo a acolher a alteridade que lhe é completamente alheia que ela conseguirá, no final, incorporar a alteridade que lhe é íntima (a do seu próprio reflexo). Ou, por outras palavras, é na identificação com o outro-que-não-sou-eu que eu aprendo a aceitar o outro-que-eu-sou.
  Para Janus perceber isso, é essencial colocar-se nos olhos do marido. Com efeito, se a experiência de descobrir o reflexo do marido no espelho a alerta para a evidência de a imagem que o espelho me devolve ser a de um outro, torna-se imperativo mudar de ponto de vista para perceber que esse outro é, não obstante, igual a mim. Porque o espelho coloca-me diante do meu reflexo e, assim, esse reflexo está noutro lugar, difernte daquele em que eu me situo. Um terceiro, porém, tem a posição privilegiada de perceber a simetria entre as duas imagens. Janus não pôde perceber, portanto, que ela mesma matara o marido, pois a imagem desse assassinato era a de um acto cometido por um outro (i. e., por uma outra). Com os olhos do marido, porém, pôde reconhcer-se a si mesma: aquela no espelho, afinal, é ela própria.
  O final do episódio lembra a penúltima cena de Psycho (Alfred Hitchcock), em que a mãe de Norman, já completamente personificada no corpo deste, tem um discurso pelo qual se inocenta dos crimes praticados pelo filho. Em ambos os casos, note-se, o sujeito aceitou finalmente que o "outro" é, afinal, ele mesmo. Isso é mais nítido no caso de Janus, em que ela se limita a repetir que foi ela que matou o marido. No caso de Psyhco, porém, isto não é contrariado. Pelo contrário, aí apenas se sugere que há um último passo que pode ter ficado por dar: depois de o sujeito aceitar que é o outro, falta o outro (a mãe) aceitar que é o sujeito.


segunda-feira, 21 de setembro de 2015

The danger of (not) buying a new tie - "The Case of Mr. Pelham" (Alfred Hitchcock)


  No episódio "The case of Mr. Pelham", da série Alfred Hitchcock Presents, Albert Pelham é um contabilista preocupado com a existência de um possível duplo que parece estar a querer tomar-lhe o lugar. Esse outro apodera-se dos seus hábitos e das suas rotinas e como que começa a levar a cabo o seu quotidiano por si. Em conversa com o seu psiquiatra, Pelham acaba por ter a ideia de fazer mudanças. Muda a assinatura, compra uma nova gravata. O outro não desaparece, porém, e, finalmente, Pelham e ele encontram-se frente a frente, perante o olhar espantado do seu mordomo. Quando este é instado por ambos a apontar qual deles é o verdadeiro, o duplo chama a atenção para a gravata que Pelham traz: uma gravata que o verdadeiro Albert Pelham nunca compraria. O mordomo dá-lhe razão e o "nosso" Albert Pelham perde, ao que tudo indica, a batalha.

  Embora pareça haver simplesmente dois Pelhams, uma leitura mais cuidada poderá levar-nos a concluir que o duplo não é verdadeiramente um "outro". Albert Pelham é, como o psiquiatra o descreve (e o próprio confirma), uma criatura de rotinas, de hábitos regulares, etc. Através do seu quotidiano uniforme, Albert Pelham criou um personagem: o personagem de si mesmo. Este personagem é a encarnação do seu ser-em-si (v. Sartre, L'Être et le Néant). Com efeito, este outro Albert Pelham é o que é e não pode ser outra coisa - não tem outras roupas, não tem outros hábitos, porque só aqueles cabem ao seu papel.
  Pela criação deste personagem, Pelham asfixiou-se como ser-para-si e, assim, afogou a sua liberdade. Identificou-se de tal modo com as suas rotinas que negou o nada que o separava de si mesmo, apagando-se como consciência capaz de se transcender a si próprio. Ele deixa assim de poder dizer que, como qualquer ser-para-si, é o que não é e não é o que é.
  Quando Pelham começa a notar que alguém – que não ele – leva a cabo as suas rotinas no seu lugar, isto não é mais do que o despertar do seu para-si adormecido, o retorno da capacidade de transcendência que ele fizera desaparecer. Basta lembrar que a consciência de si mesmo é, afinal, uma instância da transcendência que nós somos: o simples facto de eu me poder ter a mim mesmo como objecto (da minha consciência) separa-me de mim próprio, pois eu sou a consciência de mim. Assim, o que acontece com Pelham não é mais do que a tradução física e geográfica dessa experiência: ele separa-se literalmente de si mesmo ao retomar a sua consciência, i. e., ao voltar a ser um ser-para-si. Essa separação é inevitável, pois nada pode ser em-si e para-si em simultâneo. Foi Pelham, portanto, que se condenou ao criar o seu personagem. A morte da liberdade de Pelham pelos hábitos traz assim uma confirmação existencialista da sentença kantiana (contra Aristóteles): os hábitos impossibilitam a liberdade.
  É tarde demais para Pelham. Já não tem corpo, já não tem facticidade para poder concretizar a sua liberdade. Toda a facticidade que lhe poderia caber é agora do "outro", i. e., do seu em-si. Por isso, o gesto de liberdade (a mudança de gravata) está condenado ao fracasso. Se Hitchcock não fosse tudo menos moralista, esta história poderia ser um alerta para os perigos da má-fé: se insistirmos na identificação connosco mesmos e no desejo de nos tornarmos um em-si, corremos o risco de morrermos como liberdade. Não basta sermos livres: é preciso não esquecermos que o somos.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

A criança que despiu o imperador


  Quando lemos o conhecido conto "As novas roupas do imperador", de Hans Christian Andersen, somos tentados a enaltecer a figura da criança que grita o que todos viam sem admitir: que o imperador estava nu. Ela assume o papel de dizer a verdade ao poder e à autoridade, desafiando a hipocrisia social, o fingimento descarado e a ostentação vazia.
  Coloquemos, porém, esta figura a par de uma outra, igualmente inocente (pelo menos aparentemente) e desbocada: a narradora do conto "Who dealt?" de Ring Lardner. Dois casais amigos – a narradora e Tom de um lado, Arthur e Helen do outro – juntam-se para uma noite de bridge. A narradora está casada há pouco tempo com Tom e não sabe que no passado ele e Helen estiveram noivos. Helen acabou, porém, por casar com Arthur (que ignorava aquele noivado), porque este, para além de ser rico, atlético, etc., conseguiu licenciar-se e arranjar uma posição estável na vida mais cedo do que Tom – que, por ser pobre, demorou muito mais. Esta é, pelo menos, a versão dos acontecimentos que recebemos a partir do relato que a narradora faz de uns escritos de Tom que ela encontrou e leu sem este saber. A narradora dá agora a conhecer tudo isso com a intenção ingénua de divertir os outros, sem perceber o significado do que está a dizer e o impacto destrutivo que assim provoca (não interessa aqui a possível interpretação da história segundo a qual a narradora está perfeitamente consciente do que está a fazer, querendo apenas vingar-se de Tom por este lhe ter escondido o romance e castigar Helen pelo afecto que Tom lhe dedicou).
  Ao contrário da criança de Andersen, merecedora da adoração da maioria dos seus leitores, a narradora de "Who dealt?" foi tratada pela crítica como "estúpida", "insensível", "faladora descontrolada" e até a sua inabilidade no bridge foi motivo de censura. O diferente tratamento dado a estas duas figuras parece assim justificado intuitivamente. Mas será essa diferença realmente de aceitar?
  O relato da narradora parece efectivamente não trazer nada de positivo; provoca até, no imediato, que Tom (um alcóolico em recuperação) recomece a beber. A longo prazo, há um estilhaçar óbvio nas relações entre os amigos, que não poderão voltar a ser as mesmas. A amizade entre os companheiros de jogo da narradora pôde sobreviver forte valendo-se do silêncio sobre aquele evento dilacerante. Uma vez revelada a verdade, todavia, deixa de ser possível agir como se nunca nada se tivesse passado - do mesmo modo que a partir do momento em que uma criança gritou que o imperador não tinha roupas a nudez deste ficou exposta, a tal ponto que já ninguém pode continuar a agir como se todos o vissem vestido. De certa maneira, podemos dizer que foi a criança quem, na verdade, despiu o imperador.
  Resta saber, porém, se estamos realmente prontos para aceitar as consequências da atitude da criança – ou será que a história de Lardner pode servir-nos de alerta para sermos prudentes com a ânsia de deixar as verdades emergirem? O tecido social das várias relações entre os membros de uma comunidade depende muito do silêncio sobre verdades que podem ser conhecidas, mas nunca pronunciadas. Este silêncio é tão cuidadosamente construído que essas verdades, em rigor, não chegam nunca a existir (enquanto ninguém lhes apontar o dedo). Se o enunciar de algo-que-não-devemos-dizer tem um mero efeito destruidor, então talvez devamos, com Slavoj Žižek (For They Know Not What They Do – Enjoyment as a political factor), concluir que é altura de abandonar o elogio da criança e aceitá-la como o protótipo do falador descontrolado que pode provocar a desintegração da própria sociedade.


  Por isso o tacto, mais até do que a educação, não se resume a hábitos estéreis, nem é um mero sintoma de civilização, mas o próprio sustento desta. E nada indica tão bem que é verdadeiramente de tacto que se trata naqueles silêncios como a pequena carta que Fabienne Tabard envia a Antoine Doinel em Baisers Volés (François Truffaut), onde explica que ao entrar inadvertidamente numa casa-de-banho e ao ser surpreendido aí com uma senhora nua, o homem educado dirá "Pardon, madame", mas o homem com tacto dirá "Pardon, monsieur".
  Repare-se que a própria noção de "verdades" pode ser aqui equívoca – precisamente porque, como já sugerimos, a sua existência real só começa quando são pronunciadas abertamente. Em rigor, o quadro que Andersen nos apresenta até ao momento em que a criança fala lembra-nos o § 293 das Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein: supondo que cada pessoa tem uma caixa com um escaravelho; que cada uma só consegue espreitar a sua caixa, mas não a dos outros, e que, não obstante, todas usam a expressão "escaravelho" sem quaisquer disputas quanto ao seu significado, então, diz Wittgenstein, não interessa verdadeiramente o que está dentro da caixa – que pode ser sempre o mesmo para todas as pessoas, pode ser sempre diferente, pode ir variando e, no limite, pode até a caixa estar vazia. A gramática da expressão prescinde do objecto, pois "a coisa na caixa não pertence de todo ao jogo de linguagem" ("Das Ding in der Schachtel gehört überhaupt nicht zum Sprachspiel"). Ora, isto vale também para as roupas do imperador: se este passeava exibindo as roupas e se a reacção de todos era a de quem as via, então, no limite, é realmente indiferente se o imperador estava vestido ou não.
  

  Os exemplos no cinema e na televisão serão incontáveis, mas um aparece aqui como particularmente interessante: no episódio "For immediate release" (Jennifer Getzinger), da série Mad Men, Peter Campbell cruza-se inesperadamente com o seu sogro Tom Vogel num bordel. Campbell fica preocupado, mas o seu colega Ken Cosgrove explica-lhe que nada tem a temer: a revelação do encontro seria provavelmente tão catastrófica para Vogel (igualmente casado e igualmente desejoso de manter o respeito da filha) como para Campbell, pelo que ele irá certamente guardar silêncio sobre o assunto. A verdade, porém, é que Vogel conta imediatamente à filha as infidelidades de Campbell e ainda cancela a sua conta na empresa do genro.
  Vogel não é como a narradora de "Who dealt?" ou a criança que aponta o dedo ao imperador: ele nada tem de ingénuo. A sua intenção é precisamente a de causar estragos na teia de relações (profissionais e pessoais) de Campbell consigo e com a sua filha. Mas assalta-nos a sua hipocrisia quando, além disso, ele ainda o censura por fazer o mesmo que ele. A verdade, contudo, é que Vogel pode ser, destes três, o que mais compreensão merece: ele trai Campbell com a perfeita consciência de que pode estar a trair-se (irremediavelmente) a si mesmo. Mesmo que o facto de ficar desmascarado perante a mulher, provavelmente, não o incomode muito, certamente a sua imagem perante a filha é ainda muito importante. E ele está pronto a abdicar disso pelo respeito que entende que ela merece receber por parte do marido. A cegueira em relação a si mesmo tem, assim, um curioso duplo efeito: é verdade que ele parece esquecer-se das suas próprias faltas quando censura o genro e assim aparece-nos como hipócrita, mas é precisamente este esquecimento de si próprio que faz o seu amor pela filha, pois leva-o a colocá-la em primeiro lugar, em vez de a si mesmo. O amor é cego. Mas só é verdadeiro o amor que provoca a cegueira em relação a si mesmo, e não a quem se ama.